quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Sobre como tudo vai embora.

A nossa vontade é parar no tempo. Não no sentido estacionário. Mas em uma espécie de congelamento do estado de felicidade. Sabe aquela sensação de que está tudo bem? De que somos saudáveis, de que estamos seguros, de que vai dar tudo certo? É ali que a gente queria morar, durante todo trajeto da vida. Mas ainda bem que não dá pra fazer isso!
Desde o dia em que qualquer matéria viva ou não viva entra nesse planeta, a única constância é a impermanência. É o fato de que nada ficará aqui. Isso vale para o menor dos piolhos até a forma como o monte Everest está nesse momento. Nada feito de matéria física dura eternamente. Talvez seja o preço a se pagar para existir nesse mundo: o fato de que aqui tudo é passageiro.
Poderia funcionar como um período de férias da eternidade.

"- Cansei de ficar aqui!" - dissemos nós do lado de lá.
"- Tu tá afim de dar uma volta?" - perguntou uma voz vinda de lugar nenhum.

"- Acho que sim... Tava pensando em ir para a Terra... O que achas?"
"- É uma viagem curta, acho que vais gostar..." - respondeu a voz misteriosa.
"- Então tá, como faço?" - dissemos nós.
"- Olhe ao seu redor pequenino, você já está em um útero!" - nos disse a voz mais distante.

"- Cacetada! E agora como eu saio daqui?"
"- Você nasce!"
"- E depois, como eu volto pra aí?"
"- Você morre... Faça uma boa viagem!".
Nós não somos corpos que tem um espírito. Nós somos espíritos que nesse momento tem um corpo físico.
Encarar o vazio que nos habita é um desafio e tanto. E através dessa jornada interna nós encontramos muitas novas percepções da vida. Nascemos jovens e a partir desse momento podemos partir a qualquer instante. Mas não vivemos esperando a morte, não. Nós vivemos buscando um estado de satisfação para as nossas percepções. E frequentemente perdemos o foco do que realmente importa nessa busca.
É sentindo a variação entre as estações que percebemos o ano ir embora. Enquanto diariamente sol e lua dançam uma valsa sincronizada sobre as nossas cabeças. E todos inspiramos ar, ideias, sentimentos e dores. O Budismo fala muito dessa impermanência, da forma como tudo se desfaz. Do problema mais cabuloso até o gozo mais irretocável. E nós, crianças galácticas flutuando nesse oceano estrelar nos alvoroçamos porque:

"- Ele disse isso de mim..."
Ou
"- Tu acredita que ela fez isso com a Angela???"

"- Não acredito!"
Quem não acredita que isso te importa é o universo. Acredite!

Existe um contentamento muito puro dentro dessa impermanência. Existe um sentimento de aceitação e de claridade na percepção de que nada realmente é o fim, dentro do "tudo acaba". Acredito que a palavra seja CONTENTAMENTO. É uma espécie de felicidade sem desejar que essa felicidade permaneça, porque nada vai permanecer...
Quem conhece esse contentamento é feliz sentado no chão.
Quem não o conhece, pode se tornar infeliz sendo dono de um castelo.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Encerramento 2019.

Gira o ponteiro do relógio: tic-tac. Ouço alguém dizendo que o tempo é nosso recurso mais valioso. Que gastar tempo é investir vida. Tic-tac. Flutuamos juntos sobre esse rio e o destino só pode ser desaguar no oceano. Apreciar a paisagem é um dos maiores desafios, tic-tac. Minhas sobrinhas parecem crescer além do normal. E dobrando uma esquina eu encontro um casal de amigos com um filho que até alguns meses habitava o imaginário dos próprios pais.
"- Como ele tá grande!" - eu digo.
Tic-tac, eu ouço.
Tudo tem seu tempo, leio em um livro empoeirado. Mas não consigo escapar do pensamento que a ampulheta de todos os seres vivos é virada na entrada desse mundo. E nenhuma areia adicional pode ser adquirida. Tic-tac.
Final do ano é hora de renovar ciclos. Pessoas que se aproximam, pessoas que se afastam. Dias que te fogem, dias que não chegam nunca. Resoluções não resolvidas. Que horas são? Tic-tac. A única forma de um ciclo recomeçar é se fechando, é verdade. Mas algumas coisas começam e terminam só uma vez. Tipo 2019 e todos os anos antes dele. Tic-tac. Eu imagino se algum dia conseguiremos viver algum dos anos que já vivemos, novamente. Provavelmente não. Tic-tac. Ouço as taças de vinho e copos tilintando nos brindes, mas me pergunto: quantos desses corações estão realmente abertos? Pessoas boas também machucam os outros, o segredo é aprender e não viver como se não ferir o próximo fosse o objetivo principal. Ninguém entra nesse planeta ileso, ou sai dele assim. Tic-tac.
Depois de um tempo, toda virada de ano fica muito parecida com as anteriores. Pessoalmente eu admiro muito pessoas mais velhas que mantém o entusiasmo em se reunir aos seus e sinceramente compreender o valor da presença de cada uma das almas em suas vidas. Não dá pra viver só lamentando as partidas. É preciso perceber o valor do presente. Tic-tac.
O céu do final de tarde sempre me fascinou. Eu costumava chamar o amarelo-laranja-avermelhado que se forma nas nuvens crepusculares de "amarelo antigamente". De fato, não uso essa expressão a muito tempo. Tic-tac. Mas no fundo, eu acho que esse céu sempre me remeteu a alguma forma de fotografia velha. Daquelas que ficam no papel até amarelar, sabe? E quando isso acontece e se derrama sobre todas as coisas, ou paisagens, parece que estamos todos dentro de uma espécie de foto. Em movimento, rumo ao passado. Já vi muitos céus causadores do "amarelo antigamente". Já joguei bola com os moleques pela última vez, sem saber que era a última. Tic-tac. Já me despedi de pessoas, sem saber que nunca daria outro tchau à elas. Já respondi a mensagens sem nem de longe perceber que estava dando adeus. E dei abraços de até logo que na verdade eram os últimos. Já tive até pensamentos de "será que a gente vai se falar novamente" e olhei sozinho para trás sem a outra pessoa nunca virar... Eu me arrependo de muita coisa, mas não de tentar. Tic-tac. O tempo é o rio sobre qual todos nós flutuamos, e remar ao contrário não vai te fazer voltar sobre ele... No máximo, remar ao contrário vai te manter parado sobre um momento e o esforço pra fazer isso nunca vale a pena. A natureza do rio é fluir e a do tempo é urgir.
Eu acho que quando 2019 terminar, quando o último segundo bater no 12 do relógio e de 23h:59min:59s a gente entrar na meia noite e 01 segundo do dia 1 de janeiro tudo que eu posso realmente desejar é perceber o valor de cada micro momento que a gente vive. Compreendendo que não é o fluxo do tempo que realmente importa, e sim todos os infinitos que habitam entre cada tic e cada tac.
Tic-tac.


quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Mokbat

foto: @mirekis7

Não é incomum ouvir com a chegada do inverno, ao redor das fogueiras, no fundo das tavernas ou das bocas enrugadas das velhas curandeiras sobre a lenda do Mokbat. De fato, muitas das vezes que ouvi alguém contando sua história, presenciei um certo desconforto sobre a história ser tratada como lenda. Existem os que dizem que Mokbat está lá para os olhos que quiserem ver. As histórias dão voltas e mudam datas e até nomes, mas nenhuma delas foge do grande animal com tromba de pedra que sustenta o penhasco. Alguns o chamam de mamuthis, elefante, em alguns casos usam o nome Lyuba.
No inverno passado uma senhora que acompanhava uma caravana começou a falar durante o jantar que seu pai era de Mokbat. E que a cidade já estava lá antes do avô do seu bisavô nascer. Disse que na região a coisa toda é conhecida como "Tromba de pedra". Que tromba é o nome do nariz da criatura, que se estende até quase raspar o chão - mostrava ela usando o braço para simular a bestialidade. Mokbat era a raça daquele bicho. E que naquele tempo quando os Deuses ainda se prestavam caminhar com os pés no mesmo chão que os homens, eles também viviam livres. Gigantescos, destrutivos, caminhando pelas planícies e por vezes secando rios inteiros para a manada beber água... Eram monstruosidades que não respeitavam nada além da sua própria vontade. Nesse tempo, os homens ainda eram jovens e tentavam erguer as primeiras cidades. O nomes das vilas desoladas pelas manadas de Moktbats estão nos cânticos das crianças e dos velhos contadores de histórias.
"- Hifruid, Ranir, Jacka´r, Bartpa, Silfür, Tjakãn..." - cantava a velha mulher como se lamentasse. Milhares morreram sob as patadas das bestas. Outros tantos pelo desmoronamento de toras de madeira e tijolos de pedras sobre seu sono. Verdadeiros colossos que nem percebiam os flechas e lanças arremessadas contra seu couro. O que separava as manadas de Mokbat dos Reinos Livres, eram a cadeia de montanhas ao sul e águas do Grande Oceano ao norte. Nesse espaço porém, eles viviam livres e soberanos. 

