terça-feira, 30 de junho de 2020

Não sei, mas pode ser!!

Flutuam as palavras pela xícara de café. O tempo chuvoso colabora para molhar meu pé. Sobre o futuro? - me perguntam. Não sei - respondo, mas pode ser! Prefiro deixar escrito, acho sempre bom escrever. Um dia de céu vermelho nasceu hoje, tinha roxo e amarelo também. Eu deslizei pela rua junto com a água da chuva, ela correndo para o ralo. Eu pensando que nós ficamos mais ralos a cada dia que passa. E corremos lado a lado. Até que eu encontro um telhado. Mudanças de estação são sempre perceptíveis. Como mudar de barco ou de avião. Você para, desce, espera, sobe e segue. Eu imagino onde essa viagem vai acabar? Respiração sobre respiração, batimento por batimento, eu vejo em close minhas narinas puxando o ar com intensidade. A vida é correria. Respirar é necessidade. Você quer uma coca grande com essa porção de "verdade" - diz a atendente. Não sei - respondo, mas pode ser! Eu nem estou tomando coca, então vou ficar só com a verdade mesmo. Uma mordida depois me lembro do porque a "verdade" vir com uma coca. É para facilitar a ingestão. Verdades são amargas. A maior parte de nós nem as consome até o fim. Ingerimos a parte que nos interessa. Como uma personagem de uma história fantástica de Patrick Rothfuss, que mordisca gentilmente suas refeições como um animal assustado. E se você não conhece o trabalho do P.R., Clica aqui e desfaça esse terrível erro. Porque eles são geniais.
É ultrajante que eu fale de verdades amargas e use uma história de ficção para trazer o tema a tona. De fato é. Mas alguém muito sábio já disse que "é possível contar muitas verdades dentro das histórias de mentira". E é mesmo. Muitas das verdades da humanidade foram contadas através de contos mágicos, fantasiosos e ficcionais. E nem por isso, suas mensagens são menos verdadeiras. Uma narrativa, de um personagem, enfrentando um problema mágico, divino ou simplesmente sem explicação física real pode descrever muito bem a relação do ser humano com o seu mundo interno. Então se me perguntam: "- Você gosta de histórias de mentira?" a resposta tende a ser: "- Não sei, mas pode ser!!". Senhor dos anéis de Tolkien, Harry Potter da Rowling, Duna de Frank Hebert, Metamorfose de Kafka ou os Jatakas do Budismo. Todos eles sempre me ajudaram a explorar o interior humano.

Não como uma lanterna, talvez mais como uma vela mesmo... Uma vela frágil com a chama tremulando, e revelando a cada golpe de sibilo uma pintura diferente na pedra. Sentimentos ancestrais que ainda carregamos. Alegria e medo, nascimento e morte, caça farta e recesso de recursos, dias vazios e dias cheios. Dias esquecíveis e dias únicos. Lições rápidas e lições que demoram mais de uma vida para aprendermos. O louvor a natureza, ao sol, aos deuses e ao outro. O brilho nos olhos que só o amor nos dá. A boca seca que só a ira provoca. O ensinar aos nossos pequenos. O viver a família. Errar e acertar. Viver uma vida toda e deixar de vive-la. O começo e o fim. Os encontros e desencontros desse plano. As gravuras coloridas e as sem forma. As histórias ao redor da fogueira e os textos no mar digital da internet. A primeira mão que pintou a primeira figura na primeira caverna e o último dedo que digitou a última palavra em um teclado vindo de um futuro que ainda não existe.
É muita coisa.
Talvez seja coisa demais.
Talvez não.
Se alguém me perguntasse "está tudo bem?" a resposta seria:
- Não sei, mas pode ser!!

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Um texto para ler como se fosse a edição de um filme do Guy Ritchie.

