sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Sobre ser cego e ver.

Sentei porque queria escrever um verso que a tempo me persegue. Mas meus dedos se recusam a me obedecer. Tento desenhar, ligo alguma música e mergulho no meu fone de ouvido. Enquanto afundo, olho para a distância da superfície aumentando e sinto minha alma e minhas vísceras indo em direção ao desconhecido. Eu gosto.

A força da gravidade não impede o espírito de sonhar. - ouço uma voz me dizer.
Eu concordo.

E lá se vai a realidade nas águas turvas desse oceano de pensamentos e sentimentos soldados como moléculas de água. Dentro desse líquido transparente eu vejo tudo distorcido. Seria isso um útero? Suspiro uma respiração longa e deixo a sensação de gelado me brisar ainda mais. Tenho sono. Será um sonho? Será que eu estou sonhando que estou sonhando?

Tudo que tem preço, perde o valor. Vejo escrito na pichação de rua.

Fica mais leve o peso do meu coração. E agora que sou mais velho, meu bom coração é mais gelado. Canta o Arcade Fire em um coro bonito e triste.
Passam por mim alguns papéis molhados. Tento segurar um e ele se desfaz ao toque das minhas mãos. De longe acompanho um e consigo ler algumas palavras. São antigas ideias que tive, dispensadas em velhos baús. Ideias que apesar de não serem usadas, foram a semente para outras que foram. Desenhos ruins (nenhum é realmente bom), músicas muito tristes e pensamentos sem endereço no mundo físico.

Só existe amor por dentro. Amor não é o que se diz, amor é sentir.

Abro os olhos e a descida continua.
Tem um vulto nadando ao meu redor. Sem forma, rosto ou membros. Antes que eu possa perguntar, aquilo diz:
"- Me interesso por esse lado teu..." - com uma voz gelada que não solta bolhas de ar.

"- Qual lado?" - pergunto soltando algumas bolhas de ar...
"- Esse que tu visita só vez ou outra. Esse que tu não conheces quase nada. Esse." - e sorri um sorriso com dentes afiados.

Sinto medo. E aquilo desaparece em seguida se esgueirando rapidamente para longe.
Agora fica mais escuro. A superfície está longe, parece a anos de distância.

O coletivo humano é violento até quando luta por paz.

Sinto meus pés tocando o fundo. Uma areia fina se levanta. E a escuridão é quase completa.
Meus ouvidos tem um zumbido da pressão. E para cima, parece que há uma vida de distância.
"- Nada será mais como era antes..." - ouço uma voz dizer.
A procuro.
"- Tu é a voz criança." - ele me diz.
Paro e fecho os olhos. Me sinto adormecer. Sem oxigênio. Mas sem agonia. Abraço esse sono como a um filho que se aconchega na própria mãe. E durmo.

Os olhos só podem ver uma pequena parte do todo. Para o resto, é preciso ser cego.

Acredito nisso. E não duvido da vida.



terça-feira, 18 de setembro de 2018

Para onde vamos?

A democracia brasileira tomou uma facada no abdomen. Foi uma única perfuração, mas a faca rasgou fundo as suas entranhas. A democracia que estava sendo carregada, não porque fazia campanha política, mas porque já não conseguia caminhar sozinha a décadas. Gemeu de dor enquanto o aço frio rasgava seus tecidos e penetrava agudo na sua barriga. Muitos demoraram para entender o que estava acontecendo. Perseguiram e agarraram o esfaqueador. A democracia foi carregada até o hospital mais próximo. Os homens e mulheres que a carregaram gritavam palavras de ordem pelo caminho. Pedindo espaço, pedindo pressa, pedindo justiça, prometendo vingança. A democracia foi fotografada com um braço largado para baixo, sofrendo com a expressão de agonia que só quem é esfaqueado consegue fazer. A foto correu o mundo em minutos. Time, People, BBC, CNN, NY Times, The Guardian... Todos a publicaram.
"Democracia esfaqueada!" - diziam as manchetes.
"Hoje a Democracia brasileira foi esfaqueada na barriga" - diziam os telejornais.
A democracia, coitada, que a tempos já sofria de uma série de doenças crônicas. Foi enviada para um hospital público. A cena era digna de um filme apocalíptico. Uma fila de pessoas sangrando, chorando e morrendo. Da porta do hospital até o final do mundo. A turba que carregava a Democracia correu para dentro do pronto socorro, todos sujos com o sangue que vertia do furo.
"- Não temos médicos!" - logo disse o atendente.

"- Mas essa é a Democracia!!!" - bradou um dos que a carregavam.
"- Eu sei! Mas não temos como ajudar, o hospital está falido! Não tem remédios, médicos, nada...!"
E a revolta foi geral. Alguns ameaçaram bater no atendente. Exigiram atendimento. Chutaram paredes, móveis e quebraram as janelas. A Democracia foi deixada de lado, deitada no chão sujo e frio. Um par de pessoas se ajoelharam junto a ela. Uma mulher chorava. Um homem gritava. Um cachorro latia. Alguns carros buzinavam na rua. Muitos tiravam fotos com seus celulares. Gravavam vídeos...
"- Estamos aqui na cidade de Brasilzópolis e a Democracia não pode ser atendida no hospital porque não tem médicos! Isso é um absurdo... Até quando?"

A Democracia desmaiou, depois de sangrar uma poça gigantesca no chão. Uma mulher disse que a poça tinha o formato do rosto de Jesus. Um homem disse que era o brasão do seu time de futebol. Um cachorro magro e doente começou a lamber o sangue ainda quente. Um homem o afastou com um chute seco, seguido de um ganido desesperado.
A TV estava ali para filmar o momento. Um helicóptero sobrevoava a cidade, transmitindo ao vivo tudo para um telejornal de audiência relevante. Um padre, um pai de santo e um monge budista tentaram se aproximar para ajudar. Outra confusão começou. Alguns eram contra outros. Ninguém se ouvia. Muitos gritavam que a Democracia não iria resistir muito mais tempo. Que estava morrendo. Carros foram apedrejados, vitrines saqueadas, telefones públicos depredados. A cidade fervia em raiva e indignação.
Por fim, a Democracia morreu. Cercada de desespero, dor e descaso. Uma mulher jura que as suas últimas palavras foram:
"- Salvem o país!"
Outros dizem que ela não disse nada, só parou de respirar com os olhos abertos, enquanto o sangue lhe escorria sem parar...
A TV deu o horário e o local do enterro. E em seguida rodou um comercial.
Depois de alguns dias a turba se acalmou. E todos pudemos viver as nossas vidas como se nada tivesse acontecido.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Me cabe.

A frase curta me coube.
Silencio longo,
breve fim de tarde.
Nesse barco a vela

que navega na tempestade.
Mudam-se dias e anos.
E o relógio me persegue.
Quanto mais eu bebo,

maior é a sede.
O pensamento sucinto,

diz que sinto:
Muito e pouco

em uma palavra só.
Silêncio, meu velho amigo.
Faz tempo que não te chamo.
Faz tempo que não te amo.

Faz tempo que não clamo:
lacônica é a vida.
Que sem palavras

é dita.