Até que um dia, a filha de uma mãe morta na cidade de Hifruid, teve sua própria filha soterrada por tijolos de pedra na cidade Bartpa. O nome daquela mulher não é importante, até porque ela já teve mais nomes do que as flores que nascem na primavera da campina. Ela jurou que se vingaria do infortúnio durante a vida ou depois dela. E que cobraria dos próprios Deuses a dívida de sangue da sua mãe e filha, ou entregaria sua alma ao espírito mais negro de todos: Balkur. Mas que não teria paz em seu espírito sem que a justiça pendesse na balança da Tyr. A mulher desapareceu, alguns disseram que ela se juntou as tribos nômades, que viviam distantes do centro da planície, sempre em movimento e sem nunca construir nada.
Dizem que já em idade avançada, ela foi abandonada para morrer a própria sorte, como era o costume... E que enquanto ouvia as rodas das carroças irem embora ela disse:
"- Vive toda essa vida a espera de uma só chance que pudesse me ofertar justiça. Tyr e todos os outros me traíram, agora ofereço a ti Balkur meu espírito e minha vida... Em troca, tudo que peço é o sofrimento das bestas que assolam minha terra..."
E durante aquela noite, várias matilhas de lobos da campina se juntaram ao redor dela. Uivando e rosnando enquanto giravam no seu entorno. A mulher permaneceu entoando os cânticos proibidos de Balkur por todo o tempo. Até que bem perto do nascer do sol, antes do céu se riscar com a sua luz, um vulto sombrio se aproximou da anciã. No mesmo momento todos os lobos correram ganindo e se torcendo como se estivessem sentindo muita dor. Alguns serpenteavam e caiam desesperados...
"- Olá pequenina..." - disse a gélida voz pronunciada sem boca.
"- Balkur, senhor das sombras, pai de toda dor..." - balbuciou a idosa assustada. E começou a gemer terrivelmente levando as mãos à barriga - "ããããñnn pelos Deuses, minhas tripas estão se revirando... o que é isso?"
Balkur abriu sua boca em formato de meia lua, mostrando suas presas brilhantes como estrelas e disse:

"- Nenhum ser vivo deve estar em minha presença sem lastimar... Sinta sua própria febre minha criança.."
E a mulher gemia dizendo:
"- Pelos Deuses malditos! O que é isso..." - enquanto suava e sentia seu coração palpitar - "eu vou morrer?" - perguntou sentindo seu nariz e orelhas escorrerem sangue quente...
"- Claro que vai... Mas não agora... Me regozijo no sofrimento da sua carne..."
E ali ele permaneceu, curvado sobre o corpo daquela senhora. Até que a primeira luz surgiu além do horizonte. Em nenhum momento a idosa desejou a partida de Balkur, nem lhe amaldiçoou pelo sofrimento inominável, de fato depois de algum tempo ela parou até de reclamar e abriu os olhos lacrimejantes lhe encarando. O sorriso da entidade foi pouco a pouco se desfazendo, minguando lentamente como o fio de uma espada que não é afiada...
"- O que desejas minha menina? Porque lutas contra teu sofrimento???" - perguntou-lhe Balkur. - "Queres justiça???"
A velha mulher balbuciou alguma coisa e fechou os olhos. Depois tentou falar novamente, mas sem sucesso. Até que arregalou seus olhos com força e disse:

"- Justiça não! VINGANÇA!"
Balkur, o pai da angústia respondeu:
"- Pois bem, se queres vingança eu te concederei. Mas precisas pagar mais do que a tua vida velha e teu espírito mirrado..."
"- Eu pago! Qualquer coisa!" - disse a senhora.
"- Qualquer coisa?" - perguntou lhe o sorrateiro espírito vil se enrolando sobre o corpo da velha como uma serpente que envolve sua presa...
"- Qualquer coisa!" - gritou a mulher enquanto era engolida pelas sombras.
Na escuridão de Balkur, sentindo mais dor do que qualquer ser vivo já sentiu ele perguntou ao pé do ouvido da atônita senhora:
"- Peça e será dado: o que queres criança?"
E toda dor desapareceu por um instante. Foi quando ela respondeu:
"- Eu quero que todos Mokbats morram. E que essa terra seja amaldiçoada para sempre. Quero que os homens se lembrem de que do sofrimento de uma mulher a ruína venceu. E que eternamente essa história seja contada..."
"- O pagamento minha menina, é que tu permaneças viva e em sofrimento, sentirás não só dor na carne, mas no espírito e na mente. Não terás uma noite de sono sem que sejam pesadelos, jamais sentirás o prazer do alimento ou terás sede e nenhum pensamento teu deixará de ser atormentado pela angústia e pela dor..."
"- Até quando?" - perguntou a mulher.
"- Até o dia que não suportares mais, aí todos Mokbats devem renascer dos próprios ossos e assolar essa terra sem pai novamente..."
"- E se eu nunca me curvar?" - disse a idosa - "E se eu suportar?"
"- Então sua será a vida eterna minha querida. E você viverá para sempre assim..."

"- Eu aceito!"
"- Que assim seja feito... No final do inverno, uma caravana de homens surgirá e lhe carregará para uma caverna. Ali tu serás! Eles vão lhe ouvir, lhe obedecer e servir. Ordene que façam uma estátua representando os Mokbat mortos e que construam uma cidade ao redor da caverna. Ali, protegida por mim, receberás tua dádiva e pagarás o teu preço enquanto puderes..." - disse a serpente de sombras.
"- Balkur, eu nunca vou desistir..." - balbuciou a velha mulher.
"- Um dia, quando tu o fizeres, eu retirarei todo sofrimento de ti e despejarei sobre as almas de centenas de milhares nessa campina..." - enquanto a deixava.
Tudo foi como ele disse que seria. A idosa resistiu ao inverno se contorcendo sob a neve. Sem fome ou sede. Quando a caravana a encontrou, ela contou palavra por palavra. E os homens a guiaram por dias até encontrar a montanha. Na sua base, havia uma caverna úmida e quente. A mulher foi colocada ali e ao redor da montanha uma vila se formou. Por várias gerações os homens esculpiram a pedra da "Tromba de Pedra" como é a vontade da velha. Com os passar dos anos, várias cidades forma construídas. Mas nenhuma nunca foi soterrada novamente pelas manadas de Mokbat.
Ainda hoje, dizem, que durante a noite na "Montanha Elefante" pode-se ouvir os gemidos e lamentos da velha mulher. No fundo da caverna que é fortemente guardada. Dizem que se a mulher desistir de sofrer, aquele reino todo será desolado novamente.
E que nenhum outro Deus é tão cultuado quanto Balkur, o desgraçado.
Há quem diga que após o acontecido, outros Deuses tentaram contatar a velha mulher. Que o próprio Tyr a buscou e ouviu:

"- O problema da justiça é que ela sempre está atrasada... Balkur é meu marido e a dor que ele me deu é nosso único filho! Um dia eu deixarei esse filho conhecer o mundo... E só aí eu terei justiça!"

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O que sabem os Deuses do tempo?

Lá do alto das suas cúpulas, permanecem os Deuses discutindo o vazar dos grãos de areia pelo ralo da existência. Assistindo ao relógio de todos os finais preencher completamente seu caminho. Sorrindo diante dos devaneios dos seres viventes. Que de tantas vezes divagarem sobre a existência já encontraram a verdade absoluta uma ou duas vezes. Mas acabaram afogando-a no turbilhão de pensamentos que é o existir. Sem nunca terem conseguido explora-la amplamente.
"- Eu sou do tempo em que os jovens respeitavam os mais velhos..." - diz o Seu Geraldo, morador de Botucatu no interior do Brasil.
E gargalham os Deuses do tempo em resposta.

