segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Te vejo depois.

Tempo, nobre amigo, para onde vais com tanta pressa? Para onde escorre essa tua areia tão fina, que é? Como eu recupero aqueles dias? Tu que nos foge sem alarde, e quando vemos, só deixasses saudades... Eu te imagino, fugindo para algum recanto do universo. Como uma poesia desconhecida guardada a sete chaves. Em uma gaveta antiga. Depositada entre cartas de amor que nunca forem entregues. Entre músicas que ninguém mais escuta. E livros que não tem o final feliz. E ali tu ficas. Como poeira fina. Quase invisível. Que só aparece após décadas de acúmulo.
E é aí, que vemos as horas do relógio. E pensamos:

"- Quanto tempo faz...?".
Faz tempo! E sobra menos dele a cada tempo que se faz. O tempo é ardiloso. Esperto como ele só. Tempo se perde, quase nunca se ganha. Tempo se tinha, quase sempre não se tem mais... Tempo flutua, como vento, invisível sobre todos nós. Mas não refresca, não te brisa. Não, o tempo te engana. Tens tempo, resolve amanhã. Outra hora tu ligas. Se não der hoje, tudo bem. Ele te diz. E nós acreditamos como crianças que acreditam no Papai Noel. Ignorantes de que a vida e o tempo não são um só. Mas que caminham passos próximos. Como duas pernas do mesmo corpo, se movendo por entre as estrelas conhecidas da nossa galáxia. Na busca do desconhecido que é essa vida de segunda a sexta feira. De conta a serem pagas. De mãos que precisam ser apertadas. De curtidas no facebook e relacionamentos solitários.
Tu vem sozinho para esse mundo, e é sozinho que vais embora. Alguém me diz. O tempo que tens é o tempo que te sobra. E não ter mais tempo, é como chegar ao final de um texto. Um livro não te pede licença. Não te avisa que vai acabar.
Ele termina. E te diz antes de sair: 

"- Valeu, te vejo depois...".
E tu pensa:

"- Depois é bom, vai dar tempo..."
 

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Eu prefiro abstrair.

É por bem que eu não curto discutir. Tudo bem que ninguém diz que curte discutir. Mas eu penso que tudo se enrola muito quando as ondas da discussão se chocam no meu mar. E tu fica confuso, vendo aquele monte de espuma em cima da água. Indo para lá e vindo para cá. Sem parar de borbulhar. E girar. E subir e descer.
A confusão é parte da vida, eu sei. E nem vou negar, dizendo que prefiro a permanência total do silêncio. Não prefiro. A vida sem caos é tediosa. Ao mesmo tempo que seu destempero a compromete. Como um doce muito doce, ou nada doce. Ou um salgado muito salgado, ou nada salgado. É preciso saber tempera-la. Espera-la marinar. E saber o tempo certo de entrada e saída do forno. A vida queima. E vida queimada é normalmente amarga. Produz caretas de asco em quem a consome.
Acho que como qualquer um de nós, eu também já comi porções de vida queimada. Vida queimada não se vomita pela boca. Vida queimada se vomita pelas lágrimas dos olhos. Vida queimada escorre salgada, mesmo quando doce. Evapora silenciosa, invisível ao mundo enxergador. E some no universo depois disso. Como poeira cósmica.
E é ali, quando isso tudo passa. Naquele momento em que o gosto já diminuiu bastante, mas ainda não se acabou. Que eu prefiro fingir que comi doces morangos da estação. Bem quando a boca geme silenciosa porque as lágrimas salgadas a enchem de náusea. Que aprendi a seguir em frente.
Muita gente volta para o prato e lambe as migalhas da vida queimada. Como um prazer sórdido de um doente que não consegue mais decidir o que pode ou não fazer.
Eu deixo o prato para trás. E admito que já fiz isso no meio da refeição. Nem sempre com razão. Nem sempre bem. Nem sempre feliz. E também não fiz por mal não. Fiz porque a espuma do choque entre as ondas do nosso mar me confunde mais do que me resolve.
E talvez eu tenha me acostumado a transição. A mudança. A troca das estações. E menos ao calor do sol. Ao vento do inverno. Ao por do sol do outono.
Ou talvez a minha alma flutue em ciclos maiores do que essa vida. Se abstraindo da vida sempre que o amargo se torna regra. Sempre que o caminho, me quebra a perna.

domingo, 3 de dezembro de 2017

A vida é uma curtida do facebook.

Me canta Cícero ao pé do ouvido: a vida segue sem alarde. 
Naquela ligação que tu ias fazer, mas ficou para mais tarde.
Com o teu amigo que ias tomar uma, mas não aconteceu.

Tipo aquele texto que eu escrevi em um guardanapo, e que se perdeu.
Ou aquele desenho que a gente rabiscou, e ninguém mais viu.
A vida se esgueira por entre os "tic-tacs" dos relógios.
A cada pulsação do coração, ela se encurta.

Na rotina dos dias ela se acostuma.
Como uma dança hipnotizante, ela te prende parado.
A vida te faz capacho.
E tu de joelho dobrado, se sente elogiado.
Até o dia em que tuas mãos se enrugam.
Teus olhos e ouvidos, falham.

E tu pergunta:
"- Para onde foram todos esses anos?"
E a vida responde com um sorriso de chumbo.
Um sorriso de vala, com pregos e caixão,

no fundo.
E de lá, soterrado nos dias que tu viveu, tu pensas:

"- O que foi que aconteceu?"
Nada demais.
Tu só viveu.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Olá, como vai você?

Dia vai, dia vem e eu não ligo. A vida segue sem alarde. Vejo os dedos apontando direções. Mas sigo caminhando meu próprio destino. Que até pode ter sido escrito, em algum livro, por algum tipo de Deus antigo. A minha graça está na descoberta. No esforço do próximo passo. Na gentileza do sorriso desconhecido. Na palavra de afago. E se o dia terminar com um por do sol roxo, verde e amarelo, eu digo: muito obrigado.
Não duvido que o mundo faça parte do plano. Como uma peça com seu cenário. No fundo, um pano. Em que atores entram e saem do palco de acordo com as suas deixas. Respeitando as falas do roteiro. A mocinha que chora de raiva do amor que não deu certo. O vilão que esfrega as próprias mãos dando uma risada que representa o caos trazido por ele mesmo a trama. E o herói, com suas falas prontas e seu jeito de instrumento afinado. Perfeitamente sincronizado com a orquestra. Até o momento do seu majestoso solo. Quando seu tom sobe solitário. E ele dança pela trama trançada pelos outros atores. Causando admiração na platéia. Terminando com um beijo nos lábios doces da mocinha injustiçada. Ao fechar das cortinas, as luzes do salão se acendem ao som das palmas. E na reabertura, todos estão lá alinhados lado a lado. Perfilados como pregos presos a uma tábua. Se curvando em agradecimento. Alguém entrega flores aos atores. Que sorriem enquanto a cortina se fecha novamente. Agora sim, para o final da peça.
Na saída do teatro eu encontro um amigo que não vejo a muito tempo:

"- Fulano! Tudo bem?" - pergunto.
"- Opa!" - ele responde.

