quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A cidade tem casa.
A casa tem cano.
O cano tem água.
A água, oceano.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Conversas fulanas nº742

Chega pra cá. Pode vir. Está tudo bem. Deixa pra lá tudo isso aí que te dá um nó na garganta. Segura essa taça, dá um gole, senta aqui. Deixa eu te ouvir falar sobre a vida. Isso vai passar, tudo vai passar, se não passar agora passa depois. Mas passa. Deixa que o canto saia ruim, só abre teu coração. A gente se conhece a tanto tempo que nem me lembro de como era antes de ti. Pode confiar nos meus ouvidos. Eles são simples, mas sabem guardar bem a nossa perturbação. O mundo não é essa masmorra, tu sabes também. O inferno são os outros, lembra de Sartre? Sim haha, isso mesmo. Lembra quando começamos a escrever? Só conseguíamos escrever direito no intervalo do nascer ou do por do sol... A gente passava o dia com um olho naquele caderno de capa preta. Quase que atormentados, lembra? Aí quando dava o final da tarde, a gente corria para a varanda e deitava de costas no chão, olhando para o céu. E deixava as mãos dançarem sobre o papel. A gente descobria um monte de coisa escrevendo. Escrevíamos até de noite. E depois passávamos dias lendo e relendo e lendo de novo o que havíamos escrito... Algumas vezes, eu vinha te avisar que o por do sol estava pra começar e você logo aparecia com o caderno e as canetas. E ali a gente escrevia, até que algum adulto nos chamasse pra fazer algo chato.
"- Já vou mããããeeee!" - haha lembra?
Esse tempo passou. Todo tempo passa. Na verdade, como tu mesmo escreveu: o tempo foi feito para passar. Se parar de passar, não vai mais dar tempo de nada. Sim, eu me lembro. Eu ainda leio teus textos antigos. É, eu não me esqueci não. Já fazem o que? 9, 10 anos? Tu tem quase 40? Sim, muita coisa aconteceu. Mas tu continuas voltando aqui. E o por do sol como está? Amarelo antigamente? Céu roxo, vermelho, azul e verde? Quantos segundos dura? Sim, haha, menos do que deveria... Sempre foi assim. Ainda assim, num instante de saudade a gente se encontra para conversar. É preciso coragem para se escutar. A maior parte do mundo não escuta a ninguém, muito menos a si mesmo. Eu entendo. As vezes a tua palavra sai torta. Quase todo mundo já sofreu com isso. São os erros ortográficos da vida, isso acontece. Tipo um desenho com um traço errado. Ou um acorde meio tom abaixo do que deveria. A vida tem dessas também. Tu vais rir se eu te disser que o show não pode parar? Vais né haha... Sim, mas é isso. A peça ao vivo não permite ensaios. Tá bom, parei haha. Não precisa ir embora não. Fica mais um pouco. Lembra daquela fase "é fácil ser feliz?". Como imaginávamos cenários de cinema, com paisagens fantásticas. Cheias de cachoeiras, bosques e montanhas? E depois ficávamos procurando fotos daqueles lugares no planeta? Lembra quando nós achávamos paisagens parecidas com as que a gente imaginou? Era bem maluco aquilo...
Melhorou? Tá tudo bem. Já te disse, tu é mais sereno do que pareces ser. É só te escutar, que vais ver também. A chuva e o furacão não são o céu. Nem o azul ou o negro da noite cheio de estrelas. O céu é aquilo que fica em cima da tua cabeça quando teus pés estão no chão... E nada é permanente. Tudo precisa passar.
Até essa conversa.
Vai lá. Te vejo depois.
Manda um abraço pro pessoal. E obrigado por aparecer.
Te cuida.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

O Brasil em eleição (2018).

Como eu quero começar esse texto? Depois de escrever umas 8 frases diferentes e apagar eu chego a conclusão que a forma mais honesta é assumir que não sei como começa-lo.
Hoje é dia 16 de outubro de 2018. E o segundo turno das eleições no Brasil nos deixaram com as opções de Jair Bolsonaro, Fernando Haddad, anular ou votar em branco. 

É isso.
Para poder falar sobre esse assunto eu preciso voltar a primeira vitória do Lula a presidência da república. Em outubro de 2002, eu assisti a camera do helicóptero filmando o carro que saia da garagem com então presidente eleito pela primeira vez, Lula. A camera o acompanhou por todo trajeto até o palanque armado para o discurso da vitória. E enquanto ele subia no palco, o Brasil fervia em sonhos. Borbulhávamos pela possibilidade de um futuro diferente. De uma nação soberana, com mais justiça, menos corrupção, menos tudo que éramos e mais tudo que nunca conseguimos ser de fato...
Eis que o ex presidente Lula se aproxima do microfone e a população pouco a pouco se cala para ouvi-lo.
Ele chora um choro bonito. Um choro de futuro. Um choro de quem é verdadeiro. Um choro de nascimento, de vida.
E as suas palavras foram:

"- A esperança venceu o medo."
O mundo o ouviu dizer essas palavras. Elas ecoaram por toda galáxia conhecida. Reverberando corações por todo globo.
A esperança venceu o medo. 

Essas palavras me marcaram profundamente. Eu nunca votei no Lula, não tenho certeza por quê. E não pretendo entrar nessa questão aqui. Mas a verdade é que eu nunca votei para o PT na minha vida. É claro que isso não me impediu de compartilhar dessa esperança, como a grande maioria dos brasileiros...
Mas os anos que se sucederam daquela frase, com a reeleição de Lula e os 6 anos de Dilma com mais 22 meses (até aqui) de Temer acabaram sendo um pouco diferentes do que o Brasil esperava. Perceba caro leitor(a), diferentes do que o Brasil esperava não é bom ou ruim. E novamente, tentando não analisar especificamente o sentimento individual ou regional sobre esse período, eu pulo diretamente para o extrato que essa equação nos deixou. Eu vou diretamente para o cenário que se cristalizou no Brasil após esse período.
Somos divididos hoje entre os que acreditam que o governo Lula (quase ninguém fala de Dilma) foi bom e os que não acreditam nessa sentença. E é nesse cenário, nessa dicotomia aguda, que nos incluímos a equação o fator Jair Bolsonaro.
É como se eu começasse outro texto para falar dele. Serio. É até mais difícil do que o primeiro parágrafo que escrevi lá em cima...
Jair Bolsonaro é um homem com uma longa história política a ser considerada. Bolsonaro assume como vereador no Rio de Janeiro em 1989 e já dois anos depois (1991) vence a eleição para Deputado Federal, cadeira que ocupa até os dias de hoje. São até aqui, 29 anos de cargos públicos, de vereador a última eleição como Deputado Federal. Nesse período, trocando diversas vezes de partido político (ao todo os partidos foram: PDC, PPR, PPB, PTB, PFL, PP, PSC e PSL).
Dono de frases polemicas, Bolsonaro que é da reserva militar, começou de leve e aumentou a temperatura no decorrer da vida pública. Hoje se posiciona sobre alguns dos grandes tabus da sociedade com frases curtas e determinadas. É a favor da liberação das armas, contra o aborto, contra a legalização das drogas, a favor da preservação do status de modelo único da família tradicional cristã, já declarou mais de uma vez que é a favor do uso de violência por parte da polícia e se posiciona como "alguém diferente que vai mudar essa porra toda que está aí...". Não sei muito mais o que escrever sobre ele.
Agora é importante falar um pouco sobre a realidade da grande e tão ampla sociedade brasileira.
Nós somos, talvez, uma das sociedades mais corruptas do mundo. Matamos mais pessoas por ano do que muitos países que são considerados zonas de guerra. Somos os reis do altos impostos e da impunidade. Nossos sistemas básicos de educação, saúde e segurança estão em colapso a décadas. Tudo demora muitos anos para acontecer, quase sempre é tarde demais. Quase sempre custa mais do que deveria. Quase sempre não fica como deveria ser. Quase sempre decepciona o contribuinte que pagou seus impostos para utilizar do serviço  ou obra... A sensação de ser brasileiro pode ser compilada em uma única palavra: desespero. E para piorar, estamos a tanto tempo em desespero que já nos acostumamos com o sentimento. É uma espécie de trauma que foi fagocitado pelo mind set coletivo. E agora faz parte do nosso povo ser "brasileiro e não desistir nunca".
Por tempo demais nós vivemos assim. Ouvindo que vai melhorar, que vamos mudar, que vamos conseguir, que vai dar certo... E até hoje não aconteceu. E antes que alguém me diga que deu certo, mas que não foi pra gente que deu certo. Foi para quem mais precisava, eu vou te dizer que dar certo inclui uma mudança que todo Brasil espera. Nordestinos e sulistas. Analfabetos e doutores. Mulheres, idosos, religiosos e ateus. Todos nós, acreditamos que mudar o país passa por um processo de redução da corrupção. Então, mesmo que a gente assuma (e eu não estou assumindo que sim nem que não) que Lula reduziu a pobreza do Brasil. Ainda vamos confrontar a dura verdade de que apesar disso, o PT continuou diversas práticas corruptas. Comprovadas por escutas, delações, processos e julgamentos.
Aqui, em 2018 fundos, quando o país opta por Bolsonaro e Haddad, nós optamos pelas presas do tubarão ou do tigre. Qualquer um dos dois nos fará sangrar, não se engane.
Não dá nem para dizer que isso é novidade. A gente sempre sangrou. Do negro nascido aqui e educado na chibata, até o jovem que toma um tiro ao ser assaltado na zona nobre do Rio de Janeiro.
E não vai ser agora que vamos parar de sangrar. 


segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O Rei morreu!

