quinta-feira, 25 de maio de 2023

Silêncio.

Silêncio.
O dia rasgava o negro céu da noite. No horizonte, cores como amarelo, roxo, azul escuro e laranja avermelhado avançavam diante do recuo da escuridão. Na antesala dos aposentos reais, uma mesa de 6 lugares estava com 5 cadeiras ocupadas. O Rei, sem coroa, acordado a pouco tempo sentava junto de seus conselheiros mais íntimos. Poucos vestidos apropriadamente, acusando pressa e pouco tempo de preparação. Subitamente a porta é aberta, sem batidas. E um homem com aproximadamente 2 metros de altura, ombros largos, barba dourada cortada e pouco cabelo sobre a cabeça entra alguns poucos passos e abaixa a cabeça até tocar com o próprio queixo no peitoral da suntuosa armadura que vestia.
"- Majestade!" - diz ele com a cabeça baixa.
"- General Alefh... ficamos felizes com a sua presença." - diz o Rei com uma voz monocórdica. Sem retirar os olhos daquele homem.
"- Retornei nesse instante majestade. Vim sob a ordem que recebi, quando parti...".
"- E então?" - pergunta o Rei dobrando o tronco sobre a mesa enquanto enche uma pequena xícara a sua frente com uma bebida quente.
"- Não diria que vencemos Majestade, nossas tropas foram dizimadas. Sobraram pouquíssimos homens vivos, menos de 100 talvez... Mas o inimigo teve menos, seus soldados fugiram em direção aos bosques do Sul. O campo de batalha é nosso, enquanto falamos aqui, soldados retiram o que vale ser retirado dos mortos..."
"- Como não diria que vencemos General?" - interrompe um homem magro vestido todo em preto, sentado ao lado direito do Rei.
O General para diante da fala. Respira por um breve momento enquanto desliza os olhos de volta aos olhos do Rei e diz:
"-... esses espólios de batalha serão recebidos no final da tarde de hoj..."
"- Porque não diria que vencemos General?" - pergunta o Rei lhe interrompendo.
Silêncio.
O homem magro vestido de negro sentado ao lado do Rei esboça um sorriso no canto da boca.
Silêncio enquanto o General Alefh olho nos olhos do Rei e vagarosamente abaixa a cabeça...
"- Majestade..." - ele diz - "... posso lhe falar com franqueza?"
"- Oraaa, vamos homem!!! O que aconteceu?" - diz o Rei irritado, dando um leve soco com o punho fechado sobre a mesa de madeira.
Silêncio.
"- Nossos homens... os homens que morreram nesta batalha... Em breve eles estarão lutando pela flâmula do inimigo. Os homens que deixei lá, não ficaram somente para retirar os espólios da batalha... Eles estão ateando fogo aos cadáveres. O exército deles majestade... não eram homens, digo, já foram homens um dia, mas agora não sei se ainda se chamam assim..." - movendo as mãos de forma desconcertada - "...já foram homens, mas agora são outra coisa... São mortos que lutam. E lutam bem majestade..."
Silêncio.
"- Isso são histórias para crianças, general..." - disse o homem magro vestido de negro... - "o Sr. bebeu antes da batalha?"
Levantando a voz o General responde:
"- Eu serei respeitado feiticeiro! Pelo amor de quem me ama, ou pelo corte da minha espada..." - encarando o homem de negro nos olhos.
"- Calma senhores..." - diz um homem com vastos cabelos vermelhos e um grande queixo duplo abaixo dos largos lábios, exibindo um manto bastante ornamentado e se parecendo muito com um grande sapo branco gordo... - "... tenhamos foco nas questões da coroa, o General Alefh com certeza não está aqui brincando com crianças... Tenhamos calma agora...". - em tom apaziguador.
E continua:
"- General, tem alguma forma de nos fazer visualizar o que o senhor viu, além do seu relato? Algum outro soldado, talvez? Que pudesse nos contar o que experimentaram naquela campina...?".
Silêncio enquanto os olhos de todos deslizam uns contra os outros. Como um delicado fio de água fria em um riacho semi congelado no interior de um bosque invernal. Até que todos os olhos repousam sobre o General de pé na sala.
Ele parece esperar por isso. Esperar que todos se olhem, que os rostos se encontrem. Sua própria face parece feita de pedra fria. Com uma linha reta e fina no lugar da boca. Olhando ninguém, vendo o todo. 
Ele não demora a começar a falar, com calma, sem elevar a voz:
"- A primeira vez que pisei na cidadela real, foi como escudeiro do meu falecido tio.  O Cavaleiro do Sol durante o reinado de Zuga´Rth o ordeiro - avô de vossa majestade... 
Eu já tinha idade para me tornar cavaleiro, mas nunca tive a chance... Era o festival de verão, e o Cavaleiro do Sol foi convidado a jantar com a família real depois de vencer todo e qualquer desafiante na lança montada. Durante o jantar, meu tio pediu ao Rei que me batizasse cavaleiro. E o único pedido do Rei foi me ver vencendo um soldado a sua escolha. No próximo dia, no entardecer, fui chamado a sala do trono. Meu tio, o Rei Zuga´Rth e toda alta corte estavam presentes. Diante das escadas de pedra do trono, haviam duas espadas largas de batalha e um soldado real vestia armadura e elmo fechados ao seu lado. Me foi dito diante de toda corte que se eu tinha o desejo de ser batizado cavaleiro, deveria erguer uma das espadas e vencer o soldado por submissão. Eu ergui a espada vestindo roupas simples, sem malha de ferro, ou um corselete de couro que fosse. E o soldado com placas de metal e elmo fechado avançou sobre mim como a tormenta. Descendo a lâmina da espada com força o suficiente para amputar um braço, caso não me esquivasse com rapidez e precisão. Eu saltei senhores, como saltei... Desviei das investidas sabendo que se errasse provavelmente seria ferido para sempre. Me tornaria um coxo manco ou coisa pior... Eu ouvia os suspiros das damas de honra e das esposas dos lordes e duques presentes enquanto a lâmina dele zunia no ar. Mas eu via nos olhos do meu tio o lembrete para um dos ensinamentos mais antigos dos campos de batalha: o homem que ataca se cansa, o que se esquiva não. E eu dancei até o soldado gritar para que eu lutasse "como um homem!". Então eu vi que ele ofegava e suava.