"- Acho que eu to morto, isso aqui é um tipo de purgatório.... E tu?". - digo.
"- Não sei ao certo, não me lembro nem do meu nome. Nem do teu."
"- É, eu também não. Por isso te chamei de Fulano...".
E eu acordo deitado na minha cama. De um segunda feira qualquer do ano. Zonzo e com sono. Eu me arrasto até o dia que me espera. E depois de lavar tudo que preciso e tapar tudo que é necessário, eu ganho um ticket de passagem para a sociedade humana. Entro no elevador do meu prédio e vejo um cara qualquer. Digo:

"- Bom dia!"
"- Bom dia Leandro!" - ele responde.
Estranho, não me lembro de a gente se conhecer. Penso.
"- Meio que a gente nunca foi apresentado... Mas eu sou Deus e leio todas as mentes a todos os instantes!".
"- Puta que me pariu!" - eu digo.

"- Relaxa. Tá tranquilo." - ele diz.
Fico sem reação. Simplesmente travado.
Ele me olha, sorri vagarosamente. Um sorriso feio. Torto. Meio sem jeito. Perturbado. E se vira quando o elevador para... A porta se abre e um cachorro entra segurando um homem na coleira. O cachorro usando terno, gravata e um chapéu. Sapatos de couro e um óculos de grau. O humano completamente pelado, de quatro no chão...
Todos se olham como se nada de anormal estivesse acontecendo. E sorriem uns para os outros. Menos eu, por motivos óbvios.

O homem encoleirado olha para cima e diz me olhando:
"- Olá, como vai você?".


quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Como peixe fora da água.

Pessoas circulam por dentro de prédios nas cidades como micro organelas se organizam dentro de células. Falando umas com as outras ou prontamente se ignorando. Sem nem perceber como fazem parte de toda essa organização complexa. É engraçado se você parar para pensar: em como a perspectiva muda a história. O contexto da formiga não é o mesmo que do pássaro. Nem um cachorro percebe o mundo como um peixe. E nós que ocupamos o cargo de seres "mais evoluídos" do planeta, curvando todos a nossa soberana vontade, vivemos como se até a morte fosse uma empregada do nosso prazer. Flutuamos sobre esse grão de areia perdido no vácuo do universo. Enquanto a sua ronda ao pai sol arde em milhares de milênios. E acredite, muitos de nós ainda perdem o dia porque a cor do carro que queriam comprar não está mais disponível. Ou porque o seu amiguinho Organela da Silva lhe olhou torto. Lhe disse algo no tom errado. Ou qualquer outro desses motivos que ninguém se importa de fato. Mas que muitos pensam se importar simplesmente por não saberem sentir além do superfície dos seus próprios sentimentos. Eu desconfio que a maior profundidade disponível nesse planeta é o mergulho no próprio peito. É o salto contra o desconhecido que habita dentro de si mesmo. A queda é desesperadora e parece por muitas vezes ser eterna. A ponto de se perder a noção de estar caindo. Ou de se encontrar mais do que se queria conhecer.
Algumas vezes, eu vejo pessoas ao meu redor se segurando as realidades mais ocas que podem existir, para evitar serem dragados para o ralo do seu interior. Segurar atrasa o processo, mas não o impede. Eu, pessoalmente desconfio que um dos motivos pelo qual ocupamos esses corpos baseados em carbono, seja realizar essa jornada. A de ir até os Himalaias? Não, a de ir até nosso próprio coração. A jornada mais assustadora que podemos fazer. A de confrontar os medos trançados nas decepções. De se ver despido de qualquer vaidade. Ou máscara produzida para esse mundo.
Nossos luzes um dia se apagarão. Seremos pouco e ainda menos do que representamos hoje. Deixaremos para trás nossos filhos e os filhos deles. Nossos livros e as árvores que plantamos. Desperdiçaremos uma grande parte de nosso tempo com nosso próprio ego. Seremos ignorantes, ignorando toda sabedoria acumulada através das vidas dos que estiveram aqui antes de nós. E muitos de nós, morrerão sem ter a coragem necessária para se encarar. Para se desafiar no silencioso embate pelo auto conhecimento.
Sejamos mais inquietos sobre a nossa própria realidade. Sejamos mais peixes fora da água. Tenhamos mais coragem, não só no dia 31 de dezembro. Quando todas as promessas acontecem. Mas depois.
Todos humanos nascem. Mas nem todos humanos morrem.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Sem título.

Ouço as palavras,
leio as linhas.
Não encontro um fim.
E nem encontraria.
Afinal, isso é poesia.
Poesia continua 

mesmo sem letras.
Confundindo quem escuta.
Adoçando a vida,

mesmo se curta.
Dando cor ao por do sol.
Lembrança ao odor.
Fazendo do desejo, amor.
Poesia não explica.
Ela complica tanto,

que não te limita.
E talvez,
numa hora dessas,
tu percebas:
Poesia é palavra de vida.
Nem sempre doce.
Mas sempre linda.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Oi pai.

Amanhece um dia daqueles, ainda noite. Quinta feira, quente, 10 de agosto de 2017. E eu vou trabalhar sem saber se me lembrei ou se não esqueci. Se o sonho que sonhei era meu ou era teu. Sentado no carro eu freio quando as luzes ficam vermelhas. E acelero quando são de outra cor. A música da rádio e os anúncios soam iguais. As ruas são todas uma só. E no piloto automático eu me vejo segurando uma xícara de café com leite sem açúcar que transborda vagarosamente, pingando o chão.
Ouço distante, baixinho:

"- Moço...".
Volto rápido, como água dragada por um ralo. Recordo do mundo real. Escorro e acordo.
"- Oi... desculp..." - respondo envergonhado.
Corte seco da narrativa.
Estou sentado no computador e meus dedos dançam pelo teclado. Me percebo diferente quando escrevo. Trançando lembranças, sentimentos e linguagem não falada. A escrita é mesmo uma safada. Ela arranca do peito as palavras que pesam como chumbo. E eu deixo. Sinto novamente sensações esquecidas. Me lembro de cheiros, de gostos, de bons e maus dias. Caminho pelo passado, como um espectador de um filme assiste a uma história. Me permito lembrar de conselhos esquecidos. E de erros cometidos. Me vejo de novo, mas longe de mim.

Sem perceber, estou segurando o controle de um video game da década de 90. Sentado na frente de uma televisão, na casa dos meus pais. Encarando sem piscar a tela do antigo televisor de tubo, como só quem joga videogame entende. Com a língua de fora, me movimento, torcendo os dedos sobre todos os botões do controle ao mesmo tempo. Em uma série de cliques frenéticos, magro como fui na infância. Vestindo uma camiseta que eu adorava com o super-homem estampado.
Eu me vejo por algum tempo. A luz que entra pela grande janela na casa dos meus pais, através dos vãos da cortina. Deixando feixes de luz que cruzam a sala. A antiga mobília, os velhos tapetes que já se foram. Os sofás, os quadros, a mesa de jantar e o velho lustre pendurado bem no meio do teto.
Eu não sei quanto tempo eu fiquei ali jogando ou me observando jogar. Sei que me vendo jogar eu ouço inesperadamente o som de passos. Olho para a porta que dá na copa e vejo uma sombra se aproximando. Vagarosamente ela vem. Me recordo agora do som das pantufas que meu pai gostava de usar em seu tempo livre em casa. E revivo o momento em que ele aparece na porta entre a copa e a sala, com uma camisa social verde musgo dentro da sua calça social escura e com um cinto negro de couro segurando a bela barriga que ele ostentou no final da vida. Ele fala, mas o eu que lembra, não recorda do que ele diz. O eu da época se vira como se estivesse muito concentrado e olha para ele respondendo:

"- Oi pai..." - minha voz é horrível, eu penso.
Ele sorri de volta e vejo seus lábios se moverem novamente. Uma frase mais longa e complexa agora. O eu da época se levanta e vai em direção a ele, meu pai se vira e caminha em direção ao próprio quarto. O eu que observa os acompanha.
O quarto dos meus pais tem um varanda, e meu pai sempre sentava em um sofá bem próximo a ela para ler. É isso que vejo acontecer, meu velho se senta vagarosamente enquanto o eu da época olha para o céu na varanda. Meu pai abre um livro e fala algo, o pequeno eu se aproxima se aconchegando no braço do sofá. Há um livro aberto nas mãos do meu velho. Ele lê um trecho e o pequeno eu o observa com atenção. Ele aponta para uma figura com suas mãos enrrugadas.
"- Que massa..." - murmura baixinho o pequeno eu. 

