sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Quem tem direito de esquecimento?

Algumas das pessoas que lerem isso, sem dúvidas. Mas a grande maioria esmagadora, não!
Direito de esquecimento é pela regra:  o direito do indivíduo não ser lembrado por situações pretéritas constrangedoras ou vexatórias, ainda que verídicas. 

Talvez pudesse ser o direito da Dona Graça, mulher negra, mãe de quatro crianças de dois pais diferentes, empregada doméstica sem registro formal a quase 40 anos, dona de uma tosse que "daqui a pouco passa" mas já dura meses e não faz a mínima ideia de em quem votou na última eleição para prefeito e vereador. Desconfia que seja naquele rapaz jovem charmoso que o pastor mandou.

Não, a Dona Graça não precisa pedir direito de esquecimento. O país já a esqueceu. Na verdade, o país só ouviu um sussurro do que foi seu nascimento. Literalmente como um rei tem a sala do seu trono distante de onde os vassalos pariam seus filhos. O nascimento da Dona Graça foi um leve espirro para o estado. Daqueles bem baixinhos... E do nariz do estado saltou uma gota de muco transparente, quase invisível que dizia: Nome: Rute da Graça Nascimento Teixeira - CPF: 22.580.745-60. Dali para frente, tudo que a Dona Graça fez foi ter direito de esquecimento. 

Por situações constrangedoras e vexatórias como ser assaltada inúmeras vezes nas linhas de coletivo que usa diariamente. Por ter sido apalpada, beijada, lambida, cheirada sem desejar, mordida, empurrada, ter pego chuva, temporais, não uma vez ou outra. Mas mensalmente. Sempre que chovia na realidade. De fato, viver do jeito que a Dona Graça vive é depender da previsão do tempo para tudo. É ter pouco ou quase nenhum elevador. É não ter smartphone. É não guardar nenhum tipo de dinheiro ou posse. É receber para comer. Toda semana. Todo dia. Sem férias em "Jeri". Não. Para Dona Graça, o Haiti AINDA é aqui. Mas ela não compreenderia essa referência. Nem teria como. Música é luxo de final de semana e datas especiais. Música popular daquela que se faz antes de gravar discos e CDs. Música de quem não tem muita energia para gastar fingindo ser aquilo que não é. Música de quem escreveu seus lamentos no papel que tinha em casa. E cantou ouvindo amigos tocando violões e tambores na rua.

Dona Graça e suas canelas inchadas flutuam por aí. Não no corpo de uma mulher. Mas no coletivo das pessoas que entendem, que não é fácil existir enquanto outras pessoas discutem se tem direito de esquecimento. E essa Dona Graça raramente espera que alguém a salve das maldições que herdou sabe-se lá de quem.
Ainda que verídicas.