segunda-feira, 6 de junho de 2016

O frio, o café, a janela e a saudade.

Se não fosse por acaso, seria  por destino. Eu penso que o acaso seja o destino que todo mundo tem. Todo mundo tem acaso. O acaso sempre vem. Sorrateiro, silencioso e imprevisível também. Enquanto eu escrevo na minha tela acesa, tento não olhar para as teclas do teclado. Sou de 1982, nós somos as crianças que fizeram curso de datilografia no colégio. Usamos os dedos mindinhos para digitar. Fomos aqueles que começaram a ter internet no celular. A gente via o mundo de outro jeito. Ou o mundo era mesmo mais devagar. Lembro de precisar pesquisar conteúdos nas bibliotecas. Eu não sabia, mas já me sentia em Hogwarts. Caminhando por entre os corredores gigantescos cheios de livros antigos e cheios de pó. Fui criança até muito tarde, ou talvez hoje elas sejam até muito cedo. A vida adulta demorou pra chegar, e eu nem a vi entrar. Era como ser criança para sempre. Ralar o joelho correndo livre. E dormir sem escovar os dentes. Era acreditar na lenda da loira do banheiro, nas histórias do velho do saco e dos gigantescos cachorros do mato. A gente acampava na sala dos pais de nossos amigos, e ficávamos acordados por toda madrugada descobrindo nosso próprio mundo que nunca existiu. Lutávamos com feixes de luz de lanternas. Saltávamos por cima dos sofás, imaginando que o chão era lava. Subíamos as árvores dos quintais e sítios. E descíamos até as profundezas dos rios que hoje a água bate em nossas cinturas.
Era assim, até um dia em que acordei e meu velho pai havia morrido. Digo velho, porque ele tinha 96 anos de idade quando morreu. Eu tinha 17 feito a alguns meses... Vivi aquilo do jeito que pude. Não houve barreira entre a onda de dor e meu peito. Foi um golpe e tanto. Demorei um bom tempo pra entender que qualquer um que pudesse ter me ajudado na época, recebeu a mesma onda. Com a mesma força, ou até maior. E hoje, eu realmente acho que não há barreira que represe essa dor. Para ninguém. Um dia, minha mãe chorava no silêncio do quarto que foi deles por 30 anos e eu entrei. Ver a própria mãe chorando é foda. Não sabia o que dizer, só queria que ela parasse de chorar. E depois de um tempo, ela finalmente parou. Um dia ela me disse que naquele dia, ela chorava porque não sabia o que fazer com a dor dos filhos. E eu fiquei pensando que a dor dela devia ser uma das maiores de todas, mas ainda assim ela sentia a nossa antes da própria. Aprendi uma lição foda naquele dia. Aquela dor, mesmo roendo as cordas que sustentava tudo que eu conhecia como mundo e realidade, ajudava a todo mundo a içar novas cordas. Com novos cenários. Para outros personagens. Permitindo que a vida seguisse seu rumo, até a deixa para que nós saíssemos da cena. E nossos filhos e netos entrassem. Até que houve um dia, em que a dor virou uma espécie de pesar. Que nem doía mais tanto.
Já escrevi aqui sobre a armadura imaginária do meu velho pai, velho cavaleiro da coroa real, velho mestre e grande amigo. Já disse que nós, os que vem depois dele, por vez a visitamos em um silêncio fúnebre mas que de alguma forma nos enche de esperança e alegria. Foi assim que eu aprendi, que com a morte dele, a vida segue. Sem nunca esquece-lo. Sem nunca deixa-lo para trás. Mas com um passo depois do outro, repetindo o que aprendemos para que o mundo seja melhor.
E quer saber? Seria um grande orgulho, se algum dia um filho meu me dissesse algo parecido. Seria um grande orgulho se a armadura que eu uso hoje para deter as espadas do caminho, um dia tivesse lugar ao lado da dele.

Manter a minha espada afiada. Minha armadura limpa. E meus olhos no horizonte. É o que posso fazer.
O meu melhor, até a deixa que me tire da cena.