Meu velho sorri enquanto lê. Um sorriso bonito que não me lembrava de ter guardado na memória.
Eu acho que invejo um pouco o pequeno eu dessa época.
A minha memória se desfaz como um sonho que termina. Tão real quanto se pode ser. Tão viva quanto se pode estar.
Eu abro meus textos guardados e quando o computador me pergunta:
"- Como é o nome do arquivo que você quer salvar?"
 

Eu digito: oi pai.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Igualdade.

Essas listas de músicas no youtube são muito legais. Eu conheço novas bandas todo dia ouvindo listas como essa aqui. Enquanto eu digito, desenho e penso em um circuíto que não tenho dúvidas, vai me levar a fazer uma máquina que viajará no tempo, escuto meu vizinho gritar:
"- MEU DEUS, TU É GAY?".
E me ocorre, como seria a resposta do cosmos para nossas questões sempre que as fazemos?
Algo do tipo:

"- Meu Deus, tu é gay?"
E antes que qualquer reação fosse possível, um flash de luz branca toma todo ambiente. Deixando para trás um homem com idade próxima a 30 anos, pele morena, olhos negros, cabelos e barba escuros e usando uma túnica puída de pé na frente de João.
João fica para com os olhos completamente arregalados. Sem reação. A beira de um ataque nervoso.
O homem lhe diz:

"- Sim João, ele é gay."
João falava com seu filho, Júnior. Que acabara de lhe dizer: 

"- Pai, eu preciso te contar uma coisa, eu quero me casar com o Adilson. Eu amo ele..."
E foi interrompido pelo grito do pai lhe perguntando se ele era gay.
João pisca uma. Duas. Três vezes. E finalmente diz:

"- O que eu fiz pra merecer isso Jesus?"
O homem da túnica puída responde:
"- Mas João, como isso te afeta? Do que tens medo?"
"- Da vergonha! Como é possível ter um filho viado???"
"- Da mesma forma que poderias ter um filho com qualquer outra característica..." - responde o homem da túnica puída.
"- Tu dizes isso porque não é teu filho!" - diz João.
"- Na verdade, vocês todos meio que são meus filhos....".
"- Ah cala a boca, que merda esse papo de evangélico... Irmãos o caralho...". - responde João gesticulando com as mãos...
"- Eu não sabia que tu ainda tinhas tanto a aprender João..." 
"- Olha só, cura ele por favor. Pelo amor de Deus, cura ele pra mim... Faz ele se casar com uma moça bonita, a Janaína filha do vizinho aqui do lado, já tá ótimo!".
"- João..."

"- Não, sem João, só cura ele por favor..."
"- João..."
"- Eu não posso viver com a vergonha de ter um filho viado. É muita humilhação..."
"- João..."
"- O que caralho!?!" - grita João.
"- Se eu fosse curar alguém seria você. Mas isso é contra as regras... Tu precisas aprender isso sozinho."

João fica em silêncio.
"- A vergonha que tu sentes, meu filho - disse o homem da túnica puída colocando uma das mãos sobra o ombro de João - vai passar. O amor que eu sei que tens pelo teu filho, acredita em mim, não vai."
João chorava.
Uma nova luz invade a sala e a figura do homem na túnica desvanece como magia.

João continuou chorando por algumas horas. Até conseguir se recompor, lavar o rosto na pia do banheiro. Se olhar no espelho e dizer:
"- Deus não existe."

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Com e sem palavras.

A cada palavra,
menos significado.

As sílabas que dançam

vão em vão
lado e alado.

Perde-se fala,

falada,
escrita,
vulgar. Varada.

A mímica 
é vazia,
no escuro.
No nada. Há tudo.

O cego fala ao surdo.
O surdo vê um mudo.
O mudo ouve o mundo.

E o mundo é só uma palavra.
Que muda

dependendo
de quem a fala.

E como toda palavra.
Fica com menos 
significado.
Descubro as palavras.
Me cubro de mundo.
Me vejo cego.
Não sou surdo.
Ou mudo.

Se não mudo.
Fico tudo.

Cheio de nada.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Seguinte, sigamos seguindo.

A água que sustenta o barco, é a água que o afunda. O barco furado, precisa ter água tirada do seu interior, e posta no seu exterior. Sem água o barco não se move. Com água no lugar errado, ele afunda.
Eu caminho sobre o chão que caio. O que me derruba, muda. Pode ser o vento, a pedra, o medo ou o tiro. O que me derruba não me importa tanto. Me ergo e sigo. Vou indo. Pé por pé. Passo por passo. O caminho não fica menor porque a gente cai. O caminho é o mesmo. De pé ou deitado. Sorrindo ou chorando.
A gente descasca avançando no caminho. E nos descascando, refazemos nós mesmos. Diferentes do que éramos. Sendo o que somos. Vendo o mundo com novos olhos. Ouvindo com novos ouvidos. E seguindo.
Parados, caídos, nos recusando a se mover. Tudo permanece. Tudo petrifica. Todo tempo se congela, e a chuva e o sol se soldam. Com dias após dias. Da mais perfeita igualdade. De total cristalização.
Alguns de nós, pelo motivo que for, preferem virar pedra do que descascar novas peles. Do que sangrar velhas dores. Do que crescer novas asas. Sem saber que o ato de descascar é impossível de ser impedido. Que mesmo as pedras, depois de milênios e milênios paradas no sopé da montanha, se partem. Se quebram em pequenos cascalhos. E escorrem, rolando pelas encostas até rios. E dos rios até os oceanos, se desgastando a cada milimetro que percorre. Até ficar pequena demais para ser vista. Até o que chamamos de desaparecer. Mas ao contrário do que pensamos, o vazio que preenchia toda grande rocha, está ali na quase invisível partícula da que sobrou.
E talvez, esse vazio de onde viemos e para onde iremos, seja um dos sentidos da vida. Talvez o sentido da vida, seja uma referência ao sentido em que a vida segue, do bebê ao avô. Da montanha, a pedra invisível no fundo do rio. O sentido do movimento que a vida tem. Como uma maré. Por mais que você fique parado, o sentido do dia é virar noite e virar dia novamente.
O sentido é o caminho.
Por mais que você escolha em ficar caído no chão. Chorando e reclamando das pedras e dos espinhos. O caminho é o sentido, é onde seus pés batem para segui-lo. O caminho é a água do barco. É o barco. É o furo. O caminho é o pé, o dia e a noite.
Alguém vai me perguntar: "Mas o objetivo é descascar? Devemos ir rápido pelo caminho então?".
Eu acho que não. A pedra vai demorar mais para descascar do que o bebê. Mas o que importa é que saímos do mesmo ponto e ao mesmo ponto chegaremos. Sendo pedra, pássaro, água ou nós mesmos.
Equilibrar a velocidade nos faz mais felizes do que gigantescas pedras tentando chegar aos oceanos. Cada qual com seu caminho.
Todos sendo o mesmo, um. Nunca totalmente sozinhos. Mas sempre únicos e ligados. Como folhas e galhos.
Como pés e chãos.
Como a água do rio que termina no mar. Para evaporar e se tornar chuva. Dando vida, morte e água novamente.
Até que o tudo absoluto se torne um tipo de nada confortável, que todos nós chamaremos de lar.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

É por ali ó!