Uma sociedade onde o estado de direito diz que uma pessoa deve ser escolhida aleatoriamente dentro do sistema de saúde público e privado, para ser morta. Todo dia. Em cada uma das cidades. De cada um dos países.
Nenhuma pessoa será escolhida nos dias em que as câmeras de segurança registrarem todas as pessoas utilizando chapéus nas via públicas. Qualquer tipo de chapéu.
Se uma só pessoa de qualquer cidade não usar chapéu, alguém é escolhido naquela cidade. O hospital é avisado do número do leito e do nome do paciente. Uma junta de funcionários do governo irá até as dependências da instituição. Munidos de drogas que farão a pessoa adormecer e durante o sono parar completamente. É rápido e irreversível.
A família é avisada com 6 horas de antecedência. É o tempo que tem para se despedirem. O corpo é cremado em todos os casos e uma urna com as cinzas é enviada ao local de residência da pessoa falecida.
Não usar chapéu não é contra a lei. Ninguém é multado por não usar. É uma opção individual.
Troque chapéu por máscara.
E a pessoa escolhida ai na cidade em que você mora, pela sua mãe.

terça-feira, 28 de abril de 2020

E A PRÓXIMA PANDEMIA?

Vai ver, que o planeta terra não é um lugar tão parecido com os programas de televisão assim... É lindo, não existe dúvida. Mas de certa forma é diferente desse subconsciente
coletivo que imagina uma "mãe natureza". Só porque a mãe de tudo que foi parido até hoje E NÓS CONHECEMOS, está viva ou um dia viveu nesse grão de areia que flutua pelo espaço.
Se a terra for uma mãe, é uma daquelas bem malucas. Meio surtada, mas que tem razão em surtar sabe? Sabe aquela mãe que pega 6 conduções para fazer o trabalho que ninguém quer por 10 horas por dia pra aturar um chefe escroto? E fez isso por umas 5 décadas que parecem ser 5 bilhões de anos. Então, essa é a "mãe terra". 
E ela tá de saco cheio, mas quem não estaria!?
A gente nunca limpa nada. Pelo contrário, a gente suja cada vez mais e mais. Quando ela cultiva alguma coisa, e a gente descobre que aquilo é gostoso, cheiroso ou faz bem a saúde, nós consumimos mais rápido do que ela pode plantar todas as vezes... Ou quando ela inventa de cozinhar algo gostoso e ter um dia agradável com todo mundo, a gente fica cutucando os amiguinhos, cuspimos no prato, fazemos birra sobre ela não ter cozinhado carne, reclamamos da temperatura e ainda fazemos xixi na frente das visitas. No chão mesmo, que a gente é bem nojento... Se a natureza fosse uma mãe, ela ia ser uma mãe bem pistola!

Eu não vou assumir essa persona da "mãe natureza", o meio ambiente é nossa mãe tanto quanto é o nosso coveiro:

Tu nasce do sistema. 
E esse mesmo sistema consome o teu cadáver.

Basta uma gripe diferente. Para esse jeito que a gente se acostumou a viver desmoronar. E o pior nem é isso, de verdade!! O pior é a forma como a gente recebe essa novidade. Pensando só nos próprios umbigos. Eu sinceramente não me espantaria se agora diante da VACINA PARA O COVID-19, alguns de nós dissessem coisas parecidas com:
"- O país X pode comercializar a vacina sim! Ele inventou ela, é de propriedade dele... Foi patenteado!"
Tu não estás cobrando pela cura, tu estás cobrando pela ausência da morte.
E acredita em mim, vai ter muita gente que não vai poder pagar. E só vai receber a vacina porque o governo fez política e o "Fulano de tal" que é presidente, imperador do lado negro da força, Rei, reencarnação de Buda ou Faraó, COMPROU NÃO SEI QUANTOS LOTES e vai salva-los. A partir de dezembro do próximo ano, porque demora pra chegar... Se a China conseguir entregar, claro.
Há algo de errado com essa forma de pensar. 
Em algum momento da nossa criação nós não aprendemos a lição de ajudar o próximo sempre que possível. Houve algum tipo de ensinamento perdido no caminho, a gente só pensa no nosso benefício. No que é bom para os meus. Na minha playlist, no meu perfil, na minha comida. Na minha vida.

