quarta-feira, 22 de maio de 2019

Seu Joca e Dona Beatriz.

Se conheceram ainda pequenos. As famílias eram amigas, suas mães haviam sido vizinhas de infância. E cresceram próximas, sendo melhores amigas. Joca, era o apelido dado a Joacir da Rocha Filho. Beatriz, por outro lado, não gostava de ser chamada de Bia. E sempre se apresentou pelo nome completo:
"- Beatriz Weymuth Linhares. W - e - y - m - u - t - h." - soletrava mesmo sem ser questionada pelos interlocutores.

Mesmo sendo de dois reinos completamente diferentes o menino Joca e a menina Beatriz dividiam todo o tédio que as reuniões familiares forneciam a duas crianças. Por vezes, nos recreios do colégio em que estudavam, se viam e nem de longe se davam oi. Mas nos finais de semana de churrasco, enquanto seus pais se refestelavam na mesa, os pequenos se viam sem opção além de tentar encontrar um espaço em comum para ter companhia. Nas primeiras vezes, Joca pareceu um tanto quanto idiota a Beatriz. Corria muito. Suava muito. Subia em árvores e jogava frutas nela. Estava sempre sujo, ofegante e muitas vezes tinha um cheiro desagradável.
"- Eu não quero ir mãe!" - bradou a pequena Beatriz à sua mãe um dia enquanto a família Linhares se preparava para ir a casa dos Rocha. Seu pai continuou carregando o carro com cervejas, carvão e pães comprados para contribuir com o jantar. Sua mãe que arrumava o cabelo na frente do espelho lhe disse sem largar a escova:

"- Porque?"
"- Porque é chato! O júnior é um chato!" - reclamou a menina com uma longa trança feita previamente por sua mãe.
"- Beatriz, vou lhe contar um segredo, vem aqui..." - a menina chorosa se aproximou enquanto a mãe se virava para ela - "... garotos tem medo de meninas de trança!"
"- Tem medo?" - perguntou a pequenina com os olhos arregalados.
"- Sim, eles morrem de medo! Porque sabem que meninas de trança são muito corajosas. E que podem fazer coisas incríveis quando querem. Por isso eles correm tanto, se escondem e ficam de longe nos olhando..."
Quando sua mãe parou de falar, Beatriz tinha um sorriso poderoso desenhado nos lábios. Um sorriso infantil, mas de quem estava pronta para ter o poder de causar medo num animal tão selvagem quanto o menino Joca.
Naquele churrasco, após o jantar, a pequena Beatriz ficou mais tempo sentada na mesa dos adultos, sem entender quase nada que era dito. Mas sempre concordando quando sua mãe concordava e a admirando quando dava sua opinião. De vez em quando, a menina Beatriz acabava provocando o riso nos mais velhos por repetir exatamente o que a mãe havia acabado de dizer, tropeçando sobre as palavras difíceis... 

Joca, por sua vez, rondava a mesa como uma onça que observa uma presa. Espiando pelas frestas das portas e por trás dos sofás. De vez em quando se aproximando dos pais pra tomar um copo de refrigerante e depois correr para o mundo exterior, até reaparecer em algum lugar e repetir o processo.
O tempo fez o que o tempo sempre faz. E passou.
A pequena menina Beatriz e o peralta menino Joca se transformaram na Beatriz e no Joca. E a amizade dos dois ficou bonita de ver. Beatriz, alguns meses mais velha, ajudava o Joca nas provas de física e matemática. O Joca ficava feliz em revisar as aulas de história e regras gramaticais com sua amiga, mesmo tendo a impressão de que ela não tinha a mínima necessidade de revisar nada... No colégio, já passavam os recreios juntos. Com mais amigos, mas sempre próximos. No baile de formatura do segundo grau, Joca e Beatriz dançaram juntos. As famílias dividiram a mesa no salão. Foi naquela noite que Joca a beijou pela primeira vez, ela sorriu nervosa e o beijou de volta. Tudo aconteceu rápido numa sacada aos fundos do clube.
Beatriz foi estudar na capital, Joca seguiu trabalhando na loja dos seus pais. Quando o pai de Joca teve um piripaque e foi para o hospital, a Beatriz não demorou a aparecer. Seu pai faleceu em uma manhã de domingo, Beatriz segurou a mão do Joca durante todo velório.
No último ano de faculdade, Beatriz ligou para o Joca na loja:

"- Joca, eu vou me formar... Você dança no baile comigo?"
Ele sorriu.

"- Claro!" - respondeu a voz de Joca do outro lado da linha.
Eles se casaram em julho e a mãe do Joca disse que seu pai estaria muito feliz de ter ganho essa nova filha. Beatriz estava linda de noiva, com uma longa e espessa trança nos cabelos.
Com o passar dos anos, os pais dos dois se foram, um por um... E da barriga da Beatriz, duas  crianças rosadas saíram: João e Lúcia.
Um dia antes de sair de casa, Lúcia disse para sua mãe que não queria ir no aniversário do amiguinho porque ele era chato e tava sempre sujo.
Beatriz respondeu:

"- Lúcia, eu vou te contar um segredo: meninos tem medo de meninas de trança...". E viu Joca sorrindo perto da porta ao ouvir sua conversa com a filha.
A vida era boa, mas o tempo raposa que é, nunca se cansa de correr.

Tudo começou com uma febre que não tinha explicação. Logo os médicos entenderam que havia algo de errado. E Beatriz precisou ser hospitalizada. Foi rápido demais, mas afinal, qual morte não é? Joca precisou deixar os filhos com um primo e ficou ao lado de Beatriz todo o tempo. Um dia o médico lhes disse que a doença havia avançado muito e havia restado pouco para se fazer.
Joca chorou. Beatriz fechou os olhos, mas mesmo assim algumas lágrimas lhe escorreram pelo rosto. Seus filhos foram trazidos e ela conversou com cada um deles separadamente.
No dia do enterro, chovia uma chuva fina de céu cinza e tempo frio. Joca estava abatido, quase irreconhecível. João chorava muito, inconsolável. Mas Lúcia parecia de alguma forma suportar tudo aquilo.
Muitos anos se passaram e Joca envelheceu cuidando dos seus filhos. Foi no casamento de Lúcia, enquanto fazia o brinde aos convidados que disse:
"- A Beatriz ficaria muito feliz de estar aqui hoje. De fato, eu gosto de imaginar que ela está..." - e engoliu algumas palavras... - "Eu sei que hoje é um dia de alegria... Mas eu nunca agradeci a ti Lúcia, por cuidar de mim e do João logo após a morte da tua mãe. Foram dias muito difíceis. Tu eras só uma menina, mas cuidasse de nós como uma adulta. De alguma forma tu, muito jovem, suportou tudo aquilo de um jeito que eu, em idade adulta, não pude..."

Lúcia que estava de pé ao lado do marido, apontou para o cabelo e disse:
"- Tá tudo bem pai, eu estava de tranças...".