"- Eu sou do tempo em que o tempo ainda não havia nascido..." - responde um deles em um silêncio profundo.
Uma raposa vermelha sentindo dor, doente, escorre sua língua para fora enquanto para de respirar. Sua ninhada chora sentada ao redor da mãe, o pai nunca participou da sua criação. Não era culpa dele. Quando digo NUNCA, digo que na história das raposas vermelhas, nenhum macho jamais ficou junto com a ninhada.
O corpo da raposa apodrece e em 2 ou 3 dias seus filhotes são mortos um por um, por predadores que não querem nada além de alimentar seus próprios filhotes. Que por sinal, ficam histéricos ao ver seus genitores retornando para os ninhos e tocas com grandes porções de uma saborosa e nutritiva carne de raposa para o jantar.
Por fim, o corpo da raposa vermelha é devorado por toda sorte de insetos, lesmas e vermes disponíveis no bosque. E a vida brota da morte. Com direito a flores silvestres de todas as cores nascendo por entre os ossos mortos daquela mãe.
"- Compreender o existir é uma tarefa para os humildes." - balbucia um deles sem dizer nenhuma palavra.
"- Alô" - responde Sílvia ao telefone celular enquanto dirige seu carro por uma rodovia.
"- Sílvia, vc pode falar?" - pergunta a voz do outro lado.
"- Estou dirigindo, quem é?"
"- Meu nome é Adalberto, sou da operadora de celular TUM! É sobre a sua conta de celular atrasada..."

"- Adalberto, quando eu tiver tempo procuro vcs ok?" - e desliga telefone a apressada Silvia.
"- Percebe? Que somos nós a moeda deles? Eles trocam tempo por vida, e nem percebem quando o fazem... Como crianças brincando com lâminas afiadas, vivendo da sorte..." - diz um deles sem nenhuma resposta dos outros.
Do alto de uma cachoeira, entre duas pedras com limo. Na sombra de uma pedra maior que se projeta para fora da queda da água, uma petúnia vermelha cresce majestosa. Sendo visitada por abelhas e beija-flores. Abre sua pétalas ao som da água corrente e contempla sua extraordinária visão. De mais um indescritível nascer do sol na campina. Pintando as nuvens de roxo, rosa, verde, amarelo, vermelho e branco.
Quando é arrancada por um único puxar de uma mão e sente a sua seiva escorrer enquanto sua existência termina.
O último som que escuta é:
"- Para ti Cecília! Te amo!".

"- A eternidade não é uma quantidade infinita de tempo... A eternidade é um instante." - pensa um deles.
Toda forma de vida que nasce ou brota nesse planeta tem um fio invisível atado ao firmamento. Esse fio se enrola ao carretel a cada volta que a Terra dá. Girando até que a linha se rompa, permitindo que novos fios substituam os que já existem.
Os Deuses do tempo decidem quanta linha existe em cada carretel. E o que sabem eles, eu pergunto?
"- No final, a maioria deles nem entende porque foi até lá..." - dizem todos eles olhando pra ti no exato momento que você termina de ler essas palavras.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Culpa do destino?
Universo em desatino!
Sopra vento,
corte fino.
Como frases de
um livro infinito.
Que nunca foi escrito.
A vida se faz no
instante:
Num momento se nasce.
Noutro se vai
adiante.

sábado, 7 de setembro de 2019

Sobre pássaros, chuva e a morte.

Eles dizem que quando você morre, sua vida toda passa diante dos seus olhos.
Eu não sei se isso é verdade, não me lembro de ter morrido para saber. Mas sei que estando vivo, e já tendo perdido pessoas que amava mais do que as minhas palavras enguiçadas conseguem expressar, um filme sobre a vida dos que se vão passa diante dos olhos dos que permanecem aqui.
Eu acredito que a vida seja desenhada entre diversas simbologias e que muitas vezes elas se trançam além do que nós compreendemos como realidade. Faço questão de permanecer conectado a essa mínima parcela que me faz imaginar o que não entendemos perfeitamente. Porque através dela, cada um de nós pode perceber algo novo. Algo único e que acima de todos os dogmas, define a visão de mundo única que cada ser humano possui por direito de ter nascido nesse mundo.
No dia em que o meu irmão mais velho faleceu a primeira frase que eu ouvi de uma das suas filhas foi:

"- Ele esperou a gente chegar para partir...".
Eu acredito completamente nisso.
Ele esperou a gente chegar para partir.
Forte como ele só. Um exemplo de pai, de irmão e filho. Mais um filho do meu pai a pular para o outro lado da cortina e sair do palco da vida. E enquanto cada um recebe e percebe essa nova realidade, eu me percebo encarando de novo a morte e seu terrível hábito de encerrar as coisas. Porque a morte não termina só a vida. Não, a morte põe fim as conversas que ainda não tivemos. A tudo aquilo que eu queria ter te dito e não consegui... As perguntas que eu deixei de te fazer. As histórias do nosso pai que por ser tão mais velho que eu, só tu sabias. Aos natais em que as taças de vinho e os sorrisos eram abundantes. Ao teu jeito engraçado e ao mesmo tempo sempre pronto para ajudar tanta gente dentro e fora da nossa família. A todo conselho que tu já deu as minhas lágrimas. Aos teus convites que eu queria ter aceitado e aos que eu queria ter te feito. E todo acalento que tu sempre teve no coração por todas pessoas ao teu redor.
A morte cessa muito mais do que a vida. Ela dá fim as possibilidades. E diante de uma força capaz de produzir essa interrupção, nós confrontamos a gigantesca pequeneza de todos os outros problemas. De todas outras questões. Nos percebemos como são importantes os momentos que temos. Como a vida é construída segundo sobre segundo. Como um sopro breve que tem começo, meio e fim.
Eu fiz questão de ver o dia de hoje nascendo meu irmão. Só pra ver como seria o céu no primeiro dia em que tu não estaria mais aqui. E não tenho vergonha de dizer que chorei assistindo ao filme da nossa vida que passou diante dos meus olhos.
Eu me lembro de um período em que nosso pai ainda era vivo e tu tinhas consultório perto da nossa casa. Todo dia estavas lá conosco. Bebendo um vinho na sexta feira ou tomando um café na terça. Me lembro das conversas na mesa. De abraços e sorrisos. De histórias e amor. Vá em paz, tu fez muito!
A gente vai se encontrar de novo. Até lá!

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Lá na minha rua...

Todo ano, no natal, ele se vestia de papai noel. O pessoal da rua já esperava. Sua pequena casa amanhecia toda enfeitada com renas de plástico, pinheiro, luzinhas piscantes, flocos de neve em chumaço de algodão e estrelas. E ele passava o dia vestido com uma roupa vermelha, touca e ouriçava toda sua barba branca para ficar o mais parecido possível com o bom velhinho. Caminhava pela vizinhança tocando um velho sininho de metal e com um saco abarrotado de balas e chocolates dizendo:
"- HO HO HO, FELIZ NATAL!" - enquanto a criançada o rodeava sedenta por doçuras que sempre vinham seguidas de um generoso afago na cabeça.
Quando chegava em Novembro ele já começava a dizer:

"- Mês que vem tem Natal! O Papai Noel está chegando!" - mesmo todo mundo sabendo que ele era o Papai Noel.
Um dia perguntei para a vó de um vizinho porque ele fazia aquilo? Já era tão velhinho e todo mundo sabia que ele era uma pessoa simples... 
"- Senta aqui querido, vou te contar uma história..." - ela respondeu sorrindo.
O Seu Mathias, como era conhecido, foi casado por muitos anos. A esposa, Dona Lurdes, gostava de cuidar das flores no pequeno jardim deles. Ele saía para trabalhar e não demorava sua mulher aparecia de lenço na cabeça, com uma pazinha de jardim revirando a terra, regando as mudas, cortando as folhas doentes. Assim eles viveram por muito tempo. Sem nunca ter filhos. Durante o Natal, eles enfeitavam a casa juntos e no dia, uma fila de crianças se formava no portão do seu jardim. A Dona Lurdes e o Seu Mathias distribuíam doces e até brinquedos para a meninada.
"- Pode entrar, o Papai Noel já chegou!" - dizia a Dona Lurdes sempre com um sorriso estampado nos lábios.
E quando um morador da rua os parabenizava pelo empenho a Dona Lurdes respondia sorridente:
"- As crianças precisam acreditar na magia. O mundo dos adultos é muito duro, mas crianças que acreditam na magia se tornam adultos mais gentis... Acreditar faz o mundo ser melhor!"
Ninguém sabe se o casal não podia ter filhos, se não queria ou o que tinha acontecido. Antigamente as pessoas eram mais discretas com a vida alheia. E alguns assuntos simplesmente não era abordados. O fato é que o Seu Mathias e a Dona Lurdes eram felizes como viviam. E que gostavam de participar do Natal daquele jeito: ele de papai Noel, ela de mamãe Noel, recebendo as crianças da rua no seu jardim florido...
Um dia o Seu Mathias saiu para trabalhar e quando voltou foi uma gritaria só. Uma ambulância foi chamada, a Dona Lurdes estava caída na cozinha. Um corre-corre danado, todo mundo veio acudi-lo. Ela foi levada de maca para o hospital. Ele do seu lado. A ambulância passou gritando na frente da casa dos meus pais, eu me lembro das luzes piscando e do rosto preocupado dos mais velhos. Alguns dias depois ficamos todos sabendo, a Dona Lurdes teve um derrame. Foi coisa séria, sobreviveu mas nunca mais caminhou ou falou como antes. Quando o médico deu a notícia do que havia acontecido, o Seu Mathias perguntou:
"- Mas ela vai melhorar quando doutor?"
"- Sr. Mathias, ela vai precisar muito de ajuda agora... A Sra. Lurdes por pouco não sobreviveu... O senhor vai precisar ajuda-la a fazer tudo. Do banho a alimentação."
"- Eu cuido dela..." - disse o senhor de cabelos brancos e óculos de lentes grossas passando a mão no rosto da senhora que estava deitada na cama ao seu lado.
Ninguém mais viu o Seu Mathias vestido de Papail Noel, até que alguns anos depois, ela partiu. No enterro entre as lágrimas e as condolências o Seu Mathias disse que o corpo da sua esposa havia se quebrado no derrame, mas que a mente dela ainda estava lá.
"- Toda vez que o final de ano começava a ser anunciado na TV, ela sorria..." - disse para um grupo de moradores - "E sempre que eu me vestia de papai noel, ela se agitava deitadinha... Eu passei os últimos Natais com ela, vestido de Papai Noel em casa... Terça-feira, eu acordei de madrugada e ela estava ofegante, liguei para a ambulância. Mas antes de eles chegarem ela já tinha partido. Segurou a minha mão e fez carinho na minha barba. Eu juro que no final ouvi ela dizer: Noel.".
No primeiro final de ano sem a Dona Lurdes, o Seu Mathias apareceu vestido de papai noel na rua, indo de casa em casa com seu saco de guloseimas. As crianças pequenas adoravam.

Uma vizinha lhe disse:
"- Seu Mathias, vamos combinar de levar as crianças na sua casa... O senhor não precisa vir até aqui, é arriscado, pode tropeçar, cair ou algo assim..."
"- Lá em casa não dá. O jardim não está bem cuidado e as crianças precisam acreditar na magia..."
Nesse final de ano, eu vi o Seu Mathias saindo de casa, deixando o saco de presentes no chão, se virando e fechando o portão bem lentamente. Levantando o saco com dificuldade, o apoiando nas costas, tirando um sininho do bolso e saindo pela rua dizendo:
"- HO HO HO, FELIZ NATAL!" -alguns metros depois as crianças pequenas começarem a aparecer gritando:
"- Papai Noel! Papai Noel aqui!".
Enquanto ele dava um docinho e um afago a cada uma delas.
Eu e outros vizinhos o acompanhamos sempre, alguns cuidando dos filhos, outros só se emocionando com a persistência  e carinho daquele senhor pelas pessoas e pelo Natal...
"- Eu acho que eles só queriam ser chamados de mãe e pai, mesmo que fossem a mamãe e o papai Noel..." - disse a vó do meu vizinho.
A umas semanas eu passei de carro pela casa dele e o vi mexendo no jardim, baixei o vidro e disse:
"- Seu Mathias, daqui a pouco já é novembro!"
Ele levou um segundo para me reconhecer e respondeu acenando:
"- Fala meu filho! O papai Noel está chegando..."
Verdade Seu Mathias, o Papai Noel está chegando, eu pensei.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Belchior e eu.

Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.
Belchior desliza dos meus fones direto para o meu cérebro.
Escorre o veneno da boca desse bicho peçonhento que me observa.
Meus olhos vermelhos soltam fumaça ao invés de lágrimas.
Brilha o céu, é noite, mas o sol resolveu aparecer.
Confusão mental e eu me sinto dentro de um sonho.

Meus longos diálogos foram substituídos por um silêncio gordo e estático.
Não, eu não vou deixar que vocês deem um troféu ao meu algoz.
Nenhuma liberdade pode ser presa por barras de ferro ou tijolos de pedra.
Ouço o vento chegar.
Que saudade frio, por onde tu andavas?

Meu corpo é deslocado a 20 metros de altura e arremessado ao infinito depois disso...
O planeta terra é gigante.
Mas diminui muito.
Fica do tamanho de uma quilica. Distante e solitário.

Penso: ainda dá pra voltar... Tá todo mundo lá.
Giro e desviro girando e desvirando.
Perco tudo que conheço de vista.
Porque eu ainda estou vivo? Já era pra eu ter morrido.
Passo por um jovem garoto, 8 anos no máximo.
- Quem é você? - nós dois dizemos ao mesmo tempo.
Quem sou eu?
Quem era ele?

O perco de vista numa lenta cambalhota espacial.
Tantos planetas, tanto espaço.
A vida é um sopro. 
Sinto vento e fecho os olhos.
- Perai! Vento no espaço, não tem...
Abro os olhos no mesmo instante que termino de falar. E sinto grama sob meus pés. Um céu azul sem nuvens e um gigantesco campo gramado com pequenas elevações, até onde meus olhos podem alcançar.
O espaço se desfez, a luz e o som dos pássaros. Olho para cima e tudo é azul. Sinto o sol ardendo minha pele, é agradável se sentir vivo assim. Numa manhã de sábado.
Onde eu estava? - me pergunto sem falar.

- Essa é a pergunta errada. - ouço.
Procuro pela voz, sem sucesso.
- Quem é? - eu pergunto.

- Essa também é a pergunta errada... - ela repete.
Procuro por todos os lados. Não há ninguém aqui... Além de mim.
- Eu não me importo em saber... - respondo.
- Não? - ouço.
- Não! - digo.

- Tem certeza? Bem lá no fundo... tem? - escuto.
- Escreveu certa vez um poeta:
"Não discuto

com o destino
O que pintar
eu assino."
- Você se esconde... - me diz a voz.

- Então você e eu somos a mesma coisa - respondo.
Silêncio. Como o som do universo.
A fera que te observa é teu reflexo. E escolher ser fera encarando seus olhos vermelhos é uma decisão sua. A cada respiração um novo mundo nasce. Respire, sinta o vento do universo, dome sua fera e siga seu caminho.






quinta-feira, 4 de julho de 2019

Ao redor daquele piano.

"- É por isso, entendeu?" - disse o Seu Arnaldo olhando para o neto.
"- Entendi vô..."
"- Repete então..." - disse o senhor de camisa social fechada até o último botão, calça de linho, meias finas e calçado engraxado. 

"- Porque as teclas são de marfim, a madeira é carvalho alemão, as cordas e todo mecanismo são originais de um lu... lu..." - o menino parou de falar. Procurando lembrar da palavra.
"- Lu... thier!" - disse o avô sorrindo - "Diz comigo..."

"- Luthier..."  - repetiram os dois quase ao mesmo tempo.
Felipe, o neto do Seu Arnaldo, aprendeu a entender o amor que seu avô tinha por aquele piano. O instrumento era majestoso, como pianos normalmente são. Preto brilhante, sempre limpo e ocupando um grande espaço na sala de estar dos seus pais. Era tocado sempre, por Martha sua mãe, pelo avô, por Jonas seu irmão mais velho e por seu pai. Felipe fazia aulas, logo depois do seu irmão. Aprendia escalas, alguns acordes e ritmos. Havia começado a alguns meses, mas gostava. Sua mãe tocava valsas longas, sorria enquanto seus dedos dançavam sobre as teclas. A ponta dos seus pés tocavam gentilmente os pedais, com força quando era preciso, mas sempre de forma gentil. Seu avô tocava pouco e cada vez menos. Dizia que os velhos dedos doíam e os pulsos das mãos já não lhe obedeciam como antigamente, mas tocava clássicas peças lentas, pausadas e muito bonitas. As vezes tocava só com a mão direita.
"- A mão boa..." - dizia com tom saudoso - "... a mão boa que me sobrou...".
Jonas, seu irmão mais velho, era um aluno dedicado. Tocava rápido e focado. Dobrava-se sobre as teclas e fazia seu corpo todo voar para a direita e para a esquerda. Se esforçando para alcançar as teclas mais distantes. Ele sempre foi muito bom. Não só no piano. Em tudo que fazia Jonas se derramava completamente. As aulas de piano eram só uma dessas coisas. Frequentemente, Jonas era convocado a demonstrar sua perícia diante de convidados em festividades familiares. Era sempre aplaudido por todos, Felipe adorava ver seu irmão mais velho aplaudido. E quase sempre era o primeiro a lhe dar um abraço de parabéns.