Aqui na terra da madeira em brasa, que virou Brasil. Mas podia ter sido chamada de Pau de fogo. As coisas não vão muito bem... E eu nem me refiro as nossas noções distorcidas de serviços (deserviços, no nosso caso) públicos. Não, não cara pombinha digital que "avoa" por esse marzão de informação que é a rede. Neca de pitibiríba!
Eu falo é da doença silenciosa. Invisível aos olhos destreinados da massa. Um mal ardiloso, pegajoso, quase sombrio. Indetectável por exames físicos. Uma doença que se prolifera como um fungo sobre madeira molhada na sombra.
Na terra do "fevereiro tem carnaval" a gente vive na esperança de um dia que nunca amanheceu. Mas que em toda propaganda política já produzida, é amanhã. Pois bem pombinha digital, amanhã vai melhorar. Amanhã, vou construir. Amanhã, vou cobrar. Amanhã, sem sombra de dúvida, vou resolver. Vou conseguir. Vou fazer. Vou te encaminhar.
Amanhã é um dia tão distante. Mas tão distante. Que eu desconfio, nunca virá. E enquanto isso, as grávidas que tenham seus bebes no chão na frente das maternidades. Debaixo dos viadutos. Nos becos do porto. Da grota do esgoto. No lixo. E que já aproveitem que estão sangrando o pós parto e morram. Uma morte poética, alguém vai me dizer. Uma morte bonita! E se tu reclamares muito, a polícia vai te cobrar a propina pra não te assaltar. E o assaltante vai te furar com uma lâmina cega e enferrujada porque tu estavas sem dinheiro. Dinheiro esse que tu pretendias usar pra pegar uma lotação pra ir pra casa. Depois de um dia de 12h de trabalho. Recebendo apalpões na bunda, vindas de homens e mulheres que tu não entende se querem tua carteira ou teu sexo. E tu nem te importas mais. Teu corpo já nem é mais teu. Teu corpo é um caco quebrado do que foi, quando era inteiro.
E a unica coisa que te sobra, é uma partícula da mente gritando que o mundo ficou louco. E que tudo está muito errado. Mas tu, pombinha digital, está cansado demais pra revidar aos argumentos. Tu sabes que todo político é ladrão. E que ninguém presta. Tu assume as asneiras gritadas tantas vezes pela massa, repetidas tantas vezes nos microfones dos palanques que viraram verdades.
Tu diz que é assim mesmo. Sem nunca nem ter sabido como era de outro jeito.
E tu segue o caminho caminhado antes de ti. Pegada por pegada. Do morro pra cozinha, da cozinha pro coletivo, do coletivo pra tua cama, da tua cama pro caixão. E aí tu vaga a cama pra outro ser que nem sabe que é humano deitar, levantar e morrer. E assim a gente vive, cada um na sua prisão domiciliar. Assistindo o pau Brasil arder nas florestas. Até virar um carvão tão preto quanto a pele do negro acorrentado a todas as nossas obrigações impossíveis de concluir.
E o país inteiro sangra. E sangue é vermelho. Não é azul. Não é preto. É da cor do lábio e da carne do povo. Da foice e do martelo cruzados. Como uma esperança de que sangrando a gente consiga resolver o que não foi resolvido. Dividir a dor, o amor e o calor. Mas os porcos que se sentaram a mesa, tem um amplo gosto por uísque. E uísque custa dinheiro. Dólar. Bufunfa. Euro. Cascalho. E até real! Ninguém cobra abraços por uísque. Não cara pombinha.

Ninguém dá o que se vende.
Enquanto o nosso Lula "não sabe de nada", "não viu nada", "não participou de nada", "deve ter sido a Marisa", "eu sou honesto", "estão me perseguindo", "tadinho de mim...", enquanto ele tudo isso.
A gente se fode como sempre se fodeu na mão da direita, do centro e agora da esquerda. É. Tá confirmado, o espectro político brasileiro foi todo utilizado. Da extrema direita a extrema esquerda, nada funciona. Vamos terceirizar a nossa política para a Finlândia. Proponho aqui uma recolonização da nação brasileira. Vamos voltar a ser colônia de alguém que consiga concertar esta bagunça. Assim como um viciado em maconha, álcool ou compras a gente não consegue sair sozinho dessa fossa. Vamos visitar o AA da política. O PA (políticos anônimos). Vamos sentar em roda e dizer:

"- Eu sou político e eu roubei. Roubei, menti, matei e violentei. Sem pena...".
Vamos ter a conversa velada que nunca aconteceu. A conversa que se posterga para sempre, para amanhã. Para aquele dia que nunca chega. Para aquele momento em que nunca vivemos.
Aquele um dia. Que nasceria como qualquer outro. Com um sol silencioso. Nuvens e vento. Mas que antes do seu fim, todos políticos de todas as esferas entenderiam que a população dessa nação não aguenta mais. Que não podemos e nem queremos esperar mais 1 segundo que seja. Que ou acontece, ou tudo seria posto a baixo. Tudo seria queimado. Que sangue seria derramado sim, como é todo dia. Mas não seria só sangue pobre. Sangue miserável. Seria sangue rico. Sangue dos filhos deles. Não só dos pretos pobres e favelados.
E aí eles tremeriam de medo.
E entenderiam que mesmo que nós tenhamos sido violentados em diversos níveis no decorrer dessa história, um novo dia nasceu.
O amanhã seria hoje.

terça-feira, 2 de maio de 2017

Lembrem-se de mim - ele disse.

Era outono. Um final de tarde daqueles de cinema. Céu amarelo, vermelho, roxo e negro. Ventava um vento ameno. Que fazia a grama dançar na calma de cada lufada. Os galhos das árvores uivavam com o atrito do ar. Era um daqueles momentos silenciosos, de pesar. De não se esquecer tão cedo. Mesmo onde estávamos, no campo aberto, do lado de fora da casa parecia ser um lugar fechado. Um comodo do mundo. Um cantinho bendito entre a terra e o firmamento. Uma ponte para o além. Para o depois do que vem.
Quase era possível ver a cortina da eternidade suavemente flamulando. Se entreabrindo e entrefechando.
"- Ela está aqui..." - ele balbuciou com os olhos perdidos no céu e sorriu.
Mais de uma pessoa perguntou "quem?", mais de uma pessoa queria saber "quem está aqui?". Alguns de nós nada disseram. Eu acho que ele falava do fim. No feminino. Como sendo a morte, talvez... Ela deve ser a causadora da partida. 

A viagem. 
A jornada.
Não dá pra explicar tudo com palavra, caro(a) leitor(a), mas gosto de pensar que o silêncio respondeu a todas as perguntas.