Todos eles estavam naquele grande salão que antecedia os aposentos reais. Era uma grande sala feita de tijolos de pedra. Com uma única janela que ia do chão até os 4 metros altura do teto. A sala, em outras épocas servia para que o Rei e a Rainha pudessem ter encontros urgentes sem serem importunados na sua intimidade. Havia uma porta de saída para a escada que levava até os acessos da sala de jantar, uma sala de reuniões privada, a sala do conselho real, o pátio com o jardim privado, uma biblioteca e os aposentos dos clérigos. E uma segunda porta que levava diretamente ao quarto íntimo do Rei e da Rainha. No quarto havia uma segunda antessala, bem menor que a anterior, e depois dela um grande passagem sem portas até a gigantesca cama com dossel, as penteadeiras, a grande varanda e armários. E é claro, a uma latrina reservada que era limpa toda vez que a família real deixava o espaço.
Todas as famílias de alta linhagem do reino estavam naquele grande salão. Todas as cadeiras, sofás e espreguiçadeiras estavam ocupados, alguns se viam obrigados a ficar de pé... Eram ao todo, 26 pessoas. Alguns nobres estavam sozinhos, alguns trouxeram suas esposas, outros seus pais e mães já em idade avançada. Era possível sentir a tensão no ar. O silêncio era vez ou outra interrompido pela tosse ou espirro de alguém. Haviam ali homens vestidos em seus trajes de dormir, cobertos por grossos robes ornados com pedras e artes. Na porta do aposento, Sir. Nuvem Branca, o chefe dos cavaleiros reais montava guarda como uma estátua de 2 metros de altura, em uma armadura brilhante e com a mão direita sobre o punho da espada embainhada em sua cintura. Sua capa azul e branca lhe escorria as costas, lambendo até o chão. O homem não parecia piscar ou respirar, transpirando distinção com seu forte queixo de barba bem aparada e uma boca em formato de linha reta. Atrás dele, outros 6 cavaleiros se mantinham.
A pouco mais de uma hora, um mensageiro particular do rei havia sido enviado a cada um dos aposentos dos nobres da corte. Ele dizia de porta em porta:
"- Boa noite meu Lorde! Sinto muito em perturba-lo. Mas vossa presença é requisitada nos aposentos reais em nome de vossa Majestade, imediatamente!"
Não demorou muito para que a sala estivesse repleta por todos Duques que representavam os interesses das famílias reais na corte. Muitos, como dito, vieram de pijamas e foram atendidos pelos serviçais em seguida, lhes trazendo seus robes ou capas. Desde a primeira chegada, os únicos que ali estavam presentes eram os cavaleiros da guarda pessoal de vossa majestade. Quando o último nobre chegou, Sir. Nuvem Branca sinalizou para um soldado que entrou no aposento real silenciosamente e voltou acompanhado pela mãe do Rei, a Duquesa de Gravierth Flores de Arco-iris. Ela estava trajada com um vestido de cor verde escuro e tinha os cabelos presos em um grande coque. Seus olhos estavam inchados, revelando que chorara muito a pouco tempo. E torcendo as mãos sobre um pano veio até o meio do salão e se virou lentamente para Sir. Nuvem Branca que a encarava mais sério do que nunca... A sala se encheu de comentários, algumas perguntas e muitos murmúrios.
"- Senhores..." - disse discretamente, sem subir a voz.
Mas sua fala foi como uma taça de vinho derramado no oceano.
"- Senhores... por favor..." - tentou novamente sem conseguir.
Foi quando Sir. Nuvem Branca deu um firme passo a frente e batendo com uma das mãos contra a placa de aço do seu peitoral disse em voz alta, mas sem gritar:
"- Ordem! Ordem agora! Silêncio para que a Duquesa das Flores, vossa majestade fale! Silêncio!"
E a sala se calou completamente.
Nesse momento a porta do quarto real se abriu completamente e um sacerdote acompanhado por um noviço saíram do quarto. Os dois trajavam roupas brancas que estavam completamente manchadas de sangue real. Muitos nobres se levantaram em susto, mas antes que fosse possível falar qualquer coisa a Duquesa real disse:
"- O Rei está morto!" - e as lágrimas lhe escorriam pelo rosto como uma forte chuva de verão que começa sem aviso... O sacerdote trazia uma almofada com a coroa real repousada em cima. A guarda real se ajoelhou imediatamente. E um a um, todos os nobres, dos mais idosos aos mais jovens também se ajoelharam. A Duquesa continuou: 
"- Ferido em batalha contra o Vil Presa Afiada, o Rei Felipe Flores de Arco-iris está agora morto! E é preciso nomear um novo Rei. Porque um Rei sempre precisa haver..."
O sacerdote se aproximou da Duquesa e em uma reverência lhe ofereceu a almofada com a coroa real. A Duquesa levantou a coroa com as duas mãos dizendo:
"- Meu filho Thiago, onde está?"
E um rapaz com não mais que 15 anos de idade se aproximou vindo por trás dos guardas de dentro dos aposentos reais.
"- Estou aqui minha mãe..." - disse ele com uma voz firme e os olhos cheios de lágrimas.
A Duquesa dobrou um dos joelhos e esticou os braços. Thiago se aproximou e dobrou a cabeça para baixo, arqueando levemente uma das pernas, e a Duquesa lhe colocou a coroa sobre a cabeça. Enquanto o filho ficava reto novamente, sua mãe dizia:
"- É com a tua palavra que juras honrar a Deus e ao Reino?"
"- Sim, é." - ele respondeu.
"- Então temos um novo Rei." - disse a Duquesa se ajoelhando em prantos. - "...serás nomeado ao nascer do sol deste dia...".
E enquanto todos se levantavam e a Duquesa retornava para o leito do seu filho morto, a voz do Rei dizia:
"- Honrarei a Deus e ao Reino, mas antes vingarei o sangue da minha família derramado. Prepare-se Presa Afiada, seu destino se aproxima....".
Ao passar por Sir Nuvem Branca a Duquesa sentiu seu braço sendo puxado levemente e virou a sua cabeça de forma rápida para os olhos do cavaleiro. Ele a encarava, ainda sério, enquanto disse:
"- Duquesa, ele não deve lutar. Não está pronto!"
Ela olhou para a grande mão do cavaleiro que a segurava o antebraço somente tempo o suficiente para que ele a soltasse e olhasse para baixo com vergonha. E então falou:
"- Ele é o Rei, Sir. Você o questiona?" 
"- Jamais alteza..."
"- Pois bem... Dessa vez, tente morrer no lugar do meu filho e não traze-lo morto para casa..."
E lhe deu as costas.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Tudo que é preciso.

As dores da alma não encontram acalento nas coisas do mundo. Sentir a alma latejar, pode ser uma das piores sensações que uma criatura viva pode sentir. A alma, quando dói não abandona a dor facilmente. É diferente de bater um dedo do pé em uma paralelepípedo saltado da rua. A topada dói claro. Pode até sangrar, quebrar a unha e precisar de pontos em alguns casos. Mas a dor da alma é uma sensação latente que normalmente leva décadas para se entender. Alguns de nós recorrem a terapia, outros a remédios, tem aqueles que encontram conforto na gentileza das amizades e nas verdades das taças de vinho. Não vou julgar. Cada um lida com as suas questões como bem entender. Respeito é uma forma fácil de compreender o outro. Aquele que você não respeita, não é compreendido por ti.
De qualquer forma, pensei numa solução para as minhas dores: escrever esses textos. Alguém me diz que escrever é destilar, é refinar os sentimentos. E pode ser verdade. Muitas vezes, meu dedos dançam no baile sobre o teclado e eu mal percebo o que eu mesmo estou dizendo. É uma forma bem peculiar de liberdade. De se auto conhecer. Escrever e reler o que foi dito. Mas nesse caso, escrever não é preciso. Não no sentido de necessidade, mas de exatidão. Quando se escreve, ou se olha para dentro de si mesmo, não se tem certeza de qual será o destino. Uma jornada sem volta, quase todas as vezes. Um mergulho para dentro de si próprio. Gerando um distanciamento sobre o todo que somos.
Isso é algo a se fazer em um novo parágrafo: toda vez que se assume uma viagem desse tipo, um novo "si próprio" nasce. Toda vez que se toma banho de mar, que se deixa para trás alguma verdade inquestionável que carregávamos no peito, toda vez que se dá um passo em uma nova direção, uma nova versão nossa se manifesta. E a falta de precisão é a poesia desse movimento. Como um desenho antes de ser desenhado, naquele breve instante entre o lápis e o papel, no qual os olhos imaginam e as mãos se contraem para riscar o primeiro traço. Não há desenho algum ainda. Não há traços. Só existem pensamentos, esperança e laços. E tudo se desfaz na linha que é deixada no papel. Tudo se justifica. Até as imperfeições mais evidentes. Quando há entrega, não há erro. Um passo dado em direção ao desconhecido é mais honesto que um coração que busca o abrigo comum. Respiramos enquanto nossos corações batem, centenas, milhares de vezes por dia. E não há ninguém que possa respirar por você. É preciso que cada um respire o próprio ar.
Assim como enfrentar as próprias jornadas. Alguém pode lhe dizer como ir. Quando ou como ir.
Mas ninguém poderá conhecer a paisagem por você.

É preciso que cada um enfrente as dores da própria alma.
Não há atalho para o seu próprio destino.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Sobre ser cego e ver.

Sentei porque queria escrever um verso que a tempo me persegue. Mas meus dedos se recusam a me obedecer. Tento desenhar, ligo alguma música e mergulho no meu fone de ouvido. Enquanto afundo, olho para a distância da superfície aumentando e sinto minha alma e minhas vísceras indo em direção ao desconhecido. Eu gosto.

A força da gravidade não impede o espírito de sonhar. - ouço uma voz me dizer.
Eu concordo.

E lá se vai a realidade nas águas turvas desse oceano de pensamentos e sentimentos soldados como moléculas de água. Dentro desse líquido transparente eu vejo tudo distorcido. Seria isso um útero? Suspiro uma respiração longa e deixo a sensação de gelado me brisar ainda mais. Tenho sono. Será um sonho? Será que eu estou sonhando que estou sonhando?

Tudo que tem preço, perde o valor. Vejo escrito na pichação de rua.

Fica mais leve o peso do meu coração. E agora que sou mais velho, meu bom coração é mais gelado. Canta o Arcade Fire em um coro bonito e triste.
Passam por mim alguns papéis molhados. Tento segurar um e ele se desfaz ao toque das minhas mãos. De longe acompanho um e consigo ler algumas palavras. São antigas ideias que tive, dispensadas em velhos baús. Ideias que apesar de não serem usadas, foram a semente para outras que foram. Desenhos ruins (nenhum é realmente bom), músicas muito tristes e pensamentos sem endereço no mundo físico.

Só existe amor por dentro. Amor não é o que se diz, amor é sentir.

Abro os olhos e a descida continua.
Tem um vulto nadando ao meu redor. Sem forma, rosto ou membros. Antes que eu possa perguntar, aquilo diz:
"- Me interesso por esse lado teu..." - com uma voz gelada que não solta bolhas de ar.

"- Qual lado?" - pergunto soltando algumas bolhas de ar...
"- Esse que tu visita só vez ou outra. Esse que tu não conheces quase nada. Esse." - e sorri um sorriso com dentes afiados.

Sinto medo. E aquilo desaparece em seguida se esgueirando rapidamente para longe.
Agora fica mais escuro. A superfície está longe, parece a anos de distância.

O coletivo humano é violento até quando luta por paz.

Sinto meus pés tocando o fundo. Uma areia fina se levanta. E a escuridão é quase completa.
Meus ouvidos tem um zumbido da pressão. E para cima, parece que há uma vida de distância.
"- Nada será mais como era antes..." - ouço uma voz dizer.
A procuro.
"- Tu é a voz criança." - ele me diz.
Paro e fecho os olhos. Me sinto adormecer. Sem oxigênio. Mas sem agonia. Abraço esse sono como a um filho que se aconchega na própria mãe. E durmo.

Os olhos só podem ver uma pequena parte do todo. Para o resto, é preciso ser cego.

Acredito nisso. E não duvido da vida.



terça-feira, 18 de setembro de 2018

Para onde vamos?

A democracia brasileira tomou uma facada no abdomen. Foi uma única perfuração, mas a faca rasgou fundo as suas entranhas. A democracia que estava sendo carregada, não porque fazia campanha política, mas porque já não conseguia caminhar sozinha a décadas. Gemeu de dor enquanto o aço frio rasgava seus tecidos e penetrava agudo na sua barriga. Muitos demoraram para entender o que estava acontecendo. Perseguiram e agarraram o esfaqueador. A democracia foi carregada até o hospital mais próximo. Os homens e mulheres que a carregaram gritavam palavras de ordem pelo caminho. Pedindo espaço, pedindo pressa, pedindo justiça, prometendo vingança. A democracia foi fotografada com um braço largado para baixo, sofrendo com a expressão de agonia que só quem é esfaqueado consegue fazer. A foto correu o mundo em minutos. Time, People, BBC, CNN, NY Times, The Guardian... Todos a publicaram.
"Democracia esfaqueada!" - diziam as manchetes.
"Hoje a Democracia brasileira foi esfaqueada na barriga" - diziam os telejornais.
A democracia, coitada, que a tempos já sofria de uma série de doenças crônicas. Foi enviada para um hospital público. A cena era digna de um filme apocalíptico. Uma fila de pessoas sangrando, chorando e morrendo. Da porta do hospital até o final do mundo. A turba que carregava a Democracia correu para dentro do pronto socorro, todos sujos com o sangue que vertia do furo.
"- Não temos médicos!" - logo disse o atendente.