João, era o nome do seu pai. Era construtor e trabalhava muito. O piano era um amigo dele. Seu pai nunca sentava na sua frente a não ser que tivesse tomado um banho. Por várias noites, sem nenhuma ocasião especial, seu pai terminava de jantar, ajudava sua mãe a retirar parte da louça e já sentava ao piano. As vezes concentrado por dias em uma partitura específica, as vezes divagando sobre as teclas alguma melodia que avançava lentamente nota a nota... Seu pai e o piano conversavam muito. E não era raro para Felipe e Jonas adormecerem ao som da música.
"- Esse piano ocupa muito espaço Dona Martha!" - reclamou um dia Dona Gertrudes, a senhora que morava e trabalhava na casa da família desde sempre...
"- Ocupa espaço na sala Dona Gertrudes, mas dá muitas alegrias a nossa família..." - respondeu sua mãe.
Os dias da infância na casa dos Silva passavam rápido, mas é claro que nenhum dos membros da família conseguia distinguir a velocidade com que os dias se soldavam a noites e amanheciam novamente. Poucos percebem, o tempo é uma melodia que embala nossos passos de dança. Envoltos em suas notas e ritmos, os Silva nem imaginavam que um dia a música teria fim.
"- O piano Felipe?" - perguntou o homem - "Fica ou você prefere retira-lo do imóvel?"
"- O piano não fica... Ele vem comigo..." - respondeu Felipe com sua mão sobre a caixa fechada das teclas.
"- Tudo bem, vou terminar os outros cômodos. Qualquer dúvida te chamo..."
"- Ok, obrigado..." - Felipe disse sem tirar os olhos do grande e negro piano, agora cheio de pó, no canto da sala.
Muitas pessoas dizem que no momento da sua morte, um filme passa diante dos seus olhos. Apesar de não estar morrendo mais do que qualquer outro ser vivo saudável, Felipe via um filme de suas lembranças trançadas em sequencia, com uma trilha sonora vinda do piano. Estranhamente ele se recordava não só das noites de festas e músicas, mas também de todas as vezes que via o piano ali e pensava: 

"- Depois eu toco...".
Enquanto corria sobre as páginas da sua rotina infantil. Podia ser um jogo da seleção, o campeonato de futebol de botão na rua, uma prova de matemática, um chamado de Dona Martha ou um acidente de carro que aconteceu lá na frente da casa dos Rocha. Não importa, foram tantas as vezes que ele perdeu a chance de tocar o piano naquela atmosfera, que não importa mais. Toca-lo agora seria como fazer um show para um teatro sem público. Não havia o mínimo sentido. Toca-lo agora seria como conversar com uma fotografia, com uma lembrança. Toca-lo agora seria completamente impossível, na realidade.
"- Você toca?" - lhe perguntou o corretor de imóveis sem perceber que havia lhe dragado violentamente para o mundo real.
Felipe piscou diversas vezes, retirou a mão do piano, forçou um sorriso e disse:
"- Não mais..." - enquanto coçava um dos olhos com a mão - "Não toco mais...".
"- Minha esposa tocava, fazia aula e tudo... Mas nunca tivemos um piano em casa. Essa casa combina com ele, você sabe...".
"- Combina sim, é um instrumento muito bom, o seu criador era muito talentoso..." - sorriu Felipe.
"- Criador?? A pessoa que o fez?" - disse o corretor.
Felipe sorriu ao se ver com seu avô nessa mesma situação a décadas atrás:
"- Sim, esse é um instrumento feito a mão. Parte por parte. Nesse caso era um alemão, esse piano foi feito antes da segunda guerra mundial, tem uma história e tanto..."
"- Aaaaah... entendi." - disse o corretor desinteressado.
A casa foi vendida logo após a morte de sua mãe. Jonas morava em outro estado, mas a distância entre os irmãos era intergaláctica. Eles não se viam a anos. Sua pai já havia morrido a muitos anos e seu avô a mais tempo ainda... Sua mãe tocou o piano durante toda a vida e só parou quando a doença a obrigou a ficar deitada na cama. Felipe e Jonas tocavam para ela e sempre abriam a porta do seu quarto quando tocavam. Ela sabia quem estava tocando. Um dia, já perto do fim, Felipe terminou de tocar e foi até sua mãe para conversar:
"- Você está tocando muito bem Felipe" - disse a senhora de cabelos brancos e pele enrugada.
"- Sabe o que eu acho mãe?"
"- O que meu filho?"
"- Que a senhora só sabe quem está tocando porque eu toco mal..." - e sorriu.
Sua mãe não sorriu. Ela tomou uma respiração e disse:
"- Um piano não escolhe quem lhe toca. O piano emite o som de acordo com as mãos que lhe manejam. Exatamente como a vida filho: a vida não é difícil, ou ruim... A vida e a música simplesmente acontecem de acordo com as mãos de quem lhe toca. Se você acha que toca mal, aprenda a tocar melhor...".

Felipe ficou em silêncio. O mesmo silêncio daquela sala com as suas janelas majestosas e daquele piano no seu canto... O corretor já havia ido embora e o sol começava a partir. A música do tempo seguiu tocando...
Do outro lado do país, Jonas o irmão mais velho de Felipe, recebia um chamado em sua casa.
"- Entrega para o Sr. Jonas Silva".
"- To indo." - respondeu.
Ao abrir o portão, Jonas estranhou o caminhão da transportadora. Quatro homens uniformizados e um senhor de óculos e uma caixa de ferramentas...
"- Sr. Jonas Silva? Assine aqui o recebimento por favor..." - lhe esticou uma prancheta um dos homens uniformizados.
"- Mas o que é isso...?" - começou a ler Jonas.
No final do dia, o piano estava instalado na sua casa. Em um quarto onde antes havia um teclado... Jonas mal acreditava, mas era o instrumento da sua infância na casa dos seu pais. Sua esposa ouviu interessada as histórias do marido. E no final disse:
"- Isso é coisa do seu irmão... Você devia ligar pra ele."
Naquela noite o piano teve companhia e sua música aconteceu.
No outro dia, quando Felipe atendeu Jonas no telefone, ele disse:
"- Alo?"
E a vida aconteceu.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Seu Joca e Dona Beatriz.

Se conheceram ainda pequenos. As famílias eram amigas, suas mães haviam sido vizinhas de infância. E cresceram próximas, sendo melhores amigas. Joca, era o apelido dado a Joacir da Rocha Filho. Beatriz, por outro lado, não gostava de ser chamada de Bia. E sempre se apresentou pelo nome completo:
"- Beatriz Weymuth Linhares. W - e - y - m - u - t - h." - soletrava mesmo sem ser questionada pelos interlocutores.

