quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Lá na minha rua...

Todo ano, no natal, ele se vestia de papai noel. O pessoal da rua já esperava. Sua pequena casa amanhecia toda enfeitada com renas de plástico, pinheiro, luzinhas piscantes, flocos de neve em chumaço de algodão e estrelas. E ele passava o dia vestido com uma roupa vermelha, touca e ouriçava toda sua barba branca para ficar o mais parecido possível com o bom velhinho. Caminhava pela vizinhança tocando um velho sininho de metal e com um saco abarrotado de balas e chocolates dizendo:
"- HO HO HO, FELIZ NATAL!" - enquanto a criançada o rodeava sedenta por doçuras que sempre vinham seguidas de um generoso afago na cabeça.
Quando chegava em Novembro ele já começava a dizer:

"- Mês que vem tem Natal! O Papai Noel está chegando!" - mesmo todo mundo sabendo que ele era o Papai Noel.
Um dia perguntei para a vó de um vizinho porque ele fazia aquilo? Já era tão velhinho e todo mundo sabia que ele era uma pessoa simples... 
"- Senta aqui querido, vou te contar uma história..." - ela respondeu sorrindo.
O Seu Mathias, como era conhecido, foi casado por muitos anos. A esposa, Dona Lurdes, gostava de cuidar das flores no pequeno jardim deles. Ele saía para trabalhar e não demorava sua mulher aparecia de lenço na cabeça, com uma pazinha de jardim revirando a terra, regando as mudas, cortando as folhas doentes. Assim eles viveram por muito tempo. Sem nunca ter filhos. Durante o Natal, eles enfeitavam a casa juntos e no dia, uma fila de crianças se formava no portão do seu jardim. A Dona Lurdes e o Seu Mathias distribuíam doces e até brinquedos para a meninada.
"- Pode entrar, o Papai Noel já chegou!" - dizia a Dona Lurdes sempre com um sorriso estampado nos lábios.
E quando um morador da rua os parabenizava pelo empenho a Dona Lurdes respondia sorridente:
"- As crianças precisam acreditar na magia. O mundo dos adultos é muito duro, mas crianças que acreditam na magia se tornam adultos mais gentis... Acreditar faz o mundo ser melhor!"
Ninguém sabe se o casal não podia ter filhos, se não queria ou o que tinha acontecido. Antigamente as pessoas eram mais discretas com a vida alheia. E alguns assuntos simplesmente não era abordados. O fato é que o Seu Mathias e a Dona Lurdes eram felizes como viviam. E que gostavam de participar do Natal daquele jeito: ele de papai Noel, ela de mamãe Noel, recebendo as crianças da rua no seu jardim florido...
Um dia o Seu Mathias saiu para trabalhar e quando voltou foi uma gritaria só. Uma ambulância foi chamada, a Dona Lurdes estava caída na cozinha. Um corre-corre danado, todo mundo veio acudi-lo. Ela foi levada de maca para o hospital. Ele do seu lado. A ambulância passou gritando na frente da casa dos meus pais, eu me lembro das luzes piscando e do rosto preocupado dos mais velhos. Alguns dias depois ficamos todos sabendo, a Dona Lurdes teve um derrame. Foi coisa séria, sobreviveu mas nunca mais caminhou ou falou como antes. Quando o médico deu a notícia do que havia acontecido, o Seu Mathias perguntou:
"- Mas ela vai melhorar quando doutor?"
"- Sr. Mathias, ela vai precisar muito de ajuda agora... A Sra. Lurdes por pouco não sobreviveu... O senhor vai precisar ajuda-la a fazer tudo. Do banho a alimentação."
"- Eu cuido dela..." - disse o senhor de cabelos brancos e óculos de lentes grossas passando a mão no rosto da senhora que estava deitada na cama ao seu lado.
Ninguém mais viu o Seu Mathias vestido de Papail Noel, até que alguns anos depois, ela partiu. No enterro entre as lágrimas e as condolências o Seu Mathias disse que o corpo da sua esposa havia se quebrado no derrame, mas que a mente dela ainda estava lá.
"- Toda vez que o final de ano começava a ser anunciado na TV, ela sorria..." - disse para um grupo de moradores - "E sempre que eu me vestia de papai noel, ela se agitava deitadinha... Eu passei os últimos Natais com ela, vestido de Papai Noel em casa... Terça-feira, eu acordei de madrugada e ela estava ofegante, liguei para a ambulância. Mas antes de eles chegarem ela já tinha partido. Segurou a minha mão e fez carinho na minha barba. Eu juro que no final ouvi ela dizer: Noel.".
No primeiro final de ano sem a Dona Lurdes, o Seu Mathias apareceu vestido de papai noel na rua, indo de casa em casa com seu saco de guloseimas. As crianças pequenas adoravam.

Uma vizinha lhe disse:
"- Seu Mathias, vamos combinar de levar as crianças na sua casa... O senhor não precisa vir até aqui, é arriscado, pode tropeçar, cair ou algo assim..."
"- Lá em casa não dá. O jardim não está bem cuidado e as crianças precisam acreditar na magia..."
Nesse final de ano, eu vi o Seu Mathias saindo de casa, deixando o saco de presentes no chão, se virando e fechando o portão bem lentamente. Levantando o saco com dificuldade, o apoiando nas costas, tirando um sininho do bolso e saindo pela rua dizendo:
"- HO HO HO, FELIZ NATAL!" -alguns metros depois as crianças pequenas começarem a aparecer gritando:
"- Papai Noel! Papai Noel aqui!".
Enquanto ele dava um docinho e um afago a cada uma delas.
Eu e outros vizinhos o acompanhamos sempre, alguns cuidando dos filhos, outros só se emocionando com a persistência  e carinho daquele senhor pelas pessoas e pelo Natal...
"- Eu acho que eles só queriam ser chamados de mãe e pai, mesmo que fossem a mamãe e o papai Noel..." - disse a vó do meu vizinho.
A umas semanas eu passei de carro pela casa dele e o vi mexendo no jardim, baixei o vidro e disse:
"- Seu Mathias, daqui a pouco já é novembro!"
Ele levou um segundo para me reconhecer e respondeu acenando:
"- Fala meu filho! O papai Noel está chegando..."
Verdade Seu Mathias, o Papai Noel está chegando, eu pensei.