"- Mas essa é a Democracia!!!" - bradou um dos que a carregavam.
"- Eu sei! Mas não temos como ajudar, o hospital está falido! Não tem remédios, médicos, nada...!"
E a revolta foi geral. Alguns ameaçaram bater no atendente. Exigiram atendimento. Chutaram paredes, móveis e quebraram as janelas. A Democracia foi deixada de lado, deitada no chão sujo e frio. Um par de pessoas se ajoelharam junto a ela. Uma mulher chorava. Um homem gritava. Um cachorro latia. Alguns carros buzinavam na rua. Muitos tiravam fotos com seus celulares. Gravavam vídeos...
"- Estamos aqui na cidade de Brasilzópolis e a Democracia não pode ser atendida no hospital porque não tem médicos! Isso é um absurdo... Até quando?"

A Democracia desmaiou, depois de sangrar uma poça gigantesca no chão. Uma mulher disse que a poça tinha o formato do rosto de Jesus. Um homem disse que era o brasão do seu time de futebol. Um cachorro magro e doente começou a lamber o sangue ainda quente. Um homem o afastou com um chute seco, seguido de um ganido desesperado.
A TV estava ali para filmar o momento. Um helicóptero sobrevoava a cidade, transmitindo ao vivo tudo para um telejornal de audiência relevante. Um padre, um pai de santo e um monge budista tentaram se aproximar para ajudar. Outra confusão começou. Alguns eram contra outros. Ninguém se ouvia. Muitos gritavam que a Democracia não iria resistir muito mais tempo. Que estava morrendo. Carros foram apedrejados, vitrines saqueadas, telefones públicos depredados. A cidade fervia em raiva e indignação.
Por fim, a Democracia morreu. Cercada de desespero, dor e descaso. Uma mulher jura que as suas últimas palavras foram:
"- Salvem o país!"
Outros dizem que ela não disse nada, só parou de respirar com os olhos abertos, enquanto o sangue lhe escorria sem parar...
A TV deu o horário e o local do enterro. E em seguida rodou um comercial.
Depois de alguns dias a turba se acalmou. E todos pudemos viver as nossas vidas como se nada tivesse acontecido.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Me cabe.

A frase curta me coube.
Silencio longo,
breve fim de tarde.
Nesse barco a vela

que navega na tempestade.
Mudam-se dias e anos.
E o relógio me persegue.
Quanto mais eu bebo,

maior é a sede.
O pensamento sucinto,

diz que sinto:
Muito e pouco

em uma palavra só.
Silêncio, meu velho amigo.
Faz tempo que não te chamo.
Faz tempo que não te amo.

Faz tempo que não clamo:
lacônica é a vida.
Que sem palavras

é dita.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Contos insólitos.

- Por exemplo, toda vez que um homem urina eu interfiro. Pouquíssimas mulheres se quer imaginam isso. Dá muito trabalho manter essa situação, mas eu faço questão de manter isso desse jeito a centenas de anos. Na verdade, isso me ajudou muito a decidir como seria o sexo de vocês... - me disse Deus.
- Como assim? Que merda tu tá falando? - perguntei.
- Não usa essa palavra na minha presença. - respondeu ele me encarando, meio puto.
- Ok, desculpa. Do que estás falando Deus? - rebati.
- Vou te explicar: - ele falou abrindo um sorriso empolgado e juntando as palmas das mãos - fiz o ser humano parecido comigo. Capaz de grandes feitos. E apesar de dar todas as dicas para vocês disso, é algo que homens e mulheres não percebem. Mas a capacidade de vocês para a realização de obras só é limitada pela sua natureza mortal. Tirando isso, nós somos idênticos. Eu sei que a diferença é grande, claro, eu não sou mortal e não existo da mesma forma que vocês. Fica tranquilo, eu sei que não entendes de fato o que isso quer dizer e tomei esse cuidado durante o processo. É importante que vocês realmente não compreendam a diferença entre o divino e o mundano. Isso os torna mais dóceis. Só que o que eu não sabia é que vocês se tornariam tão excessivamente "terrenos". Tão "carnais". E isso acaba os tornando mais agressivos. Eu queria ver o que ia acontecer, confesso. Foi divertido esperar esse resultado. E ao mesmo tempo, valeu a pena. Vocês simplesmente ignoraram toda capacidade que eu lhes dei e se fecharam em um físico absolutamente limitado. Vocês são como enormes águias selvagens que se recusam a sair de dentro das gaiolas com as portas escancaradas em que vivem... Vocês olham para o céu azul e pensam: "como eu gostaria de estar lá fora voando...". Mas simplesmente não se movem para fora da jaula... Chega a ser engraçado, as vezes.
- Acho que eu entendi... - respondi olhando para o nada.
Ele ficou me encarando, levou a mão a sua barba, a acariciando levemente e disse baixinho:
- Pode perguntar...
Eu movi meus olhos para os dele e percebi que seus olhos eram multicolores. Verdes, azuis, negros, marrons escuro e claro, ao mesmo tempo. Acho que eu vi uma galáxia dentro da pupila dele. Isso me facionou por alguns instantes até eu perceber que realmente queria fazer uma pergunta. Quando dei por mim, ele estava sorrindo um sorriso paciente e me encarando.
- Mas o que isso tem haver com urinar Senhor? - perguntei com o senho franzido.
Ele gargalhou:

- EXATAMENTE! Ahhh como eu amo vocês.... Que criaturas fantásticas. HAHAHAHAHA - gargalhava - Que criaturas maravilhosas. Perceba pequeno, acabei de lhe dizer que eu os fiz tão especiais quanto um ser vivo pode ser. De todas as formas vivas, vocês são a mais espetacular. Mais de 6 bilhões de pequenos Deuses com a força para fazer o inimaginável no mesmo planeta e vocês se preocupam com o que? Com papel higiênico! HAHAHAHAHHAHAHAHAHHAHAHHAHAHAHA. Eu já contei essa piada pela galáxia inteira e sempre funciona HAHAHAHAHAHAHA. Eu acho isso o máximo HAHAHAHAHAHAHA...
- Eu não entendi... - disse envergonhado.

- Eu sei HAHAHAHA, eu sei... - respondeu ele lavando as lágrimas dos olhos de tanto rir - eu sei que você não entendeu pequenino...
Fiquei lhe olhando. Ele continuou rindo um pouco e voltou a falar:
- Te explico... Nem sempre eu achei graça dessa situação. E fiquei realmente possesso quando os primeiros de vocês começaram a usar meu nome e imagem para fazer todos os absurdos que fizeram no passado...

- Tipo, a idade média? - perguntei.
- ISSO! Ótimo exemplo. A idade média me deixou transtornado. Admito. Quando vocês começaram a se doutrinar de formas tão absurdas, a se queimar em fogueiras "santas" - ele fez as aspas com os dedos - isso realmente foi demais para mim. A peste negra foi um golpe mais pesado do que eu imaginava, mas enfim, foi como eu escolhi na época. E não vou me justificar. O tempo passou e nós conseguimos sair dessa juntos. Vocês mudaram o foco absurdo do que era a religião e o conhecimento e eu peguei mais leve na minha ira. Mas é aí que está pequenino: ao mesmo tempo que vocês escolheram outro caminho, a idiotice da humanidade permaneceu ali. Latente, sim. Mas completamente viva. E ainda servindo de pano de fundo para quase tudo que vocês fazem. Essa energia imediatista que busca prazer, lucro e satisfação me incomoda ainda. Mas não tanto quanto a forma inicial dela... Muitos ainda morrem por motivos completamente humanos. Eu sei bem. Mas é diferente daquele primeiro pulso. Eu fiquei nervoso no começo. Mas depois de dois ou três séculos eu resolvi entrar na brincadeira. No começo eram todos os homens. Porque as mulheres já vem sofrendo demais pela presença masculina. Vamos ser sinceros: homens são escrotos. Então eu os escolhi exclusivamente para passar por esse processo. Pensei em simplesmente matar todos vocês e fazer com que as mulheres não precisassem mais de vocês para procriar a raça. Seria um pouco drástico. Então, voltei atrás e comecei a fazer todo homem do planeta se sujar quando urina. Quanto mais "importante" - ele fez as aspas de novo com as mãos - é o homem, mais ele se suja ao urinar. Algumas vezes, isso realmente interfere na história. Por exemplo, eu fiz Cabral se molhar todo ao mijar pela primeira vez na baia do Brasil. Ele quase caiu no mar HAHAHAHAHA. Foi uma cena e tanto, ele pendurado para fora do barco com aquele pintinho sacudindo ao vento. E aqueles primeiros cinco índios rolando de rir na areia, assistindo tudo. De fato, essa abordagem ajudou a entrada dos portugueses nas primeiras tribos. O que foi bem desesperador depois. Mas enfim. Foi como foi.
- Então toda vez que eu me mijo, a culpa... é tua!?

Ele abriu um sorriso ao dizer:
- Quase sempre. Ontem por exemplo, eu fiz o Trump mijar os próprios sapatos e molhar a calça logo depois. Ele fica enfurecido toda vez. Semana passada foi o Bolsonaro. Eu adoro fazer políticos se urinarem. É especialmente agradável, ve-los irritados.
- Mas porque?!? - perguntei de novo.

- Para que eles se recordem da sua humanidade. Para que eles se lembrem de que são feitos de carne e que a carne morrerá em um curto espaço de tempo.
- Cara, eles não entendem isso... - disse rápido.
- Entendem. Mas se esquecem rápido. Toda vez que eles se sujam de urina eles se lembram de que não são mais do que ninguém. Alguns até param de se irritar com o passar do tempo e pensam a respeito com paciência. Talvez seja a natureza divina da criação de vocês, talvez seja algo exclusivamente masculino, talvez eu tenha realmente deixado as mulheres com a melhor parte de ser humano. Eu ainda não entendi totalmente. Mas o fato é que fazer vocês se urinarem é algo simbólico que tem tradução prática. Sabia que depois de um tempo, muitos de homens começam a sentar no vazo para fazer xixi? Como as mulheres. 
- Não sabia... - respondi.
- Sim! E sabia que os homens que sentam no vazo para fazer xixi raramente fazem parte do grupo de homens que agridem mulheres de alguma forma? - ele perguntou.
- Não... - disse novamente.
- Pois é. Eu também não entendi isso completamente. Mas desconfio que vocês, talvez todos vocês, precisem de uma ajudinha para desenvolver mais sua empatia. Não só os homens, só que muitas mulheres já desenvolvem a empatia tendo filhos. Mas de qualquer forma, tenho pensando em fazer algo para elas também.
- Ok... Que loucura. Eu me sujei ontem fazendo xixi.
- Eu sei. - ele concordou.
- Só que seca rápido. Foram só umas gotinhas.
- Sim, eu sei. - disse ele sorrindo.
Fiquei em silêncio.
- Acho que eu vou ao banheiro agora.
Ele não disse nada, só continuou sorrindo.

Instantes depois eu sentei na privada para fazer xixi.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Aqui de longe, o infinito parece tão pequeno.

