segunda-feira, 22 de julho de 2019

Belchior e eu.

Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.
Belchior desliza dos meus fones direto para o meu cérebro.
Escorre o veneno da boca desse bicho peçonhento que me observa.
Meus olhos vermelhos soltam fumaça ao invés de lágrimas.
Brilha o céu, é noite, mas o sol resolveu aparecer.
Confusão mental e eu me sinto dentro de um sonho.

Meus longos diálogos foram substituídos por um silêncio gordo e estático.
Não, eu não vou deixar que vocês deem um troféu ao meu algoz.
Nenhuma liberdade pode ser presa por barras de ferro ou tijolos de pedra.
Ouço o vento chegar.
Que saudade frio, por onde tu andavas?

Meu corpo é deslocado a 20 metros de altura e arremessado ao infinito depois disso...
O planeta terra é gigante.
Mas diminui muito.
Fica do tamanho de uma quilica. Distante e solitário.

Penso: ainda dá pra voltar... Tá todo mundo lá.
Giro e desviro girando e desvirando.
Perco tudo que conheço de vista.
Porque eu ainda estou vivo? Já era pra eu ter morrido.
Passo por um jovem garoto, 8 anos no máximo.
- Quem é você? - nós dois dizemos ao mesmo tempo.
Quem sou eu?
Quem era ele?

O perco de vista numa lenta cambalhota espacial.
Tantos planetas, tanto espaço.
A vida é um sopro. 
Sinto vento e fecho os olhos.
- Perai! Vento no espaço, não tem...
Abro os olhos no mesmo instante que termino de falar. E sinto grama sob meus pés. Um céu azul sem nuvens e um gigantesco campo gramado com pequenas elevações, até onde meus olhos podem alcançar.
O espaço se desfez, a luz e o som dos pássaros. Olho para cima e tudo é azul. Sinto o sol ardendo minha pele, é agradável se sentir vivo assim. Numa manhã de sábado.
Onde eu estava? - me pergunto sem falar.

- Essa é a pergunta errada. - ouço.
Procuro pela voz, sem sucesso.
- Quem é? - eu pergunto.

- Essa também é a pergunta errada... - ela repete.
Procuro por todos os lados. Não há ninguém aqui... Além de mim.
- Eu não me importo em saber... - respondo.
- Não? - ouço.
- Não! - digo.

- Tem certeza? Bem lá no fundo... tem? - escuto.
- Escreveu certa vez um poeta:
"Não discuto

com o destino
O que pintar
eu assino."
- Você se esconde... - me diz a voz.

- Então você e eu somos a mesma coisa - respondo.
Silêncio. Como o som do universo.
A fera que te observa é teu reflexo. E escolher ser fera encarando seus olhos vermelhos é uma decisão sua. A cada respiração um novo mundo nasce. Respire, sinta o vento do universo, dome sua fera e siga seu caminho.






quinta-feira, 4 de julho de 2019

Ao redor daquele piano.

"- É por isso, entendeu?" - disse o Seu Arnaldo olhando para o neto.
"- Entendi vô..."
"- Repete então..." - disse o senhor de camisa social fechada até o último botão, calça de linho, meias finas e calçado engraxado. 

"- Porque as teclas são de marfim, a madeira é carvalho alemão, as cordas e todo mecanismo são originais de um lu... lu..." - o menino parou de falar. Procurando lembrar da palavra.
"- Lu... thier!" - disse o avô sorrindo - "Diz comigo..."

"- Luthier..."  - repetiram os dois quase ao mesmo tempo.
Felipe, o neto do Seu Arnaldo, aprendeu a entender o amor que seu avô tinha por aquele piano. O instrumento era majestoso, como pianos normalmente são. Preto brilhante, sempre limpo e ocupando um grande espaço na sala de estar dos seus pais. Era tocado sempre, por Martha sua mãe, pelo avô, por Jonas seu irmão mais velho e por seu pai. Felipe fazia aulas, logo depois do seu irmão. Aprendia escalas, alguns acordes e ritmos. Havia começado a alguns meses, mas gostava. Sua mãe tocava valsas longas, sorria enquanto seus dedos dançavam sobre as teclas. A ponta dos seus pés tocavam gentilmente os pedais, com força quando era preciso, mas sempre de forma gentil. Seu avô tocava pouco e cada vez menos. Dizia que os velhos dedos doíam e os pulsos das mãos já não lhe obedeciam como antigamente, mas tocava clássicas peças lentas, pausadas e muito bonitas. As vezes tocava só com a mão direita.
"- A mão boa..." - dizia com tom saudoso - "... a mão boa que me sobrou...".
Jonas, seu irmão mais velho, era um aluno dedicado. Tocava rápido e focado. Dobrava-se sobre as teclas e fazia seu corpo todo voar para a direita e para a esquerda. Se esforçando para alcançar as teclas mais distantes. Ele sempre foi muito bom. Não só no piano. Em tudo que fazia Jonas se derramava completamente. As aulas de piano eram só uma dessas coisas. Frequentemente, Jonas era convocado a demonstrar sua perícia diante de convidados em festividades familiares. Era sempre aplaudido por todos, Felipe adorava ver seu irmão mais velho aplaudido. E quase sempre era o primeiro a lhe dar um abraço de parabéns.

