quinta-feira, 21 de junho de 2018

O homem é a fera da fera que se acha homem.

Thomas Hobbes errou. Me desculpem os teóricos, mas o homem não é o lobo do homem. O homem é a fera da fera que se acha homem. Veja bem, a fera que se acha homem é essa criatura bestial que consome a pureza das coisas. Que viola a paz alheia por prazer, por diversão. É essa entidade que deseja mais, melhor, mais rápido, do meu jeito, na hora que eu quero, agora! Sem se importar com todo o resto. Ou com o que sobra depois. A fera que se acha homem é uma criatura repugnante. Violenta. Sem paciência ou consciência. É um ser brutal, sanguinolento, ardiloso e de espírito perverso. Essa fera, que tem no homem um exemplo inalcançável e vive a sua existência perseguindo esse modelo, como um peixe que deseja se tornar um pássaro. E vive sem sintonia com o espaço que ocupa, sempre culpando aos outros, agredindo-os, se fechando recluso, até deixar de viver. Essa é a fera que se acha homem.
Do outro lado está a fera que caça essa fera que se acha homem. Essa fera é mais silenciosa. Não uiva tão alto. Não é tão violenta. Ela espreita. Ela observa. Imita. Mas se limita a não se aproximar muito, nem a se distanciar muito... Ela só vem quando tem certeza, quando sua presa está machucada, debilitada, quando está fraca... Aí a fera que caça a fera que quer ser o homem ataca.
A luta das feras é quase sempre feia. Sangue jorrando, presas que cortam, garras que rasgam, fora os socos, empurrões, tripas para fora, olhos roxos e muitos uivos. Quase sempre, uma só sai viva. Mas há quem diga que quando uma delas morre, as duas morrem. Parece que para ficar viva, a fera que se acha homem precisa perseguir o homem e a fera que caça a fera que se acha homem precisa perseguir a outra fera...
E o homem? Você diz. Bom, o homem coitado que é, vive sem nem perceber que se caça e se corta com a navalha do pensar. Que se mata e se sabota com a arma do falar. Que se enforca e se prende com as correntes do ego. E que se engana todo dia com a roupa da rotina. Enquanto se encara no espelho da vaidade...


quarta-feira, 13 de junho de 2018

Só mais um texto de gosto duvidoso.

- Estás me dizendo que as vezes tu acaba correndo por ter dificuldade de andar... É isso!?
- Acho que sim.
- Mas correr é algo que acontece depois que você aprende a andar. É ilógico.

- É, eu sei. Só que as vezes, caminhar parece mais difícil e não quero que entendas que eu sou excepcional porque "corro mais facilmente do que ando".
- Desculpa, mas é o que parece. Parece que estás dizendo que és melhor que a média...
- Tá vendo! É exatamente isso! Não é o que eu quero que entendas. Eu não me acho melhor que ninguém, ninguém mesmo! Eu me acho bem torto na verdade, cheio de falhas, praticamente manco com as pernas tortas, falo muito mais rápido do que gostaria, sou frequentemente entendido como sendo agressivo quando não quero e discordo de mim diversas vezes por dia.

- Calma.
- Isso é uma merda saca?
- Imagino...

- Porra.
- Calma, volta para o correr e o andar.
- É exatamente essa situação: as vezes um ato simples como expor uma ideia é tão ridiculamente difícil que é melhor demonstra-la. Com um desenho, com uma música, com um poema, com uma animação, com um filme, um livro... Com qualquer coisa que mostre à pessoa com quem estou falando o sentimento que a minha fala não conseguiria mostrar inteiramente. Você já assistiu "Into the wild" do Sean Penn?
- Sim. Se chama "Na natureza selvagem", mas não é do Sean Penn... É a historia do Alexander "Supertramp"...

- Na visão do Sean Penn, mas ok. É a história do Christopher McCandless que aparentemente surtou perante a sociedade e tentou se encontrar em outro lugar. Em um lugar que o nosso contrato social não o alcança. Em um lugar para onde nenhum de nós já tentou ir definitivamente.
- Acho que podemos ver o filme sobre essa ótica, eai?

- Eaí que a maior parte dos seres humanos da nossa sociedade vivem esperando formatações prontas de todos os outros seres humanos. Ah, se você é barbudo é isso. Se você é mauricinho é aquilo. Se você usa sapatenis é aquilo outro. Se você gosta de Sigur Rós você é alternativo. Se curte o Chimbinha é ruim. Se gosta de Mutantes e Beatles é legalzão...
- A sociedade é feita de padrões. Sem padrões não há como se socializar coletivamente. Não é culpa de ninguém, é só um costume como usar guardanapos ou sei lá, cuecas...
- Então é isso.
- Não seja teimoso. Tu mesmo vive diariamente centenas de padrões. Sabes disso.
- Eu sei.
- Não julgue os outros por uma régua diferente da que usas para te julgar, isso é injusto. Existem pessoas que gostam do som do Chimbinha e não são babacas. Na real, tu estás sendo um misto de babaca e preconceituoso.
- Eu não acho que todo mundo que escuta o som do Chimbinha é um babaca.
- Não?
- Não! Só a maioria.

- Tá vendo!? E gostas mais de quem escuta Sigur Rós!?!
- Porra, aí tu me fode! 
- Responde!
- Gosto caralho! EU PREFIRO QUEM ESCUTA SIGUR RÓS A CHIMBINHA! TA SATISFEITO?
- O que tu apontas nos outros são as falhas que tu vê em ti.

- Vai se fuder...
- É serio, o que tu apontas nos outros são as falhas que tu mesmo percebes em ti. Muitos de vocês fazem isso. Tem pessoas que são criadas sobre essa batuta. Alguns encontram essa característica mais tarde, quando ganham grana ou sei lá, se casam por exemplo... Tu vê no mundo o que sempre te incomodou dentro da tua própria cabeça. E tu repudia isso no mundo. É como se tu estivesse te criticando quando tu apontas o que consideras o erro alheio. Isso é mais comum do que parece.
- Beleza.
- Não fica puto. É bom que seja isso, se não fosse isso, seria alguma outra coisa. Esse ainda é um dos bons padrões que existem. Porque existem alguns bem piores...
- Na boa Buda, como foi que tu veio parar aqui mesmo?
- Tu me invocou. Meditou e usou aquelas mandalas do Livro de Invocação. Eu estou aqui porque tu quis que eu estivesse... E vou embora quando quiseres também.

- Eu to querendo, porque ainda estás aqui?
- Porque isso é só a tua boca dizendo que estás querendo. É só um dos teus pensamentos tempestuosos ao qual não devias dar voz... Inclusive, são esses os pensamentos que precisas controlar para que o mundo te ache menos "agressivo" como tu mesmo disse lá trás... Vou te dar outro exemplo: eu vou embora, se é o que vc quer, ok?
- Ok!
- Então tá.

Silêncio.
Estou sozinho na sala enquanto o sol nasce com todas as cores do planeta no céu. No chão tem uma mandala desenhada. Eu adormeci enquanto meditava?
O vento sopra suave enquanto o tempo escorre e o horizonte se desfaz como espuma de ondas do mar. 

- É lindo - eu digo para mim mesmo.
E de repente o pensamento me agarra pelas entranhas. Como se fosse uma sede muito forte misturada com uma vontade incontrolável de ir ao banheiro. Um pensamento inevitável. Incontrolável. Irrevogável. E eu o vocalizo tão baixo que é praticamente dito em silêncio:
- Eu queria continuar a conversa.
Dessa vez, ninguém responde.