Minha mãe se chama Selma e nasceu em Florianópolis a quase 76 anos atrás. Ela conheceu meu pai e se mudou para Blumenau. Se casou, teve três filhos e se inundou dessa cidade. Se tornando alguém daqui com o passar dos anos, sem nunca ter deixado o sotaque de "manezinha" para trás...
Quando todos nós recebemos a notícia do nascimento da terceira filha da minha irmã quase do outro lado do planeta terra, ela mesmo afirmou que seu nome seria Erica. Uma criança saudável, linda e perfeita. Vimos todos juntos a pequena Erica dormindo no colo da mãe, ainda no hospital. E foi difícil segurar as lágrimas para mais de um de nós. Ficamos extasiados com as suas pequeninas mãos, seu rostinho perfeito e a sua carinha séria enquanto dormia o sono de quem acabou de chegar nesse planeta. E não está nem um pouco preocupada com as idiotices tremendas que nós os adultos estamos.
Quando desligamos, logo corri para a internet para pesquisar sobre o nome que a minha irmã e seu marido escolheram. Erica, vinda de Erarich. Que significa "Soberana águia". Aquela que comanda dos céus. Que persevera. Achei justo e muito bem escolhido. Fiquei pensando em rimas com Erica. Em desenhos com essa grafia. Em referências, em personagens, livros, em filmes com Ericas. Não sei, mas minha mente parecia querer se aproximar da pequena Erica. Nem que em sonho. Em desejo de boa vida. De bom futuro. De boa sorte.
Foi quando o marido da minha irmã avisou ao planeta que seu nome já não seria mais Erica. Que a sua terceira filha seria chamada Selma. Que eu consegui ver: minha irmã também se mudou para outro lugar. Se casou e teve três filhas. Uma mais linda que a outra. Só que dessa vez, nós somos aqueles que ficaram para trás.
Eu fico imaginando que é engraçado como a vida realmente se repete. A passagem para outro planeta, país, cidade... O laço matrimonial, o nascimento das crianças. E a saudade que fica tanto com quem vai, como com quem fica.
Voltei correndo para a internet, para pesquisar agora o nome da minha nova sobrinha e da minha mãe. E descobri que Selma significa "protegida por Deus", "capacete, proteção". Me aliviei, a pequena Selma já nasce com o nome de uma guerreira. Com o dna de quem é humilde e gigante ao mesmo tempo. E por uma linda escolha dos seus país,  já vem a esse mundo com uma armadura mágica que não tenho dúvida, vai lhe ajudar muito.
É engraçado como a saudade pode ser apaziguada com uma foto, um vídeo, um telefonema. E ver minha irmã feliz ao lado da sua família, das suas filhas e do seu marido, nos ajuda muito a aceitar a sua decisão.
Eu ligo para a Selma brasileira e falamos rapidamente:
"- Oi mãe!"
"- Oi querido."
"- Já tá sabendo da Selminha?"
"- Sim" - diz ela sorrindo.
"- Eai? O que tu achou?"
"- Aaaah eu gostei né... Erica também era bonito..."
"- Selma é lindo!"
"- Obrigado filho..."

terça-feira, 24 de julho de 2018

Na estrada que me trouxe para cá.

Passado não chora.
Quem chora é presente.
E que presente m
e dei!
No dia que te esqueci,
me lembrei:
Passado não chora.
Futuro, eu não sei.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Todo universo em uma xícara de café preto.

Acho que acordei com um soco no estomago. Não é agradável. Mas quase todo mundo já passou por isso, acredito. Aqui, desse grão de areia flutuando no infinito negro do oceano intergalático, eu preciso dizer: não entendi nada. Essa confusão mental é um estado passageiro, eu sei porque já a tive antes, mas dessa vez vou aproveitar para escrever embaixo da nuvem que ela causa.
Na rua um senhor remexe o lixo, indo de latão em latão para catar latinhas de alumínio, restos de comida e o que mais a sua sorte lhe trouxer. Enquanto os carros que valem apartamentos passam em alta velocidade pela via, tocando as últimas músicas da moda dessa semana.
Uma senhora está sentada na calçada, com a mão direita esticada em concha dizendo que precisa de algum dinheiro a todos que caminham na sua frente. A maioria absolutamente indiferente a outro ser humano desesperado.

"- É uma preguiçosa, podia trabalhar..." - ouço alguém dizer.
Sinto inveja, queria pensar assim.
Em uma casa, de um bairro distante, a meia luz de uma final de tarde, com o céu roxo, amarelo e vermelho. Um senhor observa o manto da noite sendo esticado no céu. De mais um dia que seus filhos, netos ou bisnetos simplesmente não apareceram. Seus pés gelados doem, ele pensa, para eles há um cobertor. Para o seu coração, não.
Um amigo visita o túmulo de outro. Sua mão sobre a lápide o faz sentir a pedra áspera de tantos sóis e chuvas. Como naquela noite, era formatura do Dinho, o último da turma a terminar a faculdade. Ele tinha conhecido a Beatriz no último ano, amor ao primeiro porre. Tinha conseguido um estágio em SP, ia começar em fevereiro. Todos estavam juntos no clube. Os país do Dinho, seus tios e primos. A gente dançava e bebia como somente quem tem 20 e poucos anos faz, não pela quantidade, mas por não se importar com o amanhã. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. O carro dele foi encontrado captado ainda de madrugada. Completamente destruído. A Beatriz ficou em coma por quase 2 semanas. O Dinho morreu na hora. Sem estágio, sem noivado (ou término dramático de relacionamento), só morreu. E a gente enterrou ele em um buraco no chão, com uma placa de pedra em cima dizendo:

"Aqui jaz Augusto dos Santos Júnior, grande amigo e filho amado.".
Nunca vou me esquecer do rosto do Seu Augusto no dia do enterro. Acho que fiquei encarando ele por tempo demais. A mãe dele chorava lágrimas de desespero, lágrimas de uma mãe que morreu um pouco, que jamais se conformaria na vida com o que aconteceu. Mas o Seu Augusto não... Ele só encarava o rosto do próprio filho ali, naquela caixa de madeira, sem nem se importar com o mundo ao seu redor. Vez ou outra, ele passava a mão pela lateral do rosto do filho. E dizia algumas palavras bem baixinho. Ele sorria enquanto falava. Um amigo se aproximou e ouvindo uma parte da fala:

"-... seja feliz meu amor... Se cuida, que o pai cuida da mãe aqui... A gente te ama muito, meu amor... Muito, muito, muito..."
Algo assim. E hoje, quando eu vim visitar o túmulo do Dinho, encontrei outro amigo lá sentado. Ele chorava, eu não quis atrapalhar. Esperei dentro do carro de longe, até ele ir embora. Quando cheguei na lápide, havia uma carta fechada que dizia: 

"Para Dinho."
Eu coloquei ela na fenda do túmulo. O Dinho vai ler, eu sei.
Na rua, longe dali, em um dia chuvoso. Um cachorro se aninha entre uma parede e alguns pedaços de papelão molhado. Houve um tempo em que o nome dele era Toddy. O filho do seu dono adorava todynho, então foi assim que foi chamado. As vezes ele ficava sozinho em casa, mas a algumas semanas, seus donos o colocaram dentro do carro. E dirigiram para longe de casa. Abriram a porta e o Toddy correu para fora, correu para longe curtindo a grama sob suas patas. Quando ele ouviu o som do motor, voltou. A tempo somente de ver o carro fazendo a curva e desaparecendo. Esperou ali por várias horas, por 2 dias, quando a fome lhe venceu procurou água. Bebeu de poças, vomitou. Comeu lixo. Foi chutado por desconhecidos. E ontem um carro lhe atropelou. Desde então, sua pata traseira esquerda lateja e não pode ser firmada no chão. Deitado sobre o papelão molhado, Toddy ainda espera seu dono voltar.

"- Ele não me achou ainda..." - pensa - "...eu vou esperar mais..."
Um amigo me diz que nós não merecemos os cachorros. Que eles são bons demais para nós. Eu pensei muito sobre isso e concordo. Nós não merecemos os cães.

Em um apartamento do outro lado do planeta, Diana passa um lenço no rosto. Ela está dentro do banheiro. Seu namorado dorme no sofá. Ele chegou tarde, bêbado e cumprindo todos os limites do esteriótipo de um criminoso, deu um soco no rosto da sua mulher. Ela caiu, mas conseguiu correr até o banheiro e se trancar. Ele esmurrou a porta de forma indolente por alguns instantes, antes de cair no sofá e apagar enquanto prometia lhe dar uma lição assim que ela saísse. Diana significa "aquela que ilumina". Mas essa Diana aqui não aguenta mais. Chora o que tem para chorar sentada na privada. Se limpa novamente agora percebendo melhor o estrago do olho. Se enfurece, abre a porta e vê ele desmaiado no sofá. Pega uma faca de cozinha, a maior que tem em casa e sem demorar, passa a lâmina bem abaixo do queixo dele. Com força e em um movimento único. A garganta se abre como uma flor. No começo do corte ele já abriu os olhos tossindo. No final do corte ele já rolava no chão, se debatendo e manchando tudo que encontrava pelo caminho com seu sangue e saliva. Demora até parar de tossir e grunhir. Muito mais do que ela esperava, mas uma hora parou...
Diana não se importa em ser julgada pelo crime. Mas não aguenta mais apanhar toda vez que ele entra bêbado em casa... Ainda assim, ela levanta o telefone e liga para o seu primo e advogado. Ela não chora mas ele pede calma e diz que em 10 min estará ali. Pede que ela se tranque no quarto. Que tudo vai ficar bem. Que ela não precisa ser presa. Que ele a agredia. Pede que ela não faça mais nada, só espere 10 min...
Ela não quer mais nada.
"- Ninguém nunca mais vai me bater...." - ela diz baixinho largando a faca no chão e fechando a porta do quarto.
Em outra casa, de outra cidade, de outro continente, no meio da noite, ele pensa: 

"- Amanhã vai ser melhor...".
Longe dali em outra rua, em um outro apartamento, ela pensa: 

"- Amanhã eu vou conseguir fazer isso...".
Caminhando na rua, o Seu Adalberto diz para si próprio:
"- Vai dar certo!".
Dentro do carro, indo para o seu destino na BR, a Alessandra canta enquanto pensa:

"- Eu vou conseguir..."
Todo nossos corações pulsam. Eu imagino quantos tem o batimento na exata mesma frequência. No mesmo ritmo. Ao mesmo tempo. Quantos de nós piscam juntos, todos os dias. Ou as mesmas palavras que nós pronunciamos. Pensamos e desejamos coisas muito parecidas. Um pouco disso pode ser sorte. Mas tudo, não.
A minha xícara de café acaba e encontra o fundo branco da porcelana.
"- Outra hora eu escrevo mais" - eu penso.




quinta-feira, 21 de junho de 2018

O homem é a fera da fera que se acha homem.

Thomas Hobbes errou. Me desculpem os teóricos, mas o homem não é o lobo do homem. O homem é a fera da fera que se acha homem. Veja bem, a fera que se acha homem é essa criatura bestial que consome a pureza das coisas. Que viola a paz alheia por prazer, por diversão. É essa entidade que deseja mais, melhor, mais rápido, do meu jeito, na hora que eu quero, agora! Sem se importar com todo o resto. Ou com o que sobra depois. A fera que se acha homem é uma criatura repugnante. Violenta. Sem paciência ou consciência. É um ser brutal, sanguinolento, ardiloso e de espírito perverso. Essa fera, que tem no homem um exemplo inalcançável e vive a sua existência perseguindo esse modelo, como um peixe que deseja se tornar um pássaro. E vive sem sintonia com o espaço que ocupa, sempre culpando aos outros, agredindo-os, se fechando recluso, até deixar de viver. Essa é a fera que se acha homem.
Do outro lado está a fera que caça essa fera que se acha homem. Essa fera é mais silenciosa. Não uiva tão alto. Não é tão violenta. Ela espreita. Ela observa. Imita. Mas se limita a não se aproximar muito, nem a se distanciar muito... Ela só vem quando tem certeza, quando sua presa está machucada, debilitada, quando está fraca... Aí a fera que caça a fera que quer ser o homem ataca.
A luta das feras é quase sempre feia. Sangue jorrando, presas que cortam, garras que rasgam, fora os socos, empurrões, tripas para fora, olhos roxos e muitos uivos. Quase sempre, uma só sai viva. Mas há quem diga que quando uma delas morre, as duas morrem. Parece que para ficar viva, a fera que se acha homem precisa perseguir o homem e a fera que caça a fera que se acha homem precisa perseguir a outra fera...
E o homem? Você diz. Bom, o homem coitado que é, vive sem nem perceber que se caça e se corta com a navalha do pensar. Que se mata e se sabota com a arma do falar. Que se enforca e se prende com as correntes do ego. E que se engana todo dia com a roupa da rotina. Enquanto se encara no espelho da vaidade...


quarta-feira, 13 de junho de 2018

Só mais um texto de gosto duvidoso.