E eu senti que tinha uma chance de ouro. Mas também entendi que aquele soldado não era um homem de armas comum. Ele era um filho de um lorde ou um jovem cavaleiro recém batizado... Porque minha atitude teria irritado qualquer um, mas somente alguém de alto nascimento teria reclamado. E como ele reclamava! Eu senti que ele estava instável, que sentia vergonha de não em atingir. Que de alguma forma aquilo havia sido ensaiado, que alguém achava que o fim da peça de teatro seria outro... Então dei mais tempo a ele. Deixei que ele ficasse mais ofegante e irritado. Ele começou a espassar mais e mais cada investida. Sempre falhando... Mantive meu coração em pedra fria, meus olhos atentos e meu ego amordaçado. Se eu dançasse corretamente a música, seria batizado cavaleiro ali mesmo. Essa era a oferta que me fizeram."
Todos na mesa o encaravam com os olhos arregalados, então Alefh deu tempo ao tempo e respirou fundo, como os bons contadores de história o fazem nas fogueiras dos acampamentos. E continuou:
"- Quando eu o senti mais exausto, avancei. Desci minha espada contra a dele por uma, duas, cinco vezes. Com a força de todo meu corpo jovem, segurando o cabo com as duas mãos. Ele escorregou, sua perna cedeu e eu me adiantei. O acertei mais uma vez e dessa, ele teve que apoiar uma das mãos ao chão com o joelho dobrado. Chutei sua mão apoiada e seu corpo caiu como um saco de batatas vestindo uma armadura pesada. Sua espada não se levantou, mas ele se movia debilmente, se arrastando em direção ao trono. Rastejando. Então todos ouvimos a voz por trás daquele elmo dizer:
"- Papai... papai me ajude... Me ajude papai!" 
E o Rei Zuga'Rth fechou os olhos e cerrou os punhos...
"- Me ajude papai, ele vai me matar..." - choramingou o príncipe.
Meu tio esboçou um sorriso e acenou levemente com a cabeça para que eu parasse. Mas eu já havia decidido parar antes disso. Simplesmente larguei a espada no chão e dei um passo para trás... me ajoelhando.
Eu ouvi os soldados se aproximando do principe enquanto eu estava ajoelhado, seu elmo foi retirado. E ele estava vermelho como um carvão em brasa, descabelado, com seus traços finos e os olhos verdes enxarcados de lágrimas de medo. Sua boca era uma lua invertida e ele chorava como uma criança que teve o brinquedo tomado pela cuidadora. Eu o encarei, não como um escudeiro encara um príncipe. Mas como um guerreiro encara outro em um campo de batalha. Além de todas patentes, títulos, coroas, castelos e moedas de ouro. Naquele instante, o príncipe Frammir, era só um cavaleiro. Derrotado... Nada mais.
Eu fui batizado caveleiro pelo próprio Rei Zuga'Rth. Sem nem sair daquele salão.
Ele me mandou permanecer ajoelhado. Se levantou, tirou o manto e coroa real como manda o costume. Sacou Bellivar a espada mais justa da história. A repousou sobre minha testa com a lâmina tocando minha pele que sangrou pelo próprio peso do fio... E enquanto o sangue descia minha face ele disse:
"- Seja justo. Diga a verdade. Defenda seu Rei e seu Reino. Defenda a coroa e seus aliados. Mantenha seu coração e seus olhos abertos. E nunca fuja do seu juramento. Você jura pela sua vida?".
E eu jurei!
E me ergui como um cavaleiro da coroa.
E desde o momento em que eu me levantei, assim o sou. Cavaleiro da coroa, General das tropas nomeado pelo Rei Fammir, jurado e governado pelo desejo do meu Rei e do seu Reino.
Silêncio profundo. O Rei encarava Alefh com uma expressão sombria nos olhos.