Alguém escreveu um dia:
"Quem pensamos ser?
Que ousamos amar 

o que pode morrer..."

Não, eu não to propondo uma sociedade alternativa "Raul Seixas", cheia de duendes e unicórnios, com todo mundo cantando de mãos dadas e pés descalços... Nada disso.
Vou tentar por outro caminho: existe uma técnica Zen concebida pelo Mestre Hongzhi que trata a meditação como "apenas sentar". "Apenas sentar" significa meditar sem pretensão. Sem a expectativa de achar calma ou iluminação. Sem a necessidade de "se melhorar". Sem desejo, sem vontade, em busca de absolutamente nada. "Apenas sentar" buscar achar uma única realidade: o presente. Ele descreve a sensação de "apenas sentar" como um desfile das suas sensações, sentimentos e pensamentos. Em que podemos assisti-los ir e vir. O Mestre Hongzhi inclusive pontua que "o vento nos pinheiros e o reflexo da lua na água estão satisfeitos com a sua condição existencial, por isso nunca se perturbam...".

Não importa a sua orientação, a vida precisa ser mais importante. Toda ela. Saibamos disso e que possamos lançar esse olhar para dentro de nós mesmos. O dom da vida precisa ser maior do que todo o resto. E apoiar a vida além da nossa própria, é uma lição muito valiosa. Que nos permite encontrar o momento presente desse planeta. Que nos permite enxergar os dias além da nossa morte e o que deixaremos para trás.

Haverão outras pandemias, todos sabemos.
Mas pense a respeito: haverá mais vida?
Deveria...

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Platão digital e a caverna Corona.