- Estás me dizendo que as vezes tu acaba correndo por ter dificuldade de andar... É isso!?
- Acho que sim.
- Mas correr é algo que acontece depois que você aprende a andar. É ilógico.

- É, eu sei. Só que as vezes, caminhar parece mais difícil e não quero que entendas que eu sou excepcional porque "corro mais facilmente do que ando".
- Desculpa, mas é o que parece. Parece que estás dizendo que és melhor que a média...
- Tá vendo! É exatamente isso! Não é o que eu quero que entendas. Eu não me acho melhor que ninguém, ninguém mesmo! Eu me acho bem torto na verdade, cheio de falhas, praticamente manco com as pernas tortas, falo muito mais rápido do que gostaria, sou frequentemente entendido como sendo agressivo quando não quero e discordo de mim diversas vezes por dia.

- Calma.
- Isso é uma merda saca?
- Imagino...

- Porra.
- Calma, volta para o correr e o andar.
- É exatamente essa situação: as vezes um ato simples como expor uma ideia é tão ridiculamente difícil que é melhor demonstra-la. Com um desenho, com uma música, com um poema, com uma animação, com um filme, um livro... Com qualquer coisa que mostre à pessoa com quem estou falando o sentimento que a minha fala não conseguiria mostrar inteiramente. Você já assistiu "Into the wild" do Sean Penn?
- Sim. Se chama "Na natureza selvagem", mas não é do Sean Penn... É a historia do Alexander "Supertramp"...

- Na visão do Sean Penn, mas ok. É a história do Christopher McCandless que aparentemente surtou perante a sociedade e tentou se encontrar em outro lugar. Em um lugar que o nosso contrato social não o alcança. Em um lugar para onde nenhum de nós já tentou ir definitivamente.
- Acho que podemos ver o filme sobre essa ótica, eai?

- Eaí que a maior parte dos seres humanos da nossa sociedade vivem esperando formatações prontas de todos os outros seres humanos. Ah, se você é barbudo é isso. Se você é mauricinho é aquilo. Se você usa sapatenis é aquilo outro. Se você gosta de Sigur Rós você é alternativo. Se curte o Chimbinha é ruim. Se gosta de Mutantes e Beatles é legalzão...
- A sociedade é feita de padrões. Sem padrões não há como se socializar coletivamente. Não é culpa de ninguém, é só um costume como usar guardanapos ou sei lá, cuecas...
- Então é isso.
- Não seja teimoso. Tu mesmo vive diariamente centenas de padrões. Sabes disso.
- Eu sei.
- Não julgue os outros por uma régua diferente da que usas para te julgar, isso é injusto. Existem pessoas que gostam do som do Chimbinha e não são babacas. Na real, tu estás sendo um misto de babaca e preconceituoso.
- Eu não acho que todo mundo que escuta o som do Chimbinha é um babaca.
- Não?
- Não! Só a maioria.

- Tá vendo!? E gostas mais de quem escuta Sigur Rós!?!
- Porra, aí tu me fode! 
- Responde!
- Gosto caralho! EU PREFIRO QUEM ESCUTA SIGUR RÓS A CHIMBINHA! TA SATISFEITO?
- O que tu apontas nos outros são as falhas que tu vê em ti.

- Vai se fuder...
- É serio, o que tu apontas nos outros são as falhas que tu mesmo percebes em ti. Muitos de vocês fazem isso. Tem pessoas que são criadas sobre essa batuta. Alguns encontram essa característica mais tarde, quando ganham grana ou sei lá, se casam por exemplo... Tu vê no mundo o que sempre te incomodou dentro da tua própria cabeça. E tu repudia isso no mundo. É como se tu estivesse te criticando quando tu apontas o que consideras o erro alheio. Isso é mais comum do que parece.
- Beleza.
- Não fica puto. É bom que seja isso, se não fosse isso, seria alguma outra coisa. Esse ainda é um dos bons padrões que existem. Porque existem alguns bem piores...
- Na boa Buda, como foi que tu veio parar aqui mesmo?
- Tu me invocou. Meditou e usou aquelas mandalas do Livro de Invocação. Eu estou aqui porque tu quis que eu estivesse... E vou embora quando quiseres também.

- Eu to querendo, porque ainda estás aqui?
- Porque isso é só a tua boca dizendo que estás querendo. É só um dos teus pensamentos tempestuosos ao qual não devias dar voz... Inclusive, são esses os pensamentos que precisas controlar para que o mundo te ache menos "agressivo" como tu mesmo disse lá trás... Vou te dar outro exemplo: eu vou embora, se é o que vc quer, ok?
- Ok!
- Então tá.

Silêncio.
Estou sozinho na sala enquanto o sol nasce com todas as cores do planeta no céu. No chão tem uma mandala desenhada. Eu adormeci enquanto meditava?
O vento sopra suave enquanto o tempo escorre e o horizonte se desfaz como espuma de ondas do mar. 

- É lindo - eu digo para mim mesmo.
E de repente o pensamento me agarra pelas entranhas. Como se fosse uma sede muito forte misturada com uma vontade incontrolável de ir ao banheiro. Um pensamento inevitável. Incontrolável. Irrevogável. E eu o vocalizo tão baixo que é praticamente dito em silêncio:
- Eu queria continuar a conversa.
Dessa vez, ninguém responde.



quarta-feira, 2 de maio de 2018

Poesia de pano velho.

Palavras em uma frase.
Começo, antes que acabe.
Perdidos no corredor
da porta que não abre.
No imaginário,
guerreiro de sabre.
No mundo real,
caravana e cão que late.
Vejo mais um sol
vindo tarde.
O universo em nosso
coração cabe.
A luta é linda.
E que seu fim, 
tarde.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Eu já vou dormir atrasado. De um compromisso que nem foi marcado. Mas que eu não vou chegar a tempo. E cansado. Com os olhos enevoados das nuvens no céu infinito. Que esconde o Cosmos e os Deuses. Como um teto que te priva das estrelas com a desculpa de te proteger da chuva. Eu preferiria tomar chuva as vezes, para ter as estrelas quase sempre. Mas ninguém me perguntou, e agora não existem casas sem teto. Existem pessoas dormindo nas ruas, mas isso é só outra incoerência humana traduzida em miséria, fome e desespero. Nada de novo aqui no front da luta perdida. Mas algo continua errado no reino da Dinamarca. E os violinos tocam uma marcha fúnebre na rua. É o enterro do nosso coração. Somos agora como vampiros, mortos vivos. Sugadores de sangue de presas longas. E como nos esbaldamos. Em um banquete de indefesos que sofrem para que possamos sorrir. E dançamos ao som do sofrimento silencioso. Até que o sol grita ao horizonte. Aí nos corremos para nossas tumbas fundas. Distantes do mundo real. E dormimos por séculos, alheios a existência coletiva. Até que a nossa fome desesperadora nos acorde novamente. E o processo se repita. Enquanto o céu transforma a noite em dia. E planeta gira no infinito frio do oceano espacial. E nós discutimos se a pulga é maior que o elefante ou o contrário.
"- Ah se eu tivesse a tua idade..." - me diz uma senhora.
Todos somos jovens, só morremos cedo. Que dívida é essa, que temos que morrer para pagar? Ouço Suassuna suspirar. Eu não sei o que dizer. Mas penso que alguém saberia.
"- Não esquece de ser forte..." - me disse meu avo em um flashback de 30 anos quando eu cai e ralei meu joelho na pedra. Eu chorava, mas ele me pegou no colo, passou um paninho molhado para limpar a areia colada no sangue do joelho. Me acalentou e sorriu dizendo:
"- Não esquece de ser forte...". Eu parei de chorar sem entender. 
O que eu esqueci? Como fico duro e forte? Chorar é errado? Meu joelho nem está ralado, o que eu estou dizendo?
Gira o mundo, gira tudo. Sobe o ar, desce o mar profundo. E a humanidade se faz e desfaz em um timelapse digno da cinematografia mainstream Hollywoodiana. Em algum momento, quando os carros voam e as esteiras carregam as pessoas pelo planeta, a tumba do vampiro se abre. Acordado e faminto ele diz:
"- Sinto sede de sangue de joelho ralado..."
Corram todos!

terça-feira, 17 de abril de 2018

O grupo.

Suavemente a grande pedra redonda gira. Com dificuldade em alguns momentos, travando e girando mais lentamente. Quase parando. Somente para retomar a rotação mais uma vez...
O ar que sai do corredor é pesado e miasmático. Todos levam as mãos as suas bocas e narinas. Gash´Tar, o mais jovem, se vira para fora do fluxo de ar tossindo copiosamente.
"- Hahahahaha" - gargalha Dhorin observando a cena - "Acho que o seu meio humano não vai aguentar...".
"- Você está bem?" - pergunta a deslumbrante elfa, Shimaê, se aproximando de Gash´Tar. Enquanto a criatura sinaliza que sim com a cabeça... E para de tossir. A elfa lhe entrega seu cantil. "- Beba, lhe fará bem...". Se virando para Augustus com olhos de vorpal, sobre a reação de Dhorin.
"- Acalmem-se companheiros... Nem entramos e já teremos rusgas? Guardem um pouco para o que nos espreita aí dentro..." - diz o cavaleiro sorrindo um sorriso pouco convincente.