Mesmo sendo de dois reinos completamente diferentes o menino Joca e a menina Beatriz dividiam todo o tédio que as reuniões familiares forneciam a duas crianças. Por vezes, nos recreios do colégio em que estudavam, se viam e nem de longe se davam oi. Mas nos finais de semana de churrasco, enquanto seus pais se refestelavam na mesa, os pequenos se viam sem opção além de tentar encontrar um espaço em comum para ter companhia. Nas primeiras vezes, Joca pareceu um tanto quanto idiota a Beatriz. Corria muito. Suava muito. Subia em árvores e jogava frutas nela. Estava sempre sujo, ofegante e muitas vezes tinha um cheiro desagradável.
"- Eu não quero ir mãe!" - bradou a pequena Beatriz à sua mãe um dia enquanto a família Linhares se preparava para ir a casa dos Rocha. Seu pai continuou carregando o carro com cervejas, carvão e pães comprados para contribuir com o jantar. Sua mãe que arrumava o cabelo na frente do espelho lhe disse sem largar a escova:

"- Porque?"
"- Porque é chato! O júnior é um chato!" - reclamou a menina com uma longa trança feita previamente por sua mãe.
"- Beatriz, vou lhe contar um segredo, vem aqui..." - a menina chorosa se aproximou enquanto a mãe se virava para ela - "... garotos tem medo de meninas de trança!"
"- Tem medo?" - perguntou a pequenina com os olhos arregalados.
"- Sim, eles morrem de medo! Porque sabem que meninas de trança são muito corajosas. E que podem fazer coisas incríveis quando querem. Por isso eles correm tanto, se escondem e ficam de longe nos olhando..."
Quando sua mãe parou de falar, Beatriz tinha um sorriso poderoso desenhado nos lábios. Um sorriso infantil, mas de quem estava pronta para ter o poder de causar medo num animal tão selvagem quanto o menino Joca.
Naquele churrasco, após o jantar, a pequena Beatriz ficou mais tempo sentada na mesa dos adultos, sem entender quase nada que era dito. Mas sempre concordando quando sua mãe concordava e a admirando quando dava sua opinião. De vez em quando, a menina Beatriz acabava provocando o riso nos mais velhos por repetir exatamente o que a mãe havia acabado de dizer, tropeçando sobre as palavras difíceis... 

Joca, por sua vez, rondava a mesa como uma onça que observa uma presa. Espiando pelas frestas das portas e por trás dos sofás. De vez em quando se aproximando dos pais pra tomar um copo de refrigerante e depois correr para o mundo exterior, até reaparecer em algum lugar e repetir o processo.
O tempo fez o que o tempo sempre faz. E passou.
A pequena menina Beatriz e o peralta menino Joca se transformaram na Beatriz e no Joca. E a amizade dos dois ficou bonita de ver. Beatriz, alguns meses mais velha, ajudava o Joca nas provas de física e matemática. O Joca ficava feliz em revisar as aulas de história e regras gramaticais com sua amiga, mesmo tendo a impressão de que ela não tinha a mínima necessidade de revisar nada... No colégio, já passavam os recreios juntos. Com mais amigos, mas sempre próximos. No baile de formatura do segundo grau, Joca e Beatriz dançaram juntos. As famílias dividiram a mesa no salão. Foi naquela noite que Joca a beijou pela primeira vez, ela sorriu nervosa e o beijou de volta. Tudo aconteceu rápido numa sacada aos fundos do clube.
Beatriz foi estudar na capital, Joca seguiu trabalhando na loja dos seus pais. Quando o pai de Joca teve um piripaque e foi para o hospital, a Beatriz não demorou a aparecer. Seu pai faleceu em uma manhã de domingo, Beatriz segurou a mão do Joca durante todo velório.
No último ano de faculdade, Beatriz ligou para o Joca na loja:

"- Joca, eu vou me formar... Você dança no baile comigo?"
Ele sorriu.

"- Claro!" - respondeu a voz de Joca do outro lado da linha.
Eles se casaram em julho e a mãe do Joca disse que seu pai estaria muito feliz de ter ganho essa nova filha. Beatriz estava linda de noiva, com uma longa e espessa trança nos cabelos.
Com o passar dos anos, os pais dos dois se foram, um por um... E da barriga da Beatriz, duas  crianças rosadas saíram: João e Lúcia.
Um dia antes de sair de casa, Lúcia disse para sua mãe que não queria ir no aniversário do amiguinho porque ele era chato e tava sempre sujo.
Beatriz respondeu:

"- Lúcia, eu vou te contar um segredo: meninos tem medo de meninas de trança...". E viu Joca sorrindo perto da porta ao ouvir sua conversa com a filha.
A vida era boa, mas o tempo raposa que é, nunca se cansa de correr.

Tudo começou com uma febre que não tinha explicação. Logo os médicos entenderam que havia algo de errado. E Beatriz precisou ser hospitalizada. Foi rápido demais, mas afinal, qual morte não é? Joca precisou deixar os filhos com um primo e ficou ao lado de Beatriz todo o tempo. Um dia o médico lhes disse que a doença havia avançado muito e havia restado pouco para se fazer.
Joca chorou. Beatriz fechou os olhos, mas mesmo assim algumas lágrimas lhe escorreram pelo rosto. Seus filhos foram trazidos e ela conversou com cada um deles separadamente.
No dia do enterro, chovia uma chuva fina de céu cinza e tempo frio. Joca estava abatido, quase irreconhecível. João chorava muito, inconsolável. Mas Lúcia parecia de alguma forma suportar tudo aquilo.
Muitos anos se passaram e Joca envelheceu cuidando dos seus filhos. Foi no casamento de Lúcia, enquanto fazia o brinde aos convidados que disse:
"- A Beatriz ficaria muito feliz de estar aqui hoje. De fato, eu gosto de imaginar que ela está..." - e engoliu algumas palavras... - "Eu sei que hoje é um dia de alegria... Mas eu nunca agradeci a ti Lúcia, por cuidar de mim e do João logo após a morte da tua mãe. Foram dias muito difíceis. Tu eras só uma menina, mas cuidasse de nós como uma adulta. De alguma forma tu, muito jovem, suportou tudo aquilo de um jeito que eu, em idade adulta, não pude..."

Lúcia que estava de pé ao lado do marido, apontou para o cabelo e disse:
"- Tá tudo bem pai, eu estava de tranças...".



quinta-feira, 18 de abril de 2019

Sobre ser livre em mundo de masmorras.

Eu prefiro ser livre.
Isso não me faz melhor que ninguém. Mas também não dá pra aceitar que me faça pior... Ser livre é no fundo uma declaração de independência. Um grito de liberdade contra os grilhões que violam a rotina que te proíbe de florir na primavera. Que não te deixa abrir as asas e voar. Que te diz que não vai dar pé, que não vale nem tentar.
Claro que o risco não é o único preço que a liberdade cobra. Li em algum lugar que o que a vida quer é que tenhamos coragem. Talvez, mas principalmente, a vida quer que tenhamos coragem para desafia-la.

"- Tu vai falar alguma coisa?"
Em silêncio por muito tempo, ele levanta os olhos lentamente.
"- Não vai né?" - perguntou ela com os olhos semi cerrados. - "Tu vais ficar quieto..."
Ele respirava fundo. Não de forma barulhenta ou agressiva, só respirava sentindo o ar circular pelas narinas em direção aos pulmões. Num ato intenso, ritmado e profundo. Como se cada respirada fosse uma chance de viver mais um pouco. Como se a cada vez que ele inspirasse o ar para dentro do seu tronco, a vida recebesse mais um pouco de água. A vida recebesse mais um pouco de tempo.
Até que ele vagarosamente inspirou o ar, enchendo seus pulmões com bastante ar. E não o soltou. O som do mundo se calou. Os pássaros não conseguiram mais cantar. Os passos não causaram mais barulho. O vento não conseguia assobiar. Tudo ficou mudo.

E na sua frente, a vida parecia tentar gritar. Gesticulava nervosamente, movendo mãos e braços, movendo lábios e língua. A vida vivia a agonia. 
"- Tu não vais mais decidir por mim..." - ele pensou em total silêncio.
A vida já estava de joelhos, se asfixiando. Roçando as pontas dos dedos no próprio pescoço, com lágrimas escorrendo dos olhos. Quando ele disse:

"- Eu sou livre!".
E todo o som do mundo voltou.
Como uma onda que encontra a areia da praia.
A vida golfou ar para dentro, respirando tempo e concordando com a cabeça.

Eu sou livre, ele disse. E a vida ouviu. Desde então, qualquer um que deseje ser livre, só precisa dizer. Ser livre é uma escolha. E apesar de todas as vezes que ele cai, alguém rir, alguém lhe apontar o dedo, alguém lhe dar palavras perversas pelas costas. Ele dobra os joelhos e novamente fica de pé.
"- Ralar os joelhos é um preço barato para se pagar pela minha liberdade." - ele me disse.
E o caminho segue longe. Passo por passo, queda por queda. Vitória por vitória. Ele vai, já não mais sozinho. Mas acompanhado por tantos outros que concordam que a liberdade é talvez o mais importante dos valores. Pois sem liberdade, nenhum dos outros valores podem ser  valorizados.
A vida lhe segue, as vezes preocupada, as vezes achando graça. Mas sempre orgulhosa, pela coragem que teve em ser livre.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Quando eu era pequeno.

