terça-feira, 3 de março de 2009

Ouvindo: Ágætis Byrjun - Sigur Rós

Gente de longe dizendo que lê o "Murro na Cara" TODO DIA ! :)
Muito bom...

Eu nasci com os pés tortos. Não é brincadeira. Usei um par de botas ortopédicas até aproximadamente os cinco anos de idade. Isso se refletiu de diversas formas na minha vida. Pra começar eu passei um longo tempo sem ganhar tenis. Ou poder usar sandálias. A bota era o único calçado que eu podia usar. Ou poder andar descalço na praia. Ou correr, brincar, subir em árvores, chutar pedras e todas outras asneiras que meninos fazem quando são crianças.
Eu ficava muito tempo sentado. Olhando pro mundo, cheio de gente correndo. Cheio de crianças pulando corda, rindo e fazendo danças de roda... Enquanto eu ficava alí. No mundo dos sentados. Com meus livros cheios de figuras, meus desenhos de giz de cera e alguns brinquedos que não me exigiam estar em pé para usa-los.
A parte boa é que aprendi a ler um pouco antes. Isso fez com que eu me interessasse por livros já bem novo. Tinha o Macaco Simão, que era ruim com seus amigos e depois aprendia sua lição sendo ajudado por todos eles em um momento de necessidade. Tinha Os músicos de Bremen, que terminavam tocando seus instrumentos em uma grande festa (era um burro, um cachorro, um gato e um galo). E os clássicos dos irmãos Grimm: Rapunzel, O ganso de ouro e João e Maria.
Eu adorava ler.
Lembro perfeitamente do dia em que consegui pela primeira vez.
Caminhei até meus pais (eu correria se pudesse) e falei que estava lendo. Meu pai duvidou com um sorriso na cara. Minha mãe só observou enquanto eu voltava até o quarto para pegar um livro, levava-o até sala, sentava no chão e começava a ler tropeçando minhas primeiras palavras.
Eu li o livro todo. Até o fim. E eles me ouviram. Alí, sentados.
Quando terminei meu pai ainda sorria e minha mãe me abraçou.
Foi como ter conseguido correr uma maratona. Como ter escalado a maior árvore do bairro. Como ter beijado a vizinha mais bonita na frente de todo mundo. Eu fui o Rei da rua pra mim e pros meus pais naquele momento. Pra ninguém mais.
Nunca consegui jogar futebol bem. Por isso aprendi a jogar basquete.
Nunca consegui ser o mais rápido nas corridas. Por isso aprendi a fazer manobras com minha bicicleta.
E quando todos começavam a sair pra festinhas e a dançar. Eu não conseguia me mover de forma igual. Sempre fui desingonçado.
Isso nunca me incomodou profundamente. Jamais parei e leventei os braços pro céu gritando:
"- Porque Seeeenhor ??? Poooooorqueeeeee ???"
Eu sei o porque.
É o mesmo motivo pelo qual eu tenho um, hoje, minúsculo sopro cardíaco desde meu nascimento. No dia em que eu nasci, meu pai tinha 78 anos. Eu fui o último. Nasci com 4.8 quilos. Com um par de bochechas rosas. Um coração furado. E os pés tortos. Isso faz quase vinte e sete anos.
Lembro de quando acordei, e vi as botas no chão. Pensei em jogar as duas pela janela do apartamento. Eu não aguentava mais usa-las. Mas fiquei com medo de alguém ficar bravo comigo. Meu raciocínio foi simples:
"- Ora, se eu jogar as duas botas, alguém vai brigar comigo. Se eu jogar uma só, não vou ser mais obrigado a usa-las e a pessoa que ficará brava, vai ficar metade do que ficaria se eu jogasse as duas..."
A bota foi arremessada pra fora da janela. Em camera lenta ela girou no ar. Rodopiando com o pesado solado de metal. Girava como um brinquedo. Eu fiquei a observar voando. A bota não caiu... Ela foi voando pra longe. Ela voltou pro Fantástico Reino das Botas Ortopédicas Brancas.
Foi minha redenção.
Antes de desaparecer entre as núvens ela parou, se virou pra mim e gritou:
"- Tchau Lêêê, me desculpe pelo incomoooodooooo..." - e foi embora.
Eu saí descalço do quarto e corri.
Atravessei o corredor e a cozinha enquanto meus pais tomavam café da manhã na sala.
Desci as escadas do meu prédio correndo.
Corri até aonde consegui e parei ofegante. Exausto.
Meu coração furado palpitava por causa da disfunção cardíaca genética. Meus pés tortos latejavam, quase dormentes. Eu suava muito. Mas não mais do que sorria. Eu quase gargalhava de felicidade.

Entre botas ortopédicas falantes e mini maratonas altruistas eu cresci.

Hoje quando eu olho pra trás, sei que minhas pegadas ficaram tortas assim por que devia ter usado minhas botas por mais tempo.
Mas quer saber ???
Eu gosto delas assim ! Elas não são tão retas como a de todo mundo. Nem tão tortas...
Elas são as minhas pegadas. São as pegadas que EU fiz. Que jogam futebol mal. Que gostam da NBA. Desengonçadas. Que gostam de ler. Entre tantas outras coisas.
E eu não voltaria atrás pra apagar nenhuma delas. Nenhuma ! Nem as mais tortas de todas.

Foi em cima desses pés tortos que eu cheguei até aqui. Não é tão longe, eu sei. E o caminho também não acabou. Tem uma curva alí na frente, não sei o que vem depois... Talvez seja o Fantástico Reino das Botas Ortopédicas Brancas. Talvez eu reencontre minha antiga bota. Casada. Com um par de botinhas. Morando em uma caixa de sapatos com dois andares.

E eu sei que vai estar tudo bem.
Desde que eu pare ofegante, suando e sorrindo.

3 comentários:

  1. Le,

    Para mim foi o melhor de todos!!!

    Que sorte a minha de ter incentivado na criação desse blog, tuas historinhas surpreendentes são no mínimo geniais!...cada frase me fez imaginar uma cena, te vi correndo com as buchechas vermelhas e dando risadas, mas só conheço as risdadas do Leandro homem então ficou ainda mais engraçado!!

    .....

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  2. Concordo com a Monique... esse texto realmente ficou muito bom.

    Embora muitas pessoas neguem, as situações que nós vivenciamos quando crianças, influenciam demais nossa personalidade e escolhas quando adultos.
    Assim como você, eu também não teria feito nada diferente.

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  3. nossa, forrest gump total! naquela parte que ele sai correndo, quebram-se as botas e ele vira o corredor mais rapido da cidade :D
    muito bom

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