Um grupo improvável. É como o Barão das Terras-Baixas os classificou, quando se apresentaram a corte. A notícia de que Lorde Zafhir o honesto, precisava de um grupo de aventureiros, com urgência, correu boa parte dos 13 reinos livres. Mas ainda assim, nenhum grupo chegou a Cidade das Gemas, antes do final do verão. O período, sem dúvidas, era ruim. Muitos estavam empregados em aventuras marítimas, navegando em busca de riquezas e fama. Outros aproveitavam o período de calor para viagens que não poderiam ser feitas durante o rigoroso inverno. Aprendizes se dirigiam as escolas Mágicas do Norte. Homens de armas, procuravam tutores além das Campinas do Leste, com as tribos guerreiras. Paladinos faziam seus votos de pobreza e castidade e rumavam para as cidades desoladas por pestes. Todas as grandes cidades recebiam diariamente navios cheios de especiarias e novidades vindas de terras distantes.
E foi em um desses barcos, o Olho d´Mar, que Augustus o cavaleiro, Dhorin o anão guerreiro, Shimaê a sacerdotisa de Lunai e o Khanel o místico aportaram na Cidade das Gemas. Shimaê e Khanel logo ouviram as notícias sobre a necessidade não solucionada de Lorde Zafhir. E tentaram algumas informações gratuitas a respeito do nobre. Com pouco sucesso, com exceção do indicativo de que o título de "o honesto" não era verdadeiro. De fato, parecia bem duvidoso.
Mas as semanas que se passaram, só trouxeram propostas frívolas de escolta para caravanas e primos distantes de uma nobreza falida. Não que o grupo já não tivesse feito esse tipo de serviço. Faziam e com frequência. Mas o objetivo de ter vindo até o Reino de Ah´Ur, era justamente encontrar maiores desafios. Foi então que conheceram o meio-orc Gash´Tar. A poucos dias de completar a segunda dezena na Cidade, o grupo aproveitava o sol da manhã quando perceberam uma voz franzina tentando ser ouvida no púlpito público de anúncios.
"- Senhores... Senho... Senhor... Senhores!..." - gemia o franzino monstrinho. Com sua pele meio escamada, meio lisa. Sem cabelo ou barba, com orelhas quase pontudas, nariz de porco, olhos roxos e duas presas para fora da boca vindas do maxilar inferior. " - Por favor, ouça... Por fav... Ouçam!". Tentava dizer.
Dhorin bateu com as costas da mão no ombro de Augustus, apontando com o queixo em direção a cena.
Um grupo de mercadores, provavelmente alcoolizados gargalhava do meio-orc. Lhe apontando os dedos e lhe dando apelidos grosseiros.
"- Veja só Sibá! Não sabia que seu filho tinha conseguido um emprego! hahahhahahahahahhaha" - disse um olhando para o homem da sua esquerda.
"- hahahahaha maldito, se sou pai desse aí, foi durante a Guerra das Tribos! Ei garoto! Sua mãe lhe contou que foi estuprada na noite que engravidou de você?"
"- hahahahaha" - riam todos juntos com as mãos sobre as próprias barrigas.
Antes de a brincadeira terminar, Shimaê já estava no pé do púlpito público de anúncios em que o meio-orc se encontrava. Ao seu lado Khanel, silencioso e empertigado observava toda a situação como um estranho desconhecido a todos.
"- Venha!" - ela disse com um rosto duro, sem expressão.
"- Eu preciso... Dar o anúncio do Barão... Se eu não der..."
"- Você vai dar. Venha comigo. Agora." - ela repetiu lhe estendendo o braço magro e a mão ossuda.
O meio-orc não teve coragem de lhe negar.
Enquanto isso acontecia, Augustus e Dhorin foram em direção aos mercadores bêbados.
"- Tudo bem Senhores, tudo bem! A brincadeira chegou ao fim...." - disse o cavaleiro com pouco mais de 2 metros de altura e um corpanzil bem estruturado de quem mantem seus treinos de forma rigorosa.
Os mercadores se calaram, um pouco assustados, um pouco decepcionados. Mas sem querer problemas. Ainda assim, antes que pudessem se mover, Dhorin sacou um machado de cabo médio que levava para seus passeios dentro da cidade. O girando uma, duas, três vezes e parando com a lâmina apontada para o rosto de um deles.
" - Aglhad bundushantúr gabil gathol khaz-kadut, GALENTAR!" - gritando essa última palavra e brandindo a arma apontada.
Os homens correram. Alguns para a direita, outros para a esquerda. Augustus gargalhou dizendo:
"- Calma Dhorin..."
"- Calma não saciará a minha vontade de usar o machado humano!" - bufou de volta o anão de longa barba ruiva, cheia de adereços de pedra e ferro.
"- Algo me diz, que sua sede por ação encontrou uma nuvem de chuva..." - respondeu Augustus se virando para Shimaê que descia o meio-orc do púlpito.
O meio-orc se apresentara como Gash´Tar, escravo na corte de Lorde Zafhir, o honesto. Barão de Ah´Ur. Senhor das Campinas de Lakti´R até onde a Antiga Grande Floresta encontra as montanhas de Bäldar.
Gash´Tar havia sido enviado com uma caravana de escravos a 2 dias, estava faminto e dormindo no relento. Sua missão era simples, trazia uma carta do conselho de Zafhir, convocando heróis a buscarem fama e fortuna na corte do Barão. Requisitava-se somente, coragem e pelo menos um anão no grupo. Pois o enredo incluiria uma masmorra abandonada.
"- Parece bom!" grunhiu Dhorin por trás da hirsuta barba ruiva.
"- Não parecer bom!" respondeu calmamente Khanel. E todos os outros o olharam com estranhamento. Khanel era silencioso como um pantera negra em noite sem luar. Só falava o estritamente necessário. Augustus costumava contar a mesma história diversas vezes. De que ao aceitar participar do grupo, Khanel simplesmente acenou a cabeça positivamente. Sem nenhuma expressão de sentimento ou alegria. Khanel era um homem de idade avançada, apesar de nunca revelar a sua idade. De pele morena e cabelos negros, com uma barba bem feita e cheia de pelos brancos. Trazia no rosto magro tatuagens tribais. E frequentemente passava dias, até semanas sem dizer absolutamente nenhuma palavra. Quando questionado, costumava concordar com o que era dito ou adormecer rapidamente, de forma pouco natural. Assim, quando falava, causava algum estranhamento. Não só por causa da dificuldade em pronunciar as palavras em idioma comum. Mas por que a voz soava de forma gutural e poderosa. Uma voz, com qual diversos outros homens se orgulhariam de usar.
"- É melhor do que ficarmos engordando nas ruas desse pulgueiro..." - disse Augustus.
"- Seu Lorde... Como ele é?" - disse calmamente Shimaê se aproximando suavemente de Gash´Tar.
O meio-orc silenciou. E o silencio transbordou sobre o quarto que eles dividiam em uma taverna.
"- Responda!" - falou alto Dhorin. Mas antes que ele pudesse terminar, Shimaê continuou:
"- Ele é mal não é?".
O meio-orc concordou com a cabeça e os olhos arregalados...
"- Partimos ao nascer de dois sóis. Preparem-se." - disse a sacerdotisa se levantando. Augustus fez uma menção de dizer algo, mas Shimaê prontamente continuou:
"-... mesmo que a missão que essa criatura condenada tenha vindo oferecer, seja algum tipo de armadilha, existe mais uma missão por trás das palavras dele... - e se virou para Khanel - ... a terra que esse homem comanda sofre. Não somente esse pobre coitado que está diante de nós."
Khanel disse simplesmente:
"- O código." - e se levantou também.
"- Sim, o código - completou Shimaê - se virando para Augustus e Dhorin - viveremos e morremos..."
E Dhorin se levantou completando sua frase:
"- ... pelo código!"
Por último Augustus se levantou dizendo:
"- Que assim seja feito. Que novamente, encontremos nosso destino no desconhecido e que ele seja digno de nos desafiar."
Shimaê abriu um sorriso ameno, mas visivelmente desenhado em seus lábios. E sem olhar para Gash´Tar lhe disse:
"- Você dormirá conosco até a nossa partida criatura. E a partir desse momento, estará sob a proteção de Lunai e de seus servos".
O meio-orc não ousou discordar. Conhecia a Deusa Lunai. Mãe da luz noturna. Esposa paciente do Sol. Mística e poderosa desde antes do tempo ser tempo. Seus sacerdotes são conhecidos pela sabedoria e pela ligação íntima ao que chamavam de "o Código". Um conjunto de regras de como se comportar em vida. Para que seja possível aproveitar da eternidade ao lado "da Mãe" Lua nos seus Palácios de Luz.