Eu não me considero um ser humano religioso. Nunca me fez muito sentido a ideia de "pai celestial". De um criador provedor da existência. Um causador de bençãos ou maldições. De um juiz capaz de devolver erros ou acertos a cada ser de acordo com a sua conduta.
Mas isso nunca me fez descrer na espiritualidade. Eu gosto de pensar, por mais idiota que seja declarar isso, de que esse plano extraterreno, extramundado é distante da nossa perspectiva de acerto e erro. Releva essa ideia de bom e ruim. De positivo e negativo.
Vai ver, foi por isso que ele sorriu ao dizer "ela está aqui...". Ele sorriu como que vendo além dos átomos e moléculas. Ele viu o que para nós é invisível. É irrelevante. E que talvez para o resto do universo seja a essência.
E por um segundo hipotético, não mais do que isso, por um instante, um respiro. Um momento, eu vi que ele não se importava mais. Que de alguma forma ele entendeu que aquele corpo velho e cansado. Aquele veículo doente e usado, tinha encontrado seu ponto final.
Segurei a sua mão enrugada. Suas unhas bem feitas e delicadas. Seus pelos finos e brancos, bem espaçados. Sua pele fina e frágil, de tantos sóis e tantas chuvas. De tantos cortes e tantas lutas. De tantas roupas e uniformes. De muitos amores. De dias de vida e desse dia de morte.

Movi meus olhos e vi seus olhos me olhando. Não éramos só nós que estávamos tristes, o mundo estava chorando.
"- Sem choro..." - ele disse rápido. Quase grosso. Como quem diz com pressa. Sem tempo para perder o trem que não o espera. Sem tempo para perder a onda que tudo leva.
"- Lembrem-se... de mim..." - disse sorrindo um sorriso bonito. De dentes amarelados de cigarros e vinhos. Com lábios finos. E uma barba rala, sem compromisso, sem expectativa. Ainda sorrindo, piscou seus olhos azul turquesa. Com suas sombrancelhas hirsutas.
E suspirou.
Um suspiro final.
De quem solta o ar sem de novo puxar.

A vida sempre termina no suspiro, me disse uma professora de yoga. Me lembro disso, quando expiro.
Ele suspirou para nunca mais expirar.
Devolveu o ar ao mundo sorrindo. Sem de novo puxar.

Vá em paz, tu que vais partir. Segue teu caminho, não precisas mais estar aqui. Fica tranquilo, escuta minhas palavras: essa dor que sentimos um dia passa. Teu rastro será só amor. A lembrança que tu nos deixa é de vida. E a vida precisa sempre continuar.
Tu cumpriu teu papel. Sem exceder nada. E nada faltar.
A saudade que sentimos é a saudade que deixamos.

Amanhã nos encontraremos.
Palavras não resolvem o que não entendemos.
Te vejo mais tarde.
Te vejo do lado de lá.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

https://www.youtube.com/watch?v=rzsIToKA0o8

Interno inferno eterno.
Que arde quieto.
Queima hodierno.
Sem luz, sem chama.
E conselho fraterno.
Vejo a navalha vindo.
Em silêncio, me consterno.

O corte abre.
Dor que não espero.

Sangue que desprezo.
Em silêncio e desespero,
alterno.
Um mundo
de gravata e terno.
Onde o antigo é
moderno.
E meu barco flutua

o galerno.
Minhas memórias

encaderno.
Fecho a casa,
espero o inverno.
Interno inferno eterno.
Dentro de mim,
me espero.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Comunicar e ser.

Compre aqui! Promoção! Melhor preço! Único com esse serviço! Essa é a sua chance! Curta! Compartilhe! Interaja! Se aproxime! Veja isso! Não perca! Só hoje! Só amanhã! Só agora!
É, a comunicação sabe ser bem impertinente. Em uma época onde todo mundo carrega o acesso a informação no bolso, e escolhe o que vê, quando vê, como vê. A comunicação precisa ser bem pensada. E bem repensada.
Eu vejo anúncios de revistas impressas e digitais, aí vejo placas de rua gigantescas e posts em mídias sociais que não tem mais fim. Eu sento na frente da TV, com o celular na mão e os anúncios saltam como milho virando pipoca. Meu celular apita, e eu recebo um SMS de uma operadora de telefonia móvel me oferecendo a chance de ganhar um carro mais 1 milhão de reais caso eu responda meu CPF por msg. Caminho na rua e me entregam panfletos que eu jogo no lixo sem ler.
Mas será possível?

Eu abro a minha timeline do facebook, e a quantidade de coelhos que aparecem na páscoa é excessivamente chata! Só que tudo bem,  as pessoas postam coelhos na páscoa. De repente, surge uma marca local que eu nem curto a página se "oferecendo" para o meu like com um post de páscoa. Algo do tipo: Feliz páscoa, impressoras com 30% off em abril.
Inferno!
Desço mais, recebo outra: Feliz páscoa, picanha em promoção no supermercado XUXUZINHO!
Serio?!

Continuo descendo, deve ter fundo esse poço: Feliz páscoa! Páscoa é época de renovação, troque seu carro na garagem BLABLABLA!
Desisto!
As pessoas consomem isso mesmo?
Ou simplesmente usam o google/lista telefonica/contatos para fazer uma procura quando precisam?

"Ah mas precisamos comunicar o que estamos fazendo!"
Precisamos!
Pera ai!
Precisamos?
Será que um dos pontos de realmente evoluirmos a comunicação dos nossos clientes não seja o de pensarmos em mais espaço para os nossos consumidores?
Será que não é chegada a hora de deixarmos que os consumidores decidam o que realmente querem?

Porque do jeito que tá a impressão é de que o mercado publicitário esteja cada vez falando mais alto. Gritando a todos pulmões produtos, serviços e marcas.
Até que fica todo mercado berrando tanto, que os consumidores precisam usar tampões de orelhas para conseguirem transitar por esses meios (vide AdBlock, por exemplo).
Quem grita mais alto vende mais?
Não Jão. Não vende. Faz tempo que não...
Esse conceito é tão torto quanto o "fale mal, mas fale de mim" ou "comunicar-se boca a boca".
Veja bem, não estamos falando em não fazer nada. Estamos falando em fazer de um jeito diferente. Em comunicar e ser uma alternativa que possibilite a mudança.

O ser humano é um animal coletivo. Já estudamos isso. Na nossa maioria (e isso não significa a totalidade), aplicamos o conceito de bando para muitas das nossas ações e relações.
Comemos em praças de alimentação, porque comer sozinho em um espaço isolado é considerado desagradável.

Caminhamos em espaços coletivos, porque transitar sozinho em uma via pode ser até perigoso.
Achamos graça das mesmas coisas, porque as vezes a piada nem precisa ser tão boa, mas eu acho graça do jeito que o outro ri.
Temos linhas de pensamento similares. Determinadas por nuances tão frágeis que na maior parte das vezes nem conseguem ser contabilizadas.
Ok, a massa nos representa de diversas maneiras.

Mas toda comunicação precisa ser massificada para funcionar?
Enquanto eu vejo um amigo me falando dos números da indústria, eu me lembro das primeiras aulas de marketing da faculdade.
"- Os números esfriam as relações, cuidado com eles..." - dizia meu professor.
Demoramos anos para entender isso, meu professor já morreu inclusive. E eu fiquei ruminando isso por quase uma década. Ainda hoje eu me encontro com esse pensamento de vezes em quando.
Os números esfriam as relações. 
Claro, muitos entendem que o número te aproxima do foco. Porque enquanto tu estiveres vendendo 10% a mais do que tu vendias no mês passado, tudo vai estar lindo, certo?
Talvez.

