quarta-feira, 28 de março de 2018

O silêncioso grito do nosso desespero.

Mataram uma preta em um carro. Quatro tiros na cabeça. Quatro tiros nela, e na gente foi um escarro. Esse é aquele momento em que o nosso desespero fica mudo. Por mais que se grite a todo ar dos pulmões, o que se ouve é o silêncio profundo. E ninguém se importa com o nosso luto. "Mariele, presente!" eles trazem nos cartazes. "Mas muita gente é vítima de violência" alguns gritam vorazes. O Brasil é insaciável de heróis. Consumimos todos, sem regra. Do futebol a novela, de BBB a Brasília, de cantores a poetas, de personagens imaginários a patetas. Todos podem ser heróis no Brasil. Nem que seja por um dia, como disse David Bowie. Só que a gente subverteu a canção. Aqui o herói não funciona. Não. Aqui o herói não resgata a princesa. Princesa que você pode ter imaginado branca e vestida de rosa. Mas que eu pintei preta de piche. Pichada na parede do centro da cidade. Com algumas gotas vermelho sangue que voaram do último assassinato. E ninguém limpou. Porque limpar a parede só espalha mais o sangue. Suja mais do que estava antes. O jornal tirou uma foto para publicar. Mas deram só uma nota de rodapé. Ninguém pareceu se importar, ontem teve jogo de futebol. Goleada para o time vencedor. E o dia hoje amanheceu mais triste. Não porque mais uma preta foi morta. Mas porque quem puxou o gatilho, venceu. Também morre quem atira, me canta o Rappa. Aqui, também morre quem assiste. Também morre quem escuta. Também morre quem desiste. Fecho meus olhos cansados, tá foda. Ouço: "Será que o Brasil tem jeito?". Me rendo ao desespero. Não sei se tem. Mas se tiver, não é um herói milagroso. Não é um Pelé camisa 11 que vai chutar a bola nesse gol. Não é um Don Pedro mentiroso que gritará "independência ou morte!" as margens do rio Ipiranga. Não é a atriz da novela que aparece no intervalo pedindo justiça ou dinheiro para os pobres.
Não é.
O Brasil tá chegando a um momento em que todo mundo tem razão, e com razão. E se o Brasil tiver jeito, vai ser dolorido e demorado. Vai ser lento e brigado. Não vai ser rápido. Vai ter desespero, lágrimas e suor. E talvez piore muito antes de ficar melhor. Talvez, depois de décadas de discussão, no dia em que alguém deixar de furar uma fila ou quando alguém responder com um "obrigado", o Brasil tenha jeito.
Até lá, é isso que o Brasil é, uma preta, favelada, bisexual, engajada e por 4 tiros silenciada.

terça-feira, 13 de março de 2018

Fica mais leve o peso meu coração.

Passos sobre a calçada. Rua cheia, cidade lotada. Homem caminha, camisa e barba. Sobe e desce meios fios. Dobra esquinas, cruza pontes sobre rios. Seus pés batem o chão como um coração pulsa. Ritmo de tempo em tempo. Compasso inalterado. Fecha sinaleiro, multidão de pernas entre carros parados. Prédios e seus vãos revelam o azul do céu. Intervalos de concreto e sombras. Dobrando a vontade do sol entre dia e noite. Com portas e elevadores. Escadas e janelas. O asfalto quente castiga. O verde se encolhe por entre as frestas. E se contorce subindo os tijolos. Alguém atende a um telefone celular:
"- Alô! Não posso falar".
Sem parar de andar. Pouco tempo para pensar. No intervalo é preciso respirar. Gravatas sufocantes. Bolsas a tira colo. Passa um ônibus lotado de Marias e Joãos. Todos cansados de um dia de trabalho sem fim. Corpos violados que seguem o caminho das camas. Buscando algum sonho que valha a pena. Para suas almas que não são pequenas. Mas que vivem e morrem sobre essa vil tutela. De uma vida de esperas. Em filas e cadeiras de escritório. Em balcões e caixões de necrotérios. Tomando anti-ácidos e aspirinas para os revertérios. Buscando as luzes dos postes e das salas de jantar. Assistindo as televisões, perdendo as noites de luar. Que de tão cansados mal conseguem pensar. E se contentam em aceitar o açoite, se aliviando entre as chibatadas. Como férias programadas. Dias de praia com hora para começar e acabar. Tudo sobre a vigília daquele que insiste em ser teu dono. Que te comprou, registrou, uniformizou, programou e descartou por outro. Versão 2.3, bem melhor, vale por seis. Te deixou para trás. Te superou. Teu tempo foi para o ralo da criação. Escorrendo pelas lajotas da existência. Como água marrom que lava um corpo sujo. Que não será reaproveitada. E olhando para o chão tu percebe, que até a água escorre em fila. E que na fila da aposentadoria, tu és como água. Prestes a ser encanada. No duto que te carregará para o final da jornada. Onde esperas poder evaporar em paz.
Para chover de novo, outro dia, em outra rua. De outra cidade.
Em um outro país.
Sobre outras calçadas.