João, era o nome do seu pai. Era construtor e trabalhava muito. O piano era um amigo dele. Seu pai nunca sentava na sua frente a não ser que tivesse tomado um banho. Por várias noites, sem nenhuma ocasião especial, seu pai terminava de jantar, ajudava sua mãe a retirar parte da louça e já sentava ao piano. As vezes concentrado por dias em uma partitura específica, as vezes divagando sobre as teclas alguma melodia que avançava lentamente nota a nota... Seu pai e o piano conversavam muito. E não era raro para Felipe e Jonas adormecerem ao som da música.
"- Esse piano ocupa muito espaço Dona Martha!" - reclamou um dia Dona Gertrudes, a senhora que morava e trabalhava na casa da família desde sempre...
"- Ocupa espaço na sala Dona Gertrudes, mas dá muitas alegrias a nossa família..." - respondeu sua mãe.
Os dias da infância na casa dos Silva passavam rápido, mas é claro que nenhum dos membros da família conseguia distinguir a velocidade com que os dias se soldavam a noites e amanheciam novamente. Poucos percebem, o tempo é uma melodia que embala nossos passos de dança. Envoltos em suas notas e ritmos, os Silva nem imaginavam que um dia a música teria fim.
"- O piano Felipe?" - perguntou o homem - "Fica ou você prefere retira-lo do imóvel?"
"- O piano não fica... Ele vem comigo..." - respondeu Felipe com sua mão sobre a caixa fechada das teclas.
"- Tudo bem, vou terminar os outros cômodos. Qualquer dúvida te chamo..."
"- Ok, obrigado..." - Felipe disse sem tirar os olhos do grande e negro piano, agora cheio de pó, no canto da sala.
Muitas pessoas dizem que no momento da sua morte, um filme passa diante dos seus olhos. Apesar de não estar morrendo mais do que qualquer outro ser vivo saudável, Felipe via um filme de suas lembranças trançadas em sequencia, com uma trilha sonora vinda do piano. Estranhamente ele se recordava não só das noites de festas e músicas, mas também de todas as vezes que via o piano ali e pensava: 

"- Depois eu toco...".
Enquanto corria sobre as páginas da sua rotina infantil. Podia ser um jogo da seleção, o campeonato de futebol de botão na rua, uma prova de matemática, um chamado de Dona Martha ou um acidente de carro que aconteceu lá na frente da casa dos Rocha. Não importa, foram tantas as vezes que ele perdeu a chance de tocar o piano naquela atmosfera, que não importa mais. Toca-lo agora seria como fazer um show para um teatro sem público. Não havia o mínimo sentido. Toca-lo agora seria como conversar com uma fotografia, com uma lembrança. Toca-lo agora seria completamente impossível, na realidade.
"- Você toca?" - lhe perguntou o corretor de imóveis sem perceber que havia lhe dragado violentamente para o mundo real.
Felipe piscou diversas vezes, retirou a mão do piano, forçou um sorriso e disse:
"- Não mais..." - enquanto coçava um dos olhos com a mão - "Não toco mais...".
"- Minha esposa tocava, fazia aula e tudo... Mas nunca tivemos um piano em casa. Essa casa combina com ele, você sabe...".
"- Combina sim, é um instrumento muito bom, o seu criador era muito talentoso..." - sorriu Felipe.
"- Criador?? A pessoa que o fez?" - disse o corretor.
Felipe sorriu ao se ver com seu avô nessa mesma situação a décadas atrás:
"- Sim, esse é um instrumento feito a mão. Parte por parte. Nesse caso era um alemão, esse piano foi feito antes da segunda guerra mundial, tem uma história e tanto..."
"- Aaaaah... entendi." - disse o corretor desinteressado.
A casa foi vendida logo após a morte de sua mãe. Jonas morava em outro estado, mas a distância entre os irmãos era intergaláctica. Eles não se viam a anos. Sua pai já havia morrido a muitos anos e seu avô a mais tempo ainda... Sua mãe tocou o piano durante toda a vida e só parou quando a doença a obrigou a ficar deitada na cama. Felipe e Jonas tocavam para ela e sempre abriam a porta do seu quarto quando tocavam. Ela sabia quem estava tocando. Um dia, já perto do fim, Felipe terminou de tocar e foi até sua mãe para conversar:
"- Você está tocando muito bem Felipe" - disse a senhora de cabelos brancos e pele enrugada.
"- Sabe o que eu acho mãe?"
"- O que meu filho?"
"- Que a senhora só sabe quem está tocando porque eu toco mal..." - e sorriu.
Sua mãe não sorriu. Ela tomou uma respiração e disse:
"- Um piano não escolhe quem lhe toca. O piano emite o som de acordo com as mãos que lhe manejam. Exatamente como a vida filho: a vida não é difícil, ou ruim... A vida e a música simplesmente acontecem de acordo com as mãos de quem lhe toca. Se você acha que toca mal, aprenda a tocar melhor...".

Felipe ficou em silêncio. O mesmo silêncio daquela sala com as suas janelas majestosas e daquele piano no seu canto... O corretor já havia ido embora e o sol começava a partir. A música do tempo seguiu tocando...
Do outro lado do país, Jonas o irmão mais velho de Felipe, recebia um chamado em sua casa.
"- Entrega para o Sr. Jonas Silva".
"- To indo." - respondeu.
Ao abrir o portão, Jonas estranhou o caminhão da transportadora. Quatro homens uniformizados e um senhor de óculos e uma caixa de ferramentas...
"- Sr. Jonas Silva? Assine aqui o recebimento por favor..." - lhe esticou uma prancheta um dos homens uniformizados.
"- Mas o que é isso...?" - começou a ler Jonas.
No final do dia, o piano estava instalado na sua casa. Em um quarto onde antes havia um teclado... Jonas mal acreditava, mas era o instrumento da sua infância na casa dos seu pais. Sua esposa ouviu interessada as histórias do marido. E no final disse:
"- Isso é coisa do seu irmão... Você devia ligar pra ele."
Naquela noite o piano teve companhia e sua música aconteceu.
No outro dia, quando Felipe atendeu Jonas no telefone, ele disse:
"- Alo?"
E a vida aconteceu.