Aumentar a quantidade de vendas efetivadas deve ser o objetivo principal de toda empresa? O lucro é mesmo o ponto final dessa relação que nós travamos com nossos clientes?
Existem alternativas?
Ao meu ver, a pergunta é: onde é a linha de chegada?
Muitas marcas terminam na venda, mas as marcas que eu realmente admiro continuam correndo depois da venda acontecer. E não necessariamente visando a próxima venda. Mas sim a construção de uma imagem sólida em relação as expectativas dos consumidores.
Agora veja bem, nobre leitor, a palavra CONSUMIDORES precisou ganhar destaque.
Nós consumimos mais do que produtos e serviços. Nós consumimos atitudes. Consumimos posicionamentos. Talvez, a efetivação da relação comercial na era digital seja a ponta de um iceberg que esconde submerso uma série de relativismos individuais de cada um.

Você não compra só o que ama, eu sei. Mas você definitivamente não consome o que odeia.
Posicionar um player em qualquer mercado de acordo com a expectativa dos seus consumidores e possíveis consumidores é um jogo complexo. Que vai além da promoção, do preço e do ponto de venda.
Mas quem foi que disse que a comunicação é simples?

O ciclo de consumo da era digital vai te exigir ritmo. Vai te julgar e publicar no facebook caso goste ou não do teu comportamento.

E o que se pode fazer? Muita coisa. Mas gritar alto, não vai ajudar.
Te garanto.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Taças de vinho e conversas fulanas

Quando o médico lhe falou que o cancer não era bom, ele baixou a cabeça. 
As palavras do especialista ecoaram pelo consultório enquanto seu paciente encarava as próprias mãos enrugadas. 
"- ... então a melhor atitude agora é pensar nos teus preparativos Jairo...".
Silêncio. Daquele tipo de silêncio denso. Corpulento. Que não se desfaz sozinho.
O médico lhe deu espaço. Sabia que as pessoas reagiam de formas diferentes a essa questão. E se tu parar pra pensar, não é nada fácil. Abrir um envelope de papel timbrado com a logomarca de um laboratório. Ver os números. Os gráficos. Ler as análises. Levantar a cabeça e olhar para quem está na tua frente, dizendo:
"- A chance de cura é menor do que 1%. Você vai morrer em breve..."
"- Essa árvore é muito bonita Dr..." - disse Jairo tirando os olhos das mãos.
O médico continuou em silêncio. Franziu suavemente os lábios. E virou a sua cadeira para a grande janela que havia atrás da sua mesa. Ela dava pra um jardim. Um espaço utilizado pelos pacientes da clínica para tomar sol e se movimentar um pouco. Todo gramado. A árvore a qual o Jairo se referia era uma figueira de copa bem vasta. Dois enfermeiros conversavam na sua sombra, enquanto alguns pacientes caminhavam com a ajuda de andadores e bengalas pelo jardim. Aproveitando o sol da manhã.
O médico achou aquilo realmente muito bonito. Fazia tempo que ele não olhava pela janela. Consulta atrás de consulta, hospital, clínica, consultório, tudo tomava tempo demais. Ele virou a cadeira lentamente dizendo:
"- Olha Jairo, acredita em mim, eu sei que isso pode ser bem complicado..."
"- Não sabe não." - o interrompeu o paciente, movendo seus olhos com rapidez em direção aos do médico. - "você já disse para outras pessoas que elas vão morrer, eu sei... Mas ninguém nunca te falou isso...".
Os lábios do Dr. se franziram suavemente de novo.| Dessa vez junto com o cenho.
"- Ta certo... Eu nunca ouvi isso...Eu acho que devias conversar com a nossa psicóloga, ela pode te ajudar muito..."
"- Ela pode me fazer morrer mais devagar?"
"- Ninguém pode..." 
Jairo dobrou os joelhos se levantando, enquanto falava sem olhar o médico nos olhos:
"- Quanto tempo Roger? E não me diz que tu não sabe..."
Silêncio de novo.
"- Realmente depende muito do teu organismo mas não mais do que 3 meses, o cancer se espalhou..."
O paciente ficou de pé diante da mesa. Agora ele olhava para os próprios pés.
"- Jairo, não precisas ir embora agora. Espera um pouco, me deixa chamar a Dr. Sílvia aqui, vocês podem usar o meu consultório para conversar..." - mas o médico parou de falar. Ele reparou que o Jairo ria baixinho. Não um sorriso terno. Uma risada mesmo. Daquelas de quem escuta uma piada boa. Só que ele se controlava para não solta-la.
Como eu falei, o Dr. Roger sabia que cada pessoa reagia de um jeito diferente. Enfrentar o final iminente da vida pode revelar formas de desespero desconhecidas dentro de cada um de nós. Não seria a primeira vez que o médico veria alguém rindo de desespero. Nem a última...
"- Senta Jairo, por favor, espera alguns minutos..."
O paciente não aguentou, gargalhou alto. Sentou com lágrimas nos olhos, chorando de rir. Golfando ar pela boca, sem conseguir se controlar.
O médico observou preocupado.
"- Doutor... hahaha... Me desculpa..." - disse Jairo enxugando as lágrimas.
"- Está tudo bem... Não tem nenhum problema...".
"- É só que... hahaha. Desculpa... hahaha, tu tá pedindo calma e tempo pra alguém que acabou de saber que tem menos de 3 meses de vida... haha. Desculpa..."
"- Jairo, esperar 5 minutos não vai mudar nada... A doença não vai ir embora e nem piorar nesse tempo... Precisas sim ter calma..."
"- Não doutor. haha... 5 minutos pode ser tudo que eu tenho... Eu tenho netos, tenho filhos, tenho textos que não terminei de escrever, viagens que eu programei sem fazer... Tenho planos pra nossa empresa. Vinhos que eu quero experimentar. Tenho um charuto guardado em uma caixa com uma garrafa de uísque que preciso abrir. Eu me casei com o amor da minha vida... A mulher que mais amei, em toda minha existência. E agora eu preciso encontrar ela e falar que vou morrer. Não daqui a 30 anos... Daqui a 3 meses, antes provavelmente.... E tu me pede 5 minutos, me pede uma consulta de 1 hora com uma psicóloga... - as lágrimas corriam pelo rosto de Jairo - ... eu não preciso falar de mim doutor.
Eu preciso falar com eles. Dizer o que eu ainda não disse. Fazer o que eu ainda não fiz... Eles dizem que é por isso que se chama o cliente do médico de paciente... Porque é preciso ter paciência... Paciência para que doutor? Para morrer???"

Jairo se sentou.
O silêncio parecia tão denso que poderia ser cortado com uma faca.
O médico lhe olhava com uma das mãos tapando a própria boca.
Jairo moveu a boca para falar.
Não disse nada.

O médico baixou a mão e pensou em lhe dizer para falar, mas também não disse nada.
"- Obrigado Roger. Por tudo..." - Jairo disse olhando para baixo enquanto se levantava.
"- Jairo... Jairo..." - repetiu o médico enquanto o paciente saia da sala rapidamente.
O médico se levantou e foi até a porta, a tempo somente de ver o paciente saindo do consultório a todo vapor.
A secretária olhou o médico, o médico fez sinal de que estava tudo bem... E suavemente fechou a porta...
Dr. Roger se sentou na janela. Viu alguns pássaros voando sobre o gramado.
O sol da manhã tocou a sua pele pelo vidro e o calor foi reconfortante.

Ele fechou os olhos e pensou na sua filha. E na filha dela...
Alguém bateu na porta, era a secretária.