O dicionário define a palavra "PERCEBER" como "tomar consciência de" ou "compreender". E já faz algum tempo que a gente decidiu que temos o direito de "perceber" o mundo de forma individual. Eu sou a favor dessa ideia, de verdade. Acho importante que cada um de nós tenha a possibilidade de exercer a própria soberania intelectual sobre as ondas que vem do mundo externo para o dentro de si.
Em "A caverna" Platão viaja na ideia de como alguns homens vivem cativos dentro de cavernas. E ali, "aprisionados" dentro de suas cavernas (que podem ser suas próprias mentes) esses homens vibram, choram e se refastelam com um show de projeções de sombras vindo da junção da caverna com o mundo exterior. Vou dizer isso melhor: as projeções são controladas por outros homens, as vezes elas não são controladas por ninguém... Pode ser um animal que cruza a boca da caverna durante o dia e projeta a sua sombra para dentro, sem nem querer. Ou alguém que propositalmente passa no mesmo local com a intenção de gerar a sombra para aqueles que estão lá dentro aprisionados. De uma forma ou de outra, os que vivem cativos no seu interior assistem a projeção. É o que eles fazem. Na história de Platão, um dos cativos é liberto e forçado a deixar a caverna e tem dificuldade em compreender o mundo externo. Ele se recorda dos seus companheiros de cativeiro e retorna para alerta-los, para liberta-los da prisão. Mas aqueles que vivem dentro dos limites da pedra zombam dele e terminam por mata-lo. 
Trágico. 
Ainda mais para um livro que foi escrito em algum momento a mais ou menos 2.400 anos atrás. E o pensamento humano ainda passa pela mesma mecânica. 
Por esses dias, o ministro da Saúde afirmou que espera que a ciência crie nos próximos meses, anos, uma solução mais elegante do que a quarentena para o Coronavírus. Que a solução que temos hoje de nos isolarmos e de usarmos pedaços de papel e pano para tapar as nossas vias respiratórias é bem rudimentar. E se tu pensar bem sobre isso, provavelmente vais entender: a gente criou energia elétrica, aprendeu a retirar órgãos de dentro de uns e colocar dentro de outros para deixar mais gente viva, viajamos até a lua dentro de uma dispositivo feito de metal e plástico, criamos uma rede digital que conecta praticamente todo globo por onde trocamos experiências, vendemos produtos e serviços, nos comunicamos como nunca antes... Mas diante de uma cepa de uma antiga doença o que podemos fazer? Nos entocarmos e taparmos nossas vias respiratórias como animais? É bem por aí... Nada do que a gente fez até aqui resolveu esse problema de imediato. Muito do que a gente fez até aqui como coletivo humano vai ajudar. Neste momento vários centros ao redor do planeta trabalham usando todos os seus recursos para que uma cura seja encontrada. E provavelmente será. Até lá, nós precisamos fugir. Porque existe algo nessa "floresta" capaz de matar muitos do nosso bando. 
O Homo Sapiens Sapiens é tido como uma espécie no topo da cadeia evolutiva. Inclusive, "Homo Sapiens" significa literalmente "homem que sabe...". A versão "Sapiens Sapiens" é tipo "o homem sabichão". Mas nem tanto... Aqui de dentro da minha caverna, eu tenho trabalhado, feito reuniões pela internet, conversado com a minha família, amigos e clientes. Tenho me nutrido, tentado me manter saudável, lido e assistido a filmes (que é uma das criações do Sapiens Sapiens que mais me fascina). Mas bem no fundo, o que eu e o mundo inteiro estamos fazendo é esperar. Esperar que os homens mais sabichões entre todos nós sabichões possam indicar uma saída.
Uma saída.
Uma forma de sairmos de novo da caverna.
E tomara que o mundo não seja o mesmo quando a gente sair. Tomara que o sol arda diferente na nossa pele e olhos. Tomara que a gente se olhe de outra maneira. Que a gente se trate de outra forma.
Platão escreveu em 380/385 AC: "Não são os olhos que veem, mas sim o que nós vemos através dos olhos..." 
Platão era sapiens sapiens. 
Vai ser legal se em algum ponto da jornada humana, todos possamos finalmente pensar nas palavras que ele deixou para trás...

quarta-feira, 1 de abril de 2020

COVID-19 e a lista de schindler.

Se você já viu o filme "A lista de Schindler" eu vou precisar de um pouco da tua paciência.
Se você não viu, você deveria ler isso e assistir o filme:

No filme, Oskar Schindler busca de várias formas diferentes usar da sua influência política e econômica para retirar judeus dos campos de concentração e emprega-los em sua fábrica. 
Em um dos momentos finais do filme, com o fim da guerra declarado, Schindler foge com a esposa na presença de todos que salvou. 1.100 pessoas, se não me falha a memória. Mas antes de partir, ele tem uma epifania:
"- Eu poderia ter salvo mais pessoas..." - ele diz.
"- O Senhor salvou 1.100 pessoas, gerações nascerão por sua causa..." - lhe responde Itzhak Stern, seu contador.
"- Esse carro vale pelo menos dez pessoas..." - continua - "... esse broche de ouro vale duas, eles me dariam no mínimo uma pessoa por esse broche...".

O personagem Oskar Schindler foi bastante questionado por historiadores alguns anos depois. Sobre a sua benevolência e sobre a suposta caridade que cometeu (ou não). Eu continuo gostando do filme mesmo diante de todas as novas vertentes que a história moderna nos trouxe.
Porque considero o longa um convite a reflexão. Um convite feito em 1993 e vencedor do Oscar de melhor filme de 1994. Mas que estranhamente nunca deixou de ser atual, e inclusive consegue se tornar até mais atual do que já foi...

"A lista de Schindler" sussurra aos olhos de quem a assiste que a vida é rara. O filme nos conta como cada ser humano é incrível dentro das suas próprias características e anseios. E que cada vida tem o direito de existir da sua forma sem nunca dar fim a nenhuma outra vida.
Não existe "escolha de Sofia" entre a vida e qualquer outra alternativa. Nem haveria como existir.