A viagem até as Campinas de Lakti´R foi monótona. Todas as noites, o grupo se revesava em guardas ao redor de uma pequena fogueira. Que também era usada para esquentar carne seca e vegetais selvagens colhidos durante o dia. Ao amanhecer do segundo sol, Gash´Tar revelou:
"- Eu nunca dormi tão bem na minha vida...".
Dhorin gargalhou dizendo que o meio-orc deveria experimentar os colchões de pena de ganso e talvez alguns travesseiros... Mas Shimaê permanecera o observando, com olhos de pedra. Até que Gash´Tar arranjou alguma outra ocupação frívola no acampamento. Ela, e talvez Khael que ficou em completo silêncio, compreendera que o meio-orc falava da paz que estava podendo usufruir. Na verdade, quando deu por si, Shimaê percebeu que estava sentindo pena daquela pobre criatura. Que tipo de maus tratos esses escravos sofriam? De todas as criaturas, de todos os Deuses, o ser humano pode ser uma das mais perversas. Capaz de atos inimagináveis.
"- Sacerdotisa - questionou Augustus - você vem?!"
E ela percebeu que estava divagando a mais tempo do que deveria. Enquanto se levantava e se botava em marcha com o resto deles.
Após 6 dias de caminhada enquanto cruzavam uma pequena planície ladeada por algumas colinas, um grupo de 5 cavaleiros com estandartes de uma águia segurando uma balança de minérios nos pés surgiu ao longe.  Um dos cavaleiros ergueu um berrante dando três silvos curtos. Enquanto os outros desceram a galope em direção ao grupo. Após os silvos o cavaleiro desapareceu.
Dhorin prontamente sacou seu machado.
"- Calma pequeno amigo, são batedores..." - disse Augustus.
"- Sir. Klinkir..." - disse Gash´Tar parecendo assustado.
"- Você os conhece?" - perguntou Shimaê, enquanto pegava a carta do conselho que Gash´Tar a havia entregado na Cidade das Gemas. Mas o meio-orc não lhe respondeu nenhuma palavra.
A alguns metros um dos cavaleiros se ergue sobre os estribos do seu manga larga negro e disse:
"- Ora, ora, o que temos aqui?!" - desacelerando o cavalo e sendo seguido por outros 3 homens de armas com suas espadas em punho.
"- Saudações cavaleiros!" - disse Augustus com uma das mãos levantadas. Mas foi prontamente ignorado pelo grupo que se aproximou flanqueando Gash´Tar. O meio-orc se encolheu entre Khael e Shimaê que observavam atentos toda movimentação.
"- Gash´Tar! Você me custou uma peça inteira de prata! Apostei que irias fugir... Há! Talvez tu devesse ter fugido filhote de porca!" - continuou o homem margo de cabelos e barba negros. Rosto fino e nariz achatado...
"- Sir Klinkir..." - começou a dizer Gash´Tar, sendo interrompido pelo cavaleiro novamente.
"- Não fale sem ser requisitado escravo." - e parando seu cavalo bruscamente com olhos de fogo sobre o meio-orc.
"- Cavaleiro!" - disse Shimaê lhe chamando a atenção - "Nós estamos atendendo a um chamado do Conselho de Zafhir. Estamos aqui para ajudar, abaixem suas armas...".
Sir Klinkir sinalizou para seus homens abaixarem as armas. Enquanto abria um sorriso e dizia:
"- Sejam bem-vindos então!" - e fez uma pequena reverência com a cabeça - "Vocês estão nas terras que pertencem ao Lorde Zafhir. Nós os escoltaremos até o castelo...".
Foi rápido. Menos de uma manhã de caminhada e o as colinas haviam ficado para trás. O pequeno castelo surgiu no horizonte. Eram seis torres redondas ligadas por muros de pedra com seis ou sete metros de altura. Um portão de madeira fechado na única passagem aparente. O Castelo dava vista para as planícies, para a floresta e ficava a alguns quilometros de um riacho. Não era uma obra de arte, parecia antigo e pouco conservado. Algumas propriedades ao seu redor plantavam batatas, cebolas e ervas. Bem como alguns pastores tocavam ovelhas e porcos para um estábulo de madeira colado a uma das paredes de pedra. No ponto mais alto da construção, repousava uma estátua de pedra de uma águia de asas abertas olhando para cima.
O portão não demorou para ser baixado. Alguns homens surgiram entre as ameias dos muros, observando curiosamente os recém chegados. Cruzando a porta, um pequeno átrio de chão batido revelou mais um portão, só que de ferro. Do lado direito do átrio, alguns homens erguiam blocos de pedra com cimento e gordura animal, no que parecia ser uma espécie de reparo ou reforma.
"- O portão de madeira é novo. Foi derrubado e trocado por esse..." - disse em linguagem anã, Dhorin atento a construção.
Khael respondeu:
"- Derrubado ou violado?" - sem nem olhar para o anão.
Sir Klinkir lhes interrompeu:
"- Suas armas não serão carregadas para a presença do Lorde Zafhir." - e apontando para um de seus homens disse - "Leve o escravo para o salão, o resto de vcs esperam aqui até termos autorização de entrar na sala do trono..."
Um homem empurrou Gash´Tar com força, dizendo:
"- Vamos porco!" - ao meio-orc coube somente obedecer em silêncio.
Não era incomum que Lordes de reinos pequenos como o de Ah´Ur tivessem a impressão de maior poder do que Lordes de reinos maiores. Um Lorde, normalmente, não tem sangue real. Um lorde é uma pessoa, ou descendente de alguém que presta serviços valiosos a uma coroa ou família real. As terras do Lorde não lhe pertencem. Mas pertencem a coroa do reino em que estão. E são administradas para que haja lucro para a coroa com suas benfeitorias. A expressão "sala do trono" poderia ser usada para um Rei, Rainha ou Príncipe. Mas não para um Lorde...
Não se passou muito tempo. Dhorin, Augustus, Shimaê e Khael puderam conversar um pouco em privacidade sob o olhar atento de pelo menos 30 guardas armados. Suas armas haviam sido recolhidas a uma sala do primeiro andar.
Sir Klinkir veio caminhando com passos de chumbo de uma das portas superiores, dizendo:
"- Venham, subam!" - e retornando pela porta de onde veio.
O grupo entrou na salão lado a lado. Com Augustus e Khael nas pontas e Shimaê e Dhorin no meio.
O salão era grande. Com colunas de pedra e vários homens e mulheres sentados em mesas abaixo de um grande degrau de pedra que servia de palanque para um único Trono, também de madeira e estofado com almofadas vermelhas. No trono um homem franzino, com aparentemente 50 anos de idade, e barba e cabelos negros estava esparramado tomando uma taça de vinho. Ele conversava com um homem mais velho que se encontrava ajoelhado a sua direita. Diversos soldados com armas em punho, perfilavam-se nos dois lados do salão. Entre as mesas e o degrau de pedra do trono, Gash´Tar estava sentado em um dos cantos. Com uma corrente de ferro negro presa ao pescoço. Alguns cães estavam deitados ao seu redor, outros brigavam  por ossos que os haviam sido dados. Ficava claro que se Gash´Tar quisesse comer, seria necessário testilhar o alimento com os animais.
O grupo avançou alguns metros enquanto o salão silenciava. Murmúrios e passos, era tudo que se ouvia.
"- Bem vindos, ó bem vindos sejam!" - disse o homem sentado no trono se ajeitando sentado - "é... sim... Bem vindos sejam os nobres heróis, venham, aproximem-se!" - fazendo um sinal para o grupo.
Caminharam mais alguns poucos passos, até que Augustus disse:
"- Lorde Zafhir, viemos atender ao seu chamado. Meu nome é Augustus, estão são Dhorin, Shimaê e Khael - todos referenciavam ao lorde com a cabeça enquanto seus nomes eram pronunciados - pedimos respeitosamente por sua hospedagem..." - e fez um movimento de semi referência. Dobrando seu joelho até meio caminho do chão e retornando.
Silêncio.
Lorde Zafhir o encarou por um instante, antes de dizer:
"- Hospedagem concedida... é... Está concedida. Sentem-se a mesa, comam de meu pão e do meu sal. Bebam da minha água e do meu vinho. Teremos muito tempo para conversar após o banquete... Sim...".
Sentados, momentos depois, com vinho quente servido em suas taças, comendo pão fresco, manteiga e carne desfiada em tigelas.
"- Porque não sinto que somos bem vindos nesse salão?" - perguntou Dhorin com a barba suja de gordura e vinho. Olhando seus pequenos olhos por todo espaço.
"- Porque não somos!" - respondeu Shimaê que comia pequeninos bocados de pão seco cortados com as mãos.
"- A carne e o vinho são bons..." - disse Augustus bebendo mais um gole de sua taça.
Khael não comeu, nem bebeu nada além de água.
"- MÚSICA!" - ordenou Lorde Zafhir em determinado momento.
E músicos se apressaram a começar a tocar harpas e flautas, tambores e rabecas. Enquanto cantavam:

" Feito de aço e pedra, justo como uma régua.
Senhor do céu e da terra.
Caminhando, varão como ele só.
Mestre nas armas com o coração cheio de dó.
Amável e querido, Lorde Zafhir.
De família justa com legitimidade.
Como nenhuma outra aqui.
Fazendo o bem por onde vai.
Auxiliando todo homem que cai.
Como a mão de um pai.
Amável e querido, Lorde Zafhir.
Como nenhum outro aqui..."

Várias pessoas batiam palmas e dançavam. E Shimaê trocou olhares com Khael que movendo sutilmente seus olhos, lhe apontou o trono. Onde Lorde Zafhir os encaravam de forma perseverante. Um leve sorriso se formou em seus lábios enquanto ele erguia uma taça a mesa do grupo. Shimaê prontamente ergueu a sua taça em reposta e dobrou a sua cabeça para baixo em uma referência completa, falando aos amigos sem que fosse possível perceber que ela dizia algo:
"- Montaremos guarda no quarto em que dormirmos..."
Sorrindo Dhorin respondeu:
"- Sem dúvidas" - enquanto deixava o copo na mesa e subia no banco batendo palmas - "Sem dúvidas...".

CONTINUA.



quarta-feira, 11 de abril de 2018

Vai ver...

Eu sou da geração X. A geração que se digitalizou. A geração que nasceu analógica e foi pega de surpresa pelo tsunami digital. Paredes foram quebradas, distâncias encurtadas. Todos nós fomos arremessados uns contra os outros, outros contra uns e assuntos antes nunca imaginados tomaram forma, cor, gosto e cheiro bem diante dos nossos monitores de tubo VGA com resolução SD.
A gente aprendeu que não precisamos mais ir para a biblioteca dos colégios para pesquisar sobre os assuntos de história. A gente tinha agora um "procurador digital" que reunia o conhecimento ao alcance de alguns cliques.
A gente entendeu que não precisamos mais nos ligar no telefone fixo para conversar, podíamos trocar mensagens via nossos PCs. Falar em grupos de amigos simultaneamente.
A gente descobriu que o mundo afinal nem era tão grande assim, e agora podíamos ver fotos virtuais de qualquer lugar do planeta (que normalmente demoravam vários minutos para serem completamente carregadas... mas ok!).

Fomos a geração que baixou os primeiros .mp3 durante as madrugadas.
Jogamos os primeiros jogos cooperativos nos computadores.

Muito antes de alguém se quer pronunciar a expressão "midia digital" nós vivemos o mIRC e logo depois o ICQ.
Muitas pessoas vão ler essas palavras e lembrar de expressões, programas, sites e procedimentos que eu não vivi ou não me lembrei enquanto escrevia...
E tudo bem! Meu texto não é sobre o saudosismo digital. Não. Meu texto é sobre pensar no que a gente tá se transformando depois da sétima ou oitava onda digital nos atingir.
A impressão que eu tenho, é que no passado as pessoas se desgostavam menos. Não sei ao certo porque. Talvez seja o menor contato. Tipo como a maioria de nós sente que as relações mudam quando deixamos as casas de nossos país. Porque paramos de vê-los diariamente, então quando os vemos é menos intenso. Assim parece funcionar a relação humana hoje em dia... É como se todos estivéssemos dentro da mesma residência. Falando, ouvindo e mostrando fotos e vídeos o tempo inteiro. Aí acontece de alguém fazer um grupo sem aquele primo mala. Ou de comentar sobre como a tia "fulana de tal" tá enchendo o saco do tio "beltrano de tal". E pior, nós de alguma forma ampliamos isso para nossas time lines. E de certa forma, escolhemos bloquear o "X" e parar de seguir o "Y". Porque eles não gostam da cor verde como eu, eles preferem o azul. E aquele pessoal que curte a cor vermelha então? Esses eu denuncio! Eu os odeio, eles dizem!
É como de se de um jeito surreal, ampliar a nossa comunicação acabou nos distanciando mais do que aproximando... Estamos todos a poucos cliques de distância, mas falamos frequentemente com as mesmas pessoas. E julgamos frequentemente as mesmas pessoas. Utilizando o acesso a essa informação toda só para declarar que "na minha opinião" o João é um merda porque ele torce para o time B ao invés de torcer para o time A.

É estranho.
Mas se tu parar para pensar, tudo que a nossa comunicação fez desde a invasão da primeira era digital foi nos segmentar. Você compra com cartão de crédito, você não ganha likes de ninguém, você gosta de um partido político específico, você não gosta de homens de cabelo enrolado, você prefere pizza com abacaxi, você acha as roupas da nossa loja lindas, você quer conhecer aquele autor, você quer saber como é a melhor forma de construir uma bomba.

Acelerando a nossa forma de se comunicar, nós criamos mais e mais muros entre nós mesmos.
Quando eu brincava na rua, antes de conhecer o computador, eventualmente era obrigado a jogar com um vizinho próximo por quem eu não tinha muita simpatia. E muitas vezes, me ver em uma situação física real de aproximação com outro ser humano que eu não gostava muito por qualquer que fosse o motivo, acabava me aproximando desse indivíduo. Abrindo o véu do meu próprio ego para alguém que podia muito bem ser um futuro amigo. Acabava por me mostrar um lado além do que as telas do meu celular e do meu computador hoje em dia podem mostrar.
Olhar no olho de alguém, me revelava mais do que as palavras escritas por essa pessoa. Ouvir a sua risada ou seus xingamentos, ver seu corpo se movimentando, seu esforço para alcançar uma bola e a sua reação quando outro amigo se machucava, me ensinava mais sobre esse alguém do que uma aba do facebook que diz "PERFIL" consegue ensinar.

Não entenda errado, a era digital é definitiva. Com certeza teremos novas mudanças em futuros não muito distantes. E provavelmente nunca mais seremos o que fomos nessa galáxia far, far away... E temos aplicações incríveis para a comunicação hoje em dia.
Meu ponto é que esse "ódio" digital é muito facilmente destilado quando toda relação que as pessoas tem é feita através de pouquíssimas palavras escritas em uma fotografia virtual.
E assim nós seguimos parando de nos curtir, deixando de nos seguir, julgando sem se ouvir e nos conhecendo sem nunca termos nos preocupado em se conhecer de verdade.
Jóia!

quarta-feira, 28 de março de 2018

O silêncioso grito do nosso desespero.