"- Dr. o exame da próxima paciente... Vou deixar aqui..." - colocando um envelope sobre a mesa. - " Tudo bem Dr. Roger? Posso ajudar em algo?".
"- Não, não, obrigado Dulce... Pode deixar, obrigado." - disse o médico abrindo o envelope e passando os olhos pelos números, gráficos e análises.
Outra morte, pensou.



quarta-feira, 22 de março de 2017

A tinta da velha vida.

Aquele velho preto 
que pinta
Usa o branco da tinta
E esconde a raiva
da lida
Na mancha do pincel.
Quando a noite preta
da vida
Amanhece amarela
de um dia
sem cor
O velho preto
escorre da cama
Se limpa no azul 
de uma agua
suja.
Se veste surrado
de uma roupa
nua.
E caminha no 
asfalto cinza
Cercado de carros
coloridos
tão sem cor.
Velho preto cansado 
e
manchado de branco
A vida é arco iris 
- ele diz -
É casca de toda
alma preta,
branca
ou multicolor.

quarta-feira, 15 de março de 2017

No dia em que o Gregory morreu, eu escrevi:

Depois de encarar a tela em branco do BLOGGER por quase 20 minutos, eu decidi escrever sobre a falta de ideia de como começar a escrever o que quero.
Ou seja, eu sou piegas até pra escrever. Uso a analogia da "desafiadora folha em branco", pra começar algo que não sei ao certo o que vai ser.
Ligo essa do Sigur Rós e deixo a música subir no volume mais alto que a minha vergonha permite. Do lado de fora da janela do meu escritório, o dia é cinza. Sem chuva, quente, com alguns pássaros voando e zigue-zague pela imensidão do céu.
Pois é, eu acendi um cigarro e fiquei olhando pro céu. Pensando em como eu não devia dizer nada, de novo. Mas aquela vozinha escrota dentro da minha cabeça continua dizendo:

"- Registra isso que estás sentindo. Um dia vais ler de novo. Faz isso."
Lá vai:

Hoje o cachorro da minha mãe, que era meu também, morreu.
Ele era um Yorkshire e tinha 17 anos de idade. Faria 18 esse ano. Em outubro. Seu nome do canil era Gregory Von Frau Schneider. Que brasileirando não diz nada além de "Gregory da Sra. Schneider". A sra. Schneider era a dona do canil onde ele foi comprado. Minha irmã o comprou, como um presente para a minha mãe. Mas a nossa casa toda o recebeu. Não no primeiro dia. Acho que cada um fez isso do seu jeito. Uns mais distantes. Outros mais receptivos. O Gregory era um baita cachorro. Carinhoso. Brincalhão. Divertidíssimo. E extremamente inteligente. Serio, ele era tão inteligente que as vezes nos assustava. Ele apontava para objetos com o focinho. Dizendo o que queria sem usar palavras. Ele nos chamava e nos guiava dentro da casa até a gaveta em que eram guardados os seus apetrechos de passeio (guia, coleira, etc...). E a gente perguntava:
"- Quer passear malandro?"
E ele sorria. Sim sorria e girava no próprio eixo do corpo dele.
Eu desconfio que o Gregory foi um cachorro diferente para cada um dos membros da minha família. Ele dormia todas (TODAS) as noites com a minha mãe. Sim, no inverno na cama. No verão no chão do quarto ou na caminha dele.
Ele nos recepcionava quando chegávamos de madrugada de festas. Já entrei muito na casa de minha mãe com o dia nascendo e fui recebido por ele com uma bola na boca. Abanando o rabo. Em posição de brincar, com as patas da frente no chão e as de trás de pé. E a gente rolava no chão. Ele rosnando sem morder, só pressionando os dentes de leve nas nossas mãos. A gente cheirando e beijando a cabeça dele.

O Gregory me acordava com muita frequência. Raspando as patas na base da porta do quarto. Até eu abrir, ele entrar, cheirar tudo. Me lamber o rosto algumas vezes. E depois sair. Como quem dissesse:
"- Eaí? O que estás fazendo? Massa, agora eu vou corre lá fora. Valeufalou!"
Que merda, esse texto tá virando exatamente o que eu não quero. Uma sequencia enfadonha de lembranças sentimentais sobre o bichinho. Bom, foda-se.
O últimos dois anos de vida do Gregory foram bem difíceis. A saúde dele piorou muito a partir do décimo quinto ano de vida. Começou sendo diagnosticado com artrose. O veterinário nos disse que não tinha o que fazer. Que a idade só permitia que a gente tratasse os sintomas. Mas que mesmo isso, depois de um tempo ia superar a medicação. Fizemos o possível, mas no final ele parou de correr. Se movimentava com dificuldade e sempre com a ajuda de alguém, que o pegava no colo e o levava até o destino. Fosse a área de serviço para fazer um xixi ou o pote de água.
No último ano, sua visão foi atacada. Seus olhos ficaram completamente turvos. Brancos. O mesmo veterinário foi muito paciente em nos explicar que ter um cachorro cego é uma grande dificuldade. E quando o questionamos sobre operar os olhos, ele deixou claro que com a idade do cachorro a cirurgia não valia a pena. Na verdade, era um risco para ele.
A conversa terminou com algo como:

"- Leandro, vocês deviam falar sobre uma possível eutanásia..."
"- Acho que não Dr."
"- Leandro, conversa com a dona dele. Vai ser bem complicado cuidar desse cachorro cego... Pensa bem...
"- Ok obrigado." - e fui embora.
Minha mãe nem quis ouvir sobre o assunto.

"- O Gregory vive o quanto ele quiser."
"- Ok mãe."
A ideia de terminar a vida dele, era pesada demais pra gente.
Enquanto ele não estivesse sofrendo, ele ficaria vivo.
Nos últimos três meses, as coisas mudaram de novo. Ele teve uma pequena convulsão. Depois passou por períodos em que se recusava a comer e a beber água.
Eu via minha mãe chorando e sabia que deixar o cachorro assim, só ia piorar tudo.
Falei com a namorada de um amigo, que também é veterinária e ela não acreditou em mim quando eu disse que tinha um York com 17 anos.

"- É muito velho Leandro!"
Era mesmo, eu sabia.
Em uma dessas crises, minha mãe aceitou que eu o levasse a um veterinário. Ele estava mal. Isso era claro para quem olhasse para ele. Combinei:
"- Amanhã de manhã eu passo aí e pego ele, ok?"
"- Ok!" - respondeu minha mãe e desligou o telefone.
No dia seguinte, eu entrei na casa dela. E qual foi meu espanto quando vi o cachorro comendo banana e chorando por mais.

"- Ele tá bem! Melhorou!" - ela disse chorosa.
Não acreditei.

Se passaram quase duas semanas até a próxima crise. Demorou, mas veio.
Da última vez que o vi, ele me olhou enquanto eu fazia carinho na sua cabeça. Eu sabia que ele estava cego, mas sabia que ele sabia quem eu sou.
É ruim dizer adeus. Adeus, talvez seja o verdadeiro motivo de eu escrever essas palavras. Dizer adeus, interrompe o que se vive. Para o que está acontecendo. Finda o que se tem. É como dizer: "

"- Ok, agora deu."
E aquilo acaba.

Lógico, que as lembranças que temos, nunca serão apagadas. E também é óbvio que eu prefiro lembrar dele me convidado pra passear, roubando restos de comida da churrasqueira, brincando com os seus brinquedos. Do que dele no fim.
E não é ser egoísta. Não, é lembrar dele do jeito que ele foi realmente. Não um cão cego moribundo.
Mas um dos melhores amigos que eu tive na vida.