Alefh continuou olhando os olhos do Rei.
"- Quando minha palavra não bastar, meu Rei, basta dizer que eu mesmo arrancarei minha língua diante dos teus olhos...".

O Rei virou a cabeça ao homem de negro dizendo:
"- Barabring sabe que o General diz a verdade. E ele escolheu mal as palavras, não é mesmo feiticeito?"
O homem de negro encarava as próprias mãos magras sobre a mesa e respondeu prontamente:
"- Si... sim Majestade. Peço perdão..."

Aquele dia passou.
E o silêncio do próximo sol nascente, trouxe consigo o fino, longo e insistante som de uma trombeta de aviso. Tocada pelos vigias no muro da cidadela real.
No quarto do Rei, a porta foi aberta sem pedidos de licença. E quano ele dispertou disse irritado:
"- Alefh? MAS O QUE SIGNIFICA ISSO?"
E ouviu o General dizendo:
"- Rápido majestade, eles chegaram..."

Enquanto do lado de fora da cidadela, uma orda imensa do que já foram homens e outras coisas rastejava e se empurrava gemendo, mortos apodrecendo, mas ainda assim vivos. Querendo mais morte!














quarta-feira, 26 de abril de 2023

O Rei e o Reino.

 Há um homem cansado, sentado na salão. Seu cansaço repousa sobre o trono real. E logo acima da sua cabeça velha, de fios brancos, lutas e dias tantos, existe uma coroa. Antes dourada, hoje manchada, mas ainda cravejada de pedras, rubis e diamantes. Suas mãos enrrugadas, magras e fracas, já foram grandes mãos de um guerreiro. Admirado, temido, faminto por vitórias e nunca vencido. O salão estaria vazio se não fosse por ele. Sua respiração produz núvens brancas de vapor invernal. Sobre seus ombros, um manto veradeiramente real. Vermelho cor sangue. Com taxas de metal e brancas bordas esvoaçantes, sem igual. Lá está ele, sentado ao trono sobre o último degrau. Como quem dissesse ao próprio reino:
"- Vejam todos, estou no ponto mais alto do Reino. Acima de qualquer montanha ou de qualquer desejo. Aqui, vos digo amigos e inimigos: temei-me. Pois ao som da minha voz, frias lâminas afiadas deslizarão pelos seus pescoços. E como o sol rompendo o turvo véu da madrugada, o sangue brotaria pelo horizonte vermelho, sem desculpas ou demoras! Brutal, como a força da natureza. E rápido como a cauda da raposa que desaparece no bosque distante dos olhos do caçador. Temei-me. Pois sou implacável!".
Mas nada diz ele. Nenhuma palavra é parida por aquela boca soterrada na funda barba de décadas e mais décadas de vida. Não caro leitor. Aquele homem cansado, imponentemente sentado, no ponto mais alto do castelo coroado, poderoso como um Deus alado, está calado. E seus olhos avermelhados, estão petrificados sobre o nada que sua mente busca desvendar. O vazio desesperador e pálido, de um mundo complicado. Intrigado. Como quem faz um cálculo estelar colossal sem mover um músculo. Ensaiando o movimento de peça por peça do tabuleiro de xadrez com a mente. Imaginando os reflexos, os movimentos perplexos, a missão, o objetivo e o nexo! Tudo ao mesmo tempo. De cenho franzido. Respirando ofegante pela boca seca. Até que na porta se ouve uma batida. Um único som.
TUUMMMM - ele faz.
E ecoa o carvalho pelo salão, como um tambor de guerra. 
Não reage nosso Rei. Nem a púpila se move. Permanece. E então vagarosamente apoia as costas no trono. E deixa a cabeça cair levemente para trás. Não move os braços, ou as pernas. Ele pende como um sino da igreja. E finalmente, sem desespero ou aviso pronuncia as palavras:
"- Entre." - e quem ouve sabe que é uma ordem.
A porta se abre de imediato.
O som das dobradiças rangendo rasgam o ar.
E o silêncio do salão é substituido por um momento.
Estranho. 
Pelo justo vão da porta, passa um pequeno corpo. Magro. E desliza pelo salão como uma cobra rasteja à relva. Até se ajoelhar diante do trono, com o capuz cor verde musgo escuro. E ficar em silêncio.
O Rei espera.
A criatura mal se move.
E então se ouve:
"- Acabou?"
"- Sim majestade! Acabou! A coroa tem a vitória. O Senhor, venceu..."
"- Não Kallabeth, com a sua idade você já deveria saber...

...não existem vencedores na guerra. Existem sobreviventes. As vezes, nem isso meu filho..."

Fim.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Aquele homem velho e a sua bengala.

A rua não para
Deslizam carros
Motos
Bicicletas apressadas.
E ali, naquela esquina
Ficam o homem e sua bengala.
Suas pernas cansadas
A vida apoiada
Na madeira morta
Da árvore cortada.
O sol escaldante
Sem vento
Ou olhar infante
Daquilo que não
vai adiante
Porque caminhar
lhe dói.
O caminhar 
lhe foi...
A bengala
lhe deu oi.
E aquilo que era
o tudo, mudou
Não no dia 
que passou.

Bem antes!

Mas sempre assim,
lento como o
ponteiro do
relógio corre.
Astuto tempo
Vil, sem perceber
Que da bengala do 
velho escorre, 
vento e vida
até ele morrer...

E por fim,
solitária a bengala
apoiada atrás da 
porta fechada.
No quarto 
do antigo dono,
chora ela,
desesperada,
pois sem mãos velhas,
não há bengala
pra ser...