Sol nascendo sempre me dá esperança. Sempre me deu. Sol nascendo é a semiótica do universo resumida na imensidão do céu. Eu lembro de quando criança, assistir por vários dias o sol nascendo. E quando eu conversei com meu pai sobre isso ele me aconselhou a desenhar ou escrever sobre o que eu sentia. Acho que eu to até hoje fazendo isso: escrevendo e desenhando o que sinto.
E sei lá, não me parece que existe certo e errado nisso. É só algo que aconteceu. E também acho que esse pensamento de não me permitir ver o "certo ou errado" nas coisas é algo que faço a pouco tempo. Na real, foi depois dos 30 que isso começou... Antes eu julgava com muito mais frequência. Aprendi que quanto menos eu julgo, mais leve eu me torno. No final, é um ato hedonista, de querer ser mais leve. Talvez até de ser mais feliz. Mas de qualquer forma, é melhor assim.
A vida é curta demais para sinais vermelhos, ouço alguém dizer. E de fato, acredito que seja... Mas entendo que os sinais vermelhos aqui, não sejam os semáforos com a luz vermelha acesa. Não. Eu acho que estamos falando de parar para julgar o próximo a cada tropeço que esse dá.

"- Tu ficou sabendo do Fulano?" - me perguntam.
"- Não fiquei sabendo do Fulano!" - respondo.

"- Ele fez isso e aquilo e depois aconteceu aquilo outro e mais aquele negócio...".
E eu me sinto no recreio do meu colégio, estando no pré-escolar. Sentado no pátio com a minha lancheira do He-Man aberta, comendo um pão com manteiga, presunto e queijo. Sinto o sol das 10h da manhã batendo no meu rosto, o vento movendo as folhas da grande árvore que tinha naquele pátio. Meus amiguinhos e amiguinhos conversando sobre desenhos animados e brinquedos... E aí alguém tropeçava na frente do pequenos, e a gente gargalhava como se aquilo fosse um circo. E a pessoa que tropeçou fosse um tipo de bufão ou palhaço. Simplesmente ignorando que essa pessoa podia ter se machucado, se ralado ou simplesmente ter ficado chateada pela humilhação de cair em público sem querer...
Mas nós todos éramos crianças.
O tempo passou e soprou a nossa infância para longe.
"And now that i´m older, my heart is colder..." canta o Arcade Fire nos meus ouvidos. (Inclusive, se puderes, clica nesse link e assiste a essa versão da música com o David Bowie, que é fantástica...).

Hoje, provavelmente a grande maioria de nós correria até a pessoa que caiu lhe oferecendo ajuda. Mas as vezes, você vai encontrar alguém que apontaria o dedo e riria.
Não deixe de ir até a pessoa e ajuda-la, mesmo ouvindo risos.

Acho que a vida é sobre saber envelhecer.
E é isso.



terça-feira, 9 de abril de 2019

Me atiro sobre o tiro.

Eu tava pensando que todo começo de texto é a eclosão de um casulo. Não sei como os outros escrevem, eu pelo menos, nunca tenho certeza do que vai sair pela ponta dos meus dedos. É parecido com a maturação de uma fruta, tu não tem certeza do sabor do morango até poder prova-lo. Eu sei que já falei sobre isso antes, mas a página em branco é um desafio para qualquer um que deseja se expressar. Ela é a primeira a ler o que se diz. E as vezes te diz que não gostou do que está escrito. Outras vezes ela permanece em silêncio. O fato é que nem sempre se pode ouvir as vozes pelo caminho, a voz da página em branco é só mais uma a ser ignorada.
Mergulho mais fundo e o que me vem a mente é um emaranhado de lembranças. Ainda essa semana eu sonhei com o meu velho pai, ele sorria, parecia super bem, mais jovem do que da última vez que eu lhe vi. É um daqueles sonhos que são parte sonho, parte pesadelo. Eu lembro de sorrir de volta pra ele e do pensamento "pô, agora eu posso falar contigo sobre isso aqui que eu tenho guardado..." mas mesmo tentando, eu não conseguia falar. Até pensar: 

"- Ok! Eu não falo nada então, só de ficar perto de ti já tá massa..."
Alguém me diz que o sonho não era sobre meu velho, era sobre "isso aqui que eu tenho guardado...".
Talvez.
Mas eu continuo a descer nesse universo branco e deixo o setor "velhos parentes que já morreram" para trás. "When i come back, i´ll give you love and I hope that you´ve not given up", canta o George Taylor nos meus ouvidos exatamente agora. É uma boa música, por isso deixei o link.

É engraçado como a gente persegue o sol. Quando o sol não está no céu, a maior parte da humanidade se desliga do mundo. Hão de dizer que existem os que trabalham a noite, os que curtem a madrugada e os que não conseguem dormir. De fato, eles existem. Mas a grande maior parte de nós, segue o sol para onde ele for. Somos como girassóis que caminham pela terra. Sempre em busca de mais um raio de luz. Não é de espantar que os primeiros de nós fizeram do sol uma divindade. Ok, parei. Alguns pensamentos são pássaros presos em gaiolas, livres se vão para além dos olhos. Presos são bonitos e tristes ao mesmo tempo...
Tenho tentado não escrever sobre esquerda e direita, sobre política e comportamento humano. Mas não vou mentir: tenho enchido a minha caixa de "rascunhos" do BLOGGER com vários textos inacabados.
Esses dias sentei para fazer a minha primeira tatuagem, e depois de 5h, ela estava feita. Não vou reclamar de tudo o que aconteceu com ela depois, basta dizer que falar sobre a marca que escolhi pra minha pele é completa quando a menciono nesse tecido digital que é o MURRO. Eu a acho linda de qualquer forma e não tenho nem 1g de arrependimento.
Minha pele foi a página em branco de alguém.
Quantas vezes nós somos a página em branco de outras pessoas?
Prontos para cumprir o que se espera ou o que desejamos? Ou o meio termo entre as duas opções?
Viver é tatuar os dias, nós nunca poderemos voltar para corrigi-los. Mas sempre poderemos tatua-los de outra forma amanhã.
Não se esqueça nobre navegador digital: viver não é preciso, navegar é preciso.
Até :)

terça-feira, 12 de março de 2019

É solitário ser brasileiro.





Eu penso que o mundo considere o Brasil um país cheio de gente alegre. Não de um jeito bobo (talvez não muito bobo...), mas de um jeito estranho. Eu sei que o planeta sabe dos problemas do Brasil. A gente vive num país violento, mal estruturado e somos uma das sociedades mais corruptas da história da humanidade. Mas ainda assim, temos carnaval, bunda, futebol de qualidade (talvez não muito...), boa comida, caipirinhas e uma liberdade invejável (as vezes...).
Claro que não vai ser o mundo inteiro que vai nos ver desse jeito feliz. Mas de uma forma geral, somos sim uma nação insistente. Afinal, "eu sou brasileiro e não desisto nunca"! As vezes, vejo notícias do mundo afora e não entendo como alguém pode viver em uma zona de guerra como o Afeganistão. Cidades com seus centros destruídos, carros desviando de destroços e corpos, mas aí eu vejo um take da CNN de uma favela de SP e percebo que a gente parece estar mais em guerra do que alguns países do oriente médio. Ainda assim, no Brasil se você fala isso em voz alta o que se escuta são respostas como:
"- A culpa é do PT!"
"- A culpa é do Bolsonaro!"
"- O culpado disso aí é o Sérgio Cabral!"

"- Foi o Lula!"
"- O Aécio é o culpado!"
E toda vez que uma dessas frases é dita, meu desespero cresce um pouco mais.
Cada vez mais parece que a gente vive em um país que não se percebe como um país. Nós somos centenas de escolas de samba disputando o prêmio de vencedor.
Parece que morreremos todos acusando uns aos outros pela culpa da nossa morte.
Um país de tolos de fato.
Que votam como se move o gado, em manadas controladas pelas chibatas e os gritos.
Que acreditam nos porcos sentados na sala de jantar da casa grande da fazenda, entorpecidos de uísque e poder.

Acreditando que podemos nos tornar um país melhor simplesmente por imitarmos as maiores economias do planeta terra.
Sonhando com uma sociedade honesta e furando sinaleiros enquanto estamos acordados.
Acreditando que o quinhão conservador da nossa sociedade nos levará a uma era de prosperidade, justiça e harmonia.

E que o Deus que está acima de todos, não pode compreender o amor. Porque só existe um amor. E ele sobrepõe todas outras forma de amar.
Enquanto esse trem acelera sobre os trilhos, nós observamos o penhasco a nossa frente aumentando de tamanho e uma reza em coro que parece acreditar que esse trem voará pelas asas de ícaro.
"- Eu acho que vamos cair nesse buraco se continuarmos..." - eu digo.
"- Tu é muito negativo!" - ouço.
Fecho meus olhos, talvez cair penhasco abaixo seja uma boa alternativa, penso.
Seria como começar de novo.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O muro.

Existe algo a respeito do muro.
E não é a sua altura.
É o silêncio daqueles que planejam derruba-lo.
E não se engane nobre transeunte: hão de derruba-lo em breve.
Não existe muro que resista para sempre. Nenhum deles se mantém de pé. Na verdade, a verdadeira função do muro não é delimitar a passagem.
Não. A real função do muro é cair.
Tijolo após tijolo, empilhados e acimentados. Perfilados em colunas verticais niveladas. Equilibradas com maestria.
Seguindo os relevos do solo. E se estendendo por longas distâncias.
Feitos como cicatrizes na pele da terra.
Lembrando a quem vem que não só a passagem é proibida, mas a visão também.
E nas sombras projetadas pelos muros, sentados no ponto em que a pedra empilhada se encontra com o chão, existimos confabulando sobre quais tijolos quebrar primeiro. Sobre por onde começar... E não nos confunda com aqueles que pretendem pular os muros para roubar a posse alheia. Assim que essa parede estiver no chão, nós começaremos a discutir qual deve ser a próxima. E a próxima depois dela.
Muros são feitos de pedras, mas são fundamentados sobre ideias. Nenhuma outra raça, além dos humanos, constroem muros impossíveis de serem ultrapassados. Murar é um habito nosso. E não só com pedra, madeira e metal. Nos muramos nossas vidas. E as vidas ao redor das nossas vidas. Muramos nossos pensamentos, muramos nossos olhos, muramos nossos hábitos, nossas lembranças e até nossos planos futuros.
Na verdade, a gente constrói tantos muros que ficamos até sem ter para onde ir. Dentro de tantas muralhas, com tantas alturas, materiais e espessuras diferentes a gente fica. Sem nem conseguir olhar para o céu direito. Nos sentindo completamente seguros.
Mas lembre-se, muros sempre caem. Seja pelo plano "mirabolante" dos que desejam a sua liberdade ou pela necessidade de outro muro ser construído. De uma forma ou de outra, aproveite a brecha pra olhar além dos tijolos... O planeta já tem muros demais. Seja o próprio céu que te proíbe de ver o espaço, ou o horizonte que te castra de perceber o que há além daquela montanha...

Para alguns muros, picaretas.
Para outros, basta dar um passo a frente.
Desmure-se!

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Divisão de mundo paralelos e suas histórias fantásticas.

A primeira vez que ele ia na casa de uma namorada, conhecer seus pais.
Quando chegou lá, tava de boa. Mas não demorou muito pra sentir uma pontada na barriga, que evolui rapidamente para um clara identificação de gases. Até conseguir liberar um par deles, mas logo sentiu que a Fantástica Fábrica de Chocolates tinha iniciado a produção e precisava entregar a produção. Estava sentado na mesa com os pais dela, conversando sobre a cor do céu e essas bobagens. Quando perguntou onde era o banheiro, nos olhares ficou subentendido que era um xixi rap10. Lhe indicaram o lavabo ao lado da sala de jantar. Entrou no furacão do funk, soltando o baixo pela porta dos fundos. Desceu a calça na velocidade do The Flash e a cascata da lama foi liberada. Evacuação nível Shrek com direito a notas de Chuck o Boneco Assassino. O alívio foi tão grande que ligou o foda-se para o som da Orquestra Filarmônica do seu rabo.
Serviço feito, aqueles 10 segundos pra se recuperar, papel higiênico. Suporte vazio. Abriu todas as gavetas do móvel, zero. Sua bunda estava derretendo de suja. Alternativas:
1)não limpar, o cheiro ia ser foda.
2) limpar com uma cueca ou meia e jogar fora, o lixo era bem pequeno ia dar merda.
3)lavar na pia e secar como fosse possível, escolheu essa.
Tirou a calça, a cueca, as meias e os tenis. Motivo: não molhar a porra toda. Plano perfeito, ação rápida. A pia era suspensa ao lado do móvel, ajeita daqui e de lá, um pé pra cima, o outro na pontinha, ligou a torneira e a começou a efetuar a higienização. Primeira onda, segunda onda, terceira onda... Ouviu um crack. Nem deu tempo de nada, a pia rompeu. Tudo ficou preto.
Acordou no hospital. Luzes, médico, seus pais e a namorada chorando no conta da sala.
"- o que aconteceu?" - perguntou de prima.
"- Calma, tá tudo bem agora..." - diz o medico. - "... você sofreu um acidente, mas está bem...".
A namorada saiu correndo pela porta com os pais atrás dela.
A mãe só olhava para baixo, sem dizer nada. Seu pai esperou todo mundo sair e começa a falar:
"- ... os pais dela ouviram o som de algo quebrando, ou caindo no chão e foram até o lavabo ver se estava tudo bem. Te chamaram várias vezes, mas tu tava desmaiado. Alguns segundos depois, começou a sair água e sangue por baixo da porta. O pai dela se desesperou e arrombou a porta do lavabo. Encontrou vc caído no banheiro, todo sujo de merda e com um corte do tamanho de uma faca na coxa direita, com sangue e gordura saindo pelo corte... A porcelana quebrou e deu um talho na tua perna, tu levou 21 pontos. A pia estava estourada no chão, o cano aberto saindo água, a mãe dela começou a gritar e foi correndo fechar o registro, tua namorada ligou para a ambulância, o pai dela te levantou e te levou até a sala, completamente nu e cagado... Eles nos avisaram a caminho e estamos todos aqui agora...".
Ele nunca mais ouvi falar da namorada. Talvez as primeiras impressões realmente fiquem.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Artigo infiel.

Murro na cara, preciso te dizer que eu venho te traindo. Longe de ti eu escrevi em outras páginas em branco. Escrevi com canetas de várias cores. Escrevi em paredes, em mesas e até na pele de algumas pessoas. É isso. Longe de ti, eu continuei escrevendo. E fui escrevendo, frase após frase, através de muros, árvores, do chão, paredes e testas de pessoas, até voltar ao meu teclado. E digitar essas palavras.é muito libertador. Te dizer isso, é me livrar da culpa e me aceitar, como alguém que escreve além de ti.
Pensei em uma história em que uma pessoa saía de casa todo dia e ao se deparar com o porteiro do prédio, dizia:
" - Dia quente não?"
" - Sim sr. Dia quente..." - respondia o porteiro.
Um dia depois, na mesma situação:

" - Chovendo cedo.... que saco!"
" - Sim sr. Chuva de manhã cedo é complicado." - respondia o porteiro.
Alguns meses depois:
" - Tempinho nublado, vai ser um dia feio..."

" - Verdade sr, o tempo está fechado..." - respondia o porteiro.
Algumas estações depois:
" - E esse frio aí? De rachar né?" 

" - Muito frio sr!" - respondia o porteiro.
O tempo passou e chegou o momento do porteiro se aposentar. A empresa que o havia contratado o avisou da data com antecedência. E o porteiro se preparou para o último dia de trabalho. Acordou antes do sol nascer, fez a barba, vestiu o uniforme, tomou uma xícara de café preto, beijou o rosto da sua esposa e foi para o prédio.
Foi um começo de dia como qualquer outro... Algumas pessoas passando pela portaria sem nem percebe-lo. Organizar todas correspondências. Receber funcionários de empresas que vieram trabalhar no prédio... Nada demais.
Até que ele apareceu. Sempre trajado como um executivo, falando ao celular, postou-se na entrada a espera do seu motorista. A ligação logo foi encerrada e ele disse ao porteiro:

" - Abafado né?"
Mas dessa vez o porteiro não concordou:
" - Não!"
" - Não?" - disse o morador do prédio desconcertado...
" - Está abafado, mas hoje eu não vou concordar com a tua visão de mundo. Sempre reclamando da chuva, do sol, do calor ou do frio. O seu mundo é o que você percebe dele... Só isso".

O seu mundo é o que você percebe dele.
Não é preciso mudar de mundo, é preciso mudar de percepção.