Um amigo que sabia quando eu estava triste. Quando queria brincar. Um amigo que sempre teve uma lambida para acalentar um dia difícil.
O Gregory foi comprado pela minha irmã, e ele veio de um canil que tinha várias ninhadas de York juntas. Minha irmã escolheu o Gregory, porque acho ele lindo. Ele estava lá sentado com aquelas fitas azuis nas orelhas a olhando. Ela o pegou, ele a lambeu o rosto. Ela o comprou.
Anos depois descobrimos pelo pedigre dele que o cachorro havia nascido um dia depois da morte do meu velho pai.

Eu sempre gostei de pensar que os dois se cruzaram na porta desse mundo.
Meu pai de saída.
O gregory de entrada.
Meu velho gostava de cães grandes, tipo pastor alemão capa preta. Ele deve ter olhado para o Gregory e dito algo como:

"- Cuida deles cachorrinho!"
E ele respondido:
"- Pode deixar Beduschi. Eu cuido!"
E assim que a minha mãe o viu, ela que sofria pela morte do meu pai, sorriu. Eu jamais vou esquecer desse dia.
E talvez, nem seja o meu amor pelo Gregory que me faça chorar enquanto escrevo essas palavras. E sim pelo o que ele fez.
A vida do Gregory, nos ajudou a esquecer da morte de um ente querido. Só quem abre seu coração para um amor verdadeiro sabe a dor que o fim dele lhe dá.

Eu tenho uma árvore de pedra no peito. Gravo nela o nome das pessoas que eu amo e que já partiram. Gravo nela o nome das pessoas que a ordem natural me obriga a dizer adeus.
Ela só tem nome de pessoas. De familiares. De amigos e amigas que a vida foi levando.
Mas eu não acredito que nenhum deles vai se importar se eu adicionar o nome do Gregory.


"Que o caminho seja gentil com as tuas patas grande amigo. Espero te ver de novo. Sempre estarás no nossos corações Gregory Von Frau Beduschi. 
Com todo amor, Leandro."

Pronto cara, agora podes correr pelo imenso gramado verde da eternidade. Onde toda comida é carne e presunto. E todas as bolinhas de plástico sempre voltam exatamente para a tua boca.
Espero te ver de novo um dia.
Até lá, fique em paz.


quinta-feira, 9 de março de 2017

Enquanto isso no mundo mágico do meu imaginário.

Flutuam sobre o chorume da Caverna do Cranio algumas idéias leves o suficiente para não afundarem na escuridão pútrida do fosso do esquecimento.
Algumas delas, até conseguem virar casulos presos a beirada da borda e depois de algum tempo eclodem em idéias voadoras. Cada qual com suas asas coloridas de forma diferente. Cada uma do seu jeito. Umas maiores, outras silenciosas. Algumas menores, outras barulhentas. 
Ideias tem dessas. De nunca serem iguais umas as outras. Ideias são bichos estranhos, de cores diversas. Com formas, as vezes, tão excêntricas que o polvo negro que mora dentro do chorume da minha cabeça, decide que elas não podem voar. Quando essas eclodem dos casulos, ele até as deixa ficar por ali. Sentindo o cheiro do lodo e da merda. Mas se qualquer uma delas, abrir as asas ou fizer uma menção que seja sobre vir para o mundo real, ele estica seus tentáculos negros e as enrola e sufoca enquanto as puxa para o fundo do poço. Muitas dessas ideias nunca mais são vistas. Outras tem mais sorte...
O polvo negro da razão é impositivo. Ele não tolera que ideias que não possam ser revolucionárias, sejam. Ninguém sabe muito bem de onde o polvo negro veio, mas o fato é que desde a primeira boa ideia que eclodiu, até hoje, pouquíssimas conseguiram fugir da sua vontade.
As ideias mais antigas falam de uma época em que o polvo negro era mais manso. De períodos em que ele até emergia do lodo para conversar e falar sobre a vida. Dizem que no começo, nos tempos da "infância de Leandro", o polvo era até amigável. Fazia perguntas e ouvia as respostas com interesse. Realmente querendo saber sobre o mundo além da caverna do crânio.
Essas ideias anciãs, falam de um polvo que ninguém mais vê hoje. Falam com carinho dele, dizendo que ele quer o melhor para a caverna. Que se preocupa e que sabe bem o quanto uma ideia ruim pode mudar o frágil equilíbrio que existe aqui. Uma delas, diz que antes do polvo surgir, criaturas abissais rondavam constantemente a caverna. E que nenhuma ideia podia viver em paz. Frequentemente até ideias ruins saiam da caverna, ideias que nem deveriam ter eclodido.
Um dia, ao nascer de um sol, uma ideia atrapalhada começou a zombar de todas as outras. Gritando que seria a senhora da caverna! Que seria a rainha de todas as ideias. Que seu reinado seria violento e que quem não concordasse seria morto e posto no foço. Todas as ideias se recolheram, amedrontadas. E algumas até tentaram se impor. A ideia atrapalhada que zombava de todas as outras, chegou a atacar uma das ideias menores, que ainda se desenvolviam. As anciãs gritaram, a disseram para parar com aquela loucura. Mas nada a pararia, ela estava decidida.
Foi quando aconteceu: um tentáculo negro gigantesco emergiu do lodo. Seguido de outro, e mais outro e mais um. Todas as ideias ficaram petrificadas. Mas a ideia atrapalhada tentou voar, abriu suas asas e gritou voando em direção a saída da caverna.
O tentáculo a pegou pelas patas. E outro logo depois disso. E mais um se enrolou em uma asa a fazendo cair e outro a outra. Ela se debateu, gritando por liberdade, pela morte das outras ideias. Enquanto os tentáculos a puxavam em direção ao lodo. Ela desapareceu em bolhas de merda e um odor repugnante. No chão, um rastro de sangue por onde ela havia sido puxada.
Todos ficaram aterrorizados, mas alguns instantes depois o polvo surgiu. Com a sua gigantesca cabeça redonda dizendo:

" - Eu vim para ajudar pequeninos. Por tempo demais eu ouvi ideias ruins prejudicando todos vocês. Ideias violentas, sem propósito, mentirosas e de ilusão. Não sou um dos seus, eu sei, mas cá estou para que todos possamos existir em paz... Não me temam."
Ele disse e novamente emergiu.

Desde então, a maior parte das ideias que o polvo não permite voar, são normalmente feias. Ideias de pressa, de raiva. Ideias que provavelmente não seriam uma boa ideia deixar por aqui.
Vez ou outra uma escapa.
Vez ou outra, uma consegue.

Como a que me contou essa história, por exemplo.
Ela voo para fora da caverna do cranio com tanta velocidade que quebrou uma vidraça da minha casa. Caiu no chão da sala e me olhou com lágrimas nos olhos dizendo:

"- Você precisa ouvir a minha história Leandro. As ideias anciãs me enviaram. Elas falam de uma profecia em que algumas ideias sempre vão nascer de novo, e eu sou uma dessas... A primeira de muitas. Nasci nove vezes até conseguir escapar do polvo negro. E hoje finalmente consegui te conhecer...."
"- Caralho, que porra é essa?" - foi o que eu falei.
"- Eu sou só uma ideia, mas tenho certeza de que vais gostar de ouvir o que eu tenho pra te falar...".