São tempos perturbadores esses que vivemos. Alguns especialistas dizem que essa é a maior crise desta geração. Ao redor do mundo os números crescem e poucos parecem perceber que bastou a natureza bater a nossa porta com seus tentáculos invisíveis e dizer:
"- Oi sumidos, lembram de mim?"
Para que absolutamente todo nosso modo de vida tivesse que ser repensado globalmente. E ainda assim, enquanto fazemos isso, contamos as semanas e os dias que levam para poderemos retomar o nosso velho jeito de existir. Esperando que em breve tudo isso seja só uma lembrança no passado...

Eu me vejo encarando a janela enquanto a noite puxa seu manto sobre o dia, pensando que o ser humano é uma criatura complexa.
Para alguns de nós, podemos valer a guerra entre as nações causando desolação e morte para centenas de milhares. Para outros o nosso valor é um simples broche de lapela.
A resposta aparentemente depende de quem pergunta e do índice Dow Jones do dia em que perguntou...

quinta-feira, 26 de março de 2020

V1D4 L0K4?


A cidade passa rápido, soldando prédios, placas, paredes, lombadas, casas e os poucos carros que ainda estão na rua, em um único e gigantesco objeto disforme. Dentro do capacete, é quente e úmido. A espuma rasgada do forro já pegou chuva, água de poças, sangue de quedas, poeira e muito suor. A viseira é turva como o vidro de uma janela que quase nunca é limpa.
"- A viseira é a janela por onde vejo meu mundo..." - ele pensa brevemente enquanto torce o acelerador da 125 cilindradas ouvindo o motor se esgoelar.
O vento balança sua roupa, desviando dos buracos no asfalto com a precisão de um artesão que costura com agulha e linha. Ele não erra nenhum ponto... Também pudera, já errou muitos. Essa é terceira moto. As duas primeiras foram vendidas peça por peça pela família, enquanto ele repousava em uma cama com pinos segurando os ossos no lugar. Venderam pra comprar comida, pagar conta de luz e água.
"- Placas e parafusos dentro da minha pele..." - ele se lembra cruzando a emenda da cabeceira de uma ponte no asfalto: TLOC-TLOC, fazem os pneus em alta velocidade cruzando a deformidade do piso - "... eu sou remendado como essa cidade."
No baú do moto, comida. iFood pedido por alguém, em algum lugar. Ele e os outros dois motoqueiros que trabalham lá se reúnem pra conversar. Enquanto se deliciam com os odores que brotam da cozinha do restaurante a cada movimento das panelas e frigideiras.
"- Entregar na chuva é uma merda..." - diz o mais novo.
"- Uma merda é passar fome cara, se liga!" - responde um deles.
"- iFoda!" - e os três caem na gargalhada. Ensopados enquanto se espremem sob uma marquise aos fundos do estabelecimento, fumando cigarros baratos.
A restaurante é do "Seu Inácio", ele é gente boa até. Sempre lembra a cozinha para dividir a comida do dia com os rapazes da entrega. Turrão, linha dura, mas com bom coração. O lugar se chama "Cucina di Mama".
"- Quer dizer "Cozinha da mamãe" noutra língua, ta ligado? - disse um dos motos quando ele começou a trabalhar lá.
Ele não tava ligado. Mas sabia que precisava do emprego. Inclusive, sua "mama" precisava que ele tivesse esse emprego. Dona Irací, doméstica a vida inteira. Mas antes disso, lavadeira, colhedora de campo, boia-fria. Hoje em uma cama. O médico disse que era cancer, tratou o que pode. Não consegue mais ficar de pé sozinha, tem dores que lhe causavam o choro. E ainda cuida dos dois netinhos enquanto todos outros trabalham.
"- Deixa o carrinho aqui do lado que a Darlene me ajuda a trocar né Darlene?" - diz a senhora de pele