Mataram uma preta em um carro. Quatro tiros na cabeça. Quatro tiros nela, e na gente foi um escarro. Esse é aquele momento em que o nosso desespero fica mudo. Por mais que se grite a todo ar dos pulmões, o que se ouve é o silêncio profundo. E ninguém se importa com o nosso luto. "Mariele, presente!" eles trazem nos cartazes. "Mas muita gente é vítima de violência" alguns gritam vorazes. O Brasil é insaciável de heróis. Consumimos todos, sem regra. Do futebol a novela, de BBB a Brasília, de cantores a poetas, de personagens imaginários a patetas. Todos podem ser heróis no Brasil. Nem que seja por um dia, como disse David Bowie. Só que a gente subverteu a canção. Aqui o herói não funciona. Não. Aqui o herói não resgata a princesa. Princesa que você pode ter imaginado branca e vestida de rosa. Mas que eu pintei preta de piche. Pichada na parede do centro da cidade. Com algumas gotas vermelho sangue que voaram do último assassinato. E ninguém limpou. Porque limpar a parede só espalha mais o sangue. Suja mais do que estava antes. O jornal tirou uma foto para publicar. Mas deram só uma nota de rodapé. Ninguém pareceu se importar, ontem teve jogo de futebol. Goleada para o time vencedor. E o dia hoje amanheceu mais triste. Não porque mais uma preta foi morta. Mas porque quem puxou o gatilho, venceu. Também morre quem atira, me canta o Rappa. Aqui, também morre quem assiste. Também morre quem escuta. Também morre quem desiste. Fecho meus olhos cansados, tá foda. Ouço: "Será que o Brasil tem jeito?". Me rendo ao desespero. Não sei se tem. Mas se tiver, não é um herói milagroso. Não é um Pelé camisa 11 que vai chutar a bola nesse gol. Não é um Don Pedro mentiroso que gritará "independência ou morte!" as margens do rio Ipiranga. Não é a atriz da novela que aparece no intervalo pedindo justiça ou dinheiro para os pobres.
Não é.
O Brasil tá chegando a um momento em que todo mundo tem razão, e com razão. E se o Brasil tiver jeito, vai ser dolorido e demorado. Vai ser lento e brigado. Não vai ser rápido. Vai ter desespero, lágrimas e suor. E talvez piore muito antes de ficar melhor. Talvez, depois de décadas de discussão, no dia em que alguém deixar de furar uma fila ou quando alguém responder com um "obrigado", o Brasil tenha jeito.
Até lá, é isso que o Brasil é, uma preta, favelada, bisexual, engajada e por 4 tiros silenciada.

terça-feira, 13 de março de 2018

Fica mais leve o peso meu coração.

Passos sobre a calçada. Rua cheia, cidade lotada. Homem caminha, camisa e barba. Sobe e desce meios fios. Dobra esquinas, cruza pontes sobre rios. Seus pés batem o chão como um coração pulsa. Ritmo de tempo em tempo. Compasso inalterado. Fecha sinaleiro, multidão de pernas entre carros parados. Prédios e seus vãos revelam o azul do céu. Intervalos de concreto e sombras. Dobrando a vontade do sol entre dia e noite. Com portas e elevadores. Escadas e janelas. O asfalto quente castiga. O verde se encolhe por entre as frestas. E se contorce subindo os tijolos. Alguém atende a um telefone celular:
"- Alô! Não posso falar".
Sem parar de andar. Pouco tempo para pensar. No intervalo é preciso respirar. Gravatas sufocantes. Bolsas a tira colo. Passa um ônibus lotado de Marias e Joãos. Todos cansados de um dia de trabalho sem fim. Corpos violados que seguem o caminho das camas. Buscando algum sonho que valha a pena. Para suas almas que não são pequenas. Mas que vivem e morrem sobre essa vil tutela. De uma vida de esperas. Em filas e cadeiras de escritório. Em balcões e caixões de necrotérios. Tomando anti-ácidos e aspirinas para os revertérios. Buscando as luzes dos postes e das salas de jantar. Assistindo as televisões, perdendo as noites de luar. Que de tão cansados mal conseguem pensar. E se contentam em aceitar o açoite, se aliviando entre as chibatadas. Como férias programadas. Dias de praia com hora para começar e acabar. Tudo sobre a vigília daquele que insiste em ser teu dono. Que te comprou, registrou, uniformizou, programou e descartou por outro. Versão 2.3, bem melhor, vale por seis. Te deixou para trás. Te superou. Teu tempo foi para o ralo da criação. Escorrendo pelas lajotas da existência. Como água marrom que lava um corpo sujo. Que não será reaproveitada. E olhando para o chão tu percebe, que até a água escorre em fila. E que na fila da aposentadoria, tu és como água. Prestes a ser encanada. No duto que te carregará para o final da jornada. Onde esperas poder evaporar em paz.
Para chover de novo, outro dia, em outra rua. De outra cidade.
Em um outro país.
Sobre outras calçadas.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

O que eles falam de nós...

O caminho é sozinho.
Junto ou separado.
Caminha-se só.
Caminhar é revolução.
É o novo. O futuro.
Parar é afundar
no oceano da espera.
Caminhando sigo.
Só, do nascer
ao morrer.
O caminho é curto.
O caminhar 
é eterno.



segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Desconsidere-se

Imagino um café com Pablo Neruda. E me perco ouvindo a playlist de Interstellar, enquanto o mundo insiste em girar. Ondas de rádio vindas de bilhões de anos luz avisam que a terra não está só. Existe vida além da via lactea, e provavelmente ela não se interessa por nós. Folho as páginas de um livro antigo e novamente me perco por entre as frases que o destino faz brotar nos meus olhos. Como flores em um jardim de inverno, iluminadas por um sol ameno, quase paternal. Me aproximo de uma flor amarela, a mais bela. Mas antes que possa toca-la sou transportado para a Travessa da Saudade, uma rua como outra qualquer. Em qualquer cidade. Com uma placa em um poste. E um silêncio ensurdecedor no ar. Fecho meus olhos e sinto o calor, é difícil até respirar. Ouço um ruído. Quem está aí? Sou eu! Eu quem? Eu, você.
Me viro e me vejo me virar. Como um espelho em uma esquina que me confunde. Me vejo me imitar em um reflexo idêntico do que eu posso ser. Mas paro bruscamente, confuso. Franzindo o cenho, observo o meu reflexo idêntico a também me observar. Eis que ele diz enquanto estou calado:
- Sabes que o reflexo és tu, aí do outro lado!
Digo que não, enquanto sou imitado. Não pode ser. Eu sou eu, e esse reflexo é a minha cópia. Não?
- És a cópia de ti, eu sou o que vive fora do espelho. Tu estás aí aprisionado.
Olho para as minhas mãos. Quando foi que fiquei tão velho? Me pergunto sem resposta.
- O tempo é uma aposta garoto - me diz novamente o reflexo - que todos são obrigados a fazer.
Se isso é dentro do espelho e se eu sou o meu próprio reflexo, aonde está todo o resto?
Me confundo e falseio. Meus olhos se fecham lentamente, como em um desmaio. Dobro os joelhos, me apoio com a mão no chão para não cair. Ergo a cabeça e vejo meu próprio reflexo a rir. A escuridão me toma, só consigo pensar:

- Porque meu reflexo me odeia? Porque quer tomar meu lugar?
Acordo sozinho, no meu próprio quarto. Janela aberta, sol nascendo e pássaros a cantar. Vejo o espelho do banheiro e meu reflexo parece me obedecer. Ele me segue quando passo e para quando paro. Pisca quando pisco e sorri quando o faço.
Tudo bem de novo, imagino. Foi só um sonho.
- Foi - responde o reflexo - mas será que desses tu vais acordar?
Minha boca não se move, fico petrificado. Quem poderia sonhar? Um sonho dentro do sonho e eu não sei se acordei ou voltei a imaginar. Minha mente dança gentilmente entre a realidade e a imaginação. Me confundo com tantos outros eus no meio da multidão. E depois de uma tempestade de dias e noites me pergunto: qual é a minha solidão?
Todos os reflexos respondem simultaneamente, siga nessa direção. Minha mente vai, meus pés não. Nem tudo que se move, se mexe. Ouço alguém dizer. Me pergunto:
- Quem fala? Quem é?
Ouço minha voz:
- Você.
A pergunta mais antiga do mundo, volta para mim. Quem posso ser? Sou quem sou ou quem gostaria de ver? Existem varias repostas para a mesma pergunta, mas como posso saber?
Vejo no meio da confusão um reflexo que não dança, que não pula ou fala. Ele fica parado e me encara. Me aproximo, enquanto ele também vem. 
- Quem é você? - ele me pergunta.
Como assim? Quem sou? Ele é um reflexo, uma projeção. Eu sou...
- Você - respondo.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Vem cá, deixa isso pra lá.

Ouvindo isso: https://www.youtube.com/watch?v=VgwcPiCjQ-0
Eu penso que não temos tempo para perder. Nosso tempo é curto. E ainda assim, ninguém parece ligar. Dá vontade de correr pela rua gritando:
"- RAPIDO GENTE! FAÇAM SUAS COISAS ANTES QUE VCS MORRAM! TUDO MUNDO VAI MORRER!" - de uma forma hipotética, claro.
Alguém me disse uma vez, que se todo mundo desenvolvesse totalmente seu próprio potencial, o mundo seria um lugar absurdamente diferente. Mas de uma alguma forma, a gente se limita absurdamente. Curtimos esse lance de pé no rio em dia de sol. De sofá macio e TV grande. Wi-fi, Hi-fi e Sci-fi. A gente acende cigarros, sem nem entender why!? Acredite em mim, eu lutei com todas as minhas forças contra a inserção da palavra em inglês "why". Mas enfim, aparentemente eu perco muitas lutas contra mim mesmo. O outro eu é um desgraçado. Ele me bota de joelhos e me obriga a beijar o anel da sua mão, como um rei. E eu súdito, confabulo com os outros eus dos meus amigos um motim que vais nos levar ao castelo. E nos fazer reis.
Meu ponto é que se tu aceitar todos os teus primeiros pensamentos, sobre praticamente qualquer coisa, tu vai parar de te mover. E o bicho homem parado, não demora muito tempo a morrer.
A algum tempo eu conversava com uma amiga sobre vida, planos e coco de pássaros. E me espantei a ouvir o quanto ela achava que a minha vida era fácil. Minha vida não é fácil. E muito menos é mais difícil que a vida de qualquer outra pessoa. Mas as nossas mentes, mentirosas que são, fazem com que a grama do vizinho seja mais verde. Que o fardo do João seja mais leve que o meu. E que a Maria tenha uma vida tranquila, enquanto eu me fodo fazendo tudo que eu faço.
Não acredito muito nisso. Mas acredito em perspectiva. E o ponto de vista é uma ferramenta brutal quando se trata de tempo. E=mc², vcs lembram...
Existem várias versões desse conto, a minha é essa:
3 jovens passavam por um homem idoso, corcunda que gemia para se dobrar enquanto plantava árvores no solo remexido.

"- O que estás fazendo velho?" - disse o primeiro jovem.
O homem lentamente se desdobrou e respondeu:
"- Plantando árvores..."
"- Mas que idiota! Deve ser caduco... Nunca verá nenhuma dessas árvores crescidas. Tu és velho demais, morrerás antes de que qualquer fruto possa brotar dessas sementes!" - disse o segundo jovem.
O homem sorriu.
"- Sou obrigado a concordar com os meus amigos, ancião. Porque trabalhar com tamanha dificuldade?" - questionou o terceiro jovem.
"- Toda vida é breve meu jovem. Em um piscar de olhos se pula da infância para a velhice. Quem de nós pode garantir que eu serei o primeiro a morrer? A minha idade?? Não, por mais que o sentido prático seja esse, a vida não escuta a lógica. E eu não planto para comer frutos, eu planto para que meus netos os comam." - respondeu o velho homem.
Um dos jovens se inscreveu para a guerra e morreu com um tiro no pescoço.
Outro teve uma profunda dor no peito e caiu sem vida, dias depois de conhecer o velho.
O terceiro caiu de uma árvore e passou o resto da vida imóvel deitado em uma cama.

O velho homem também morreu. Em um final de tarde de outono. Na sua lápide pediu que fosse escrito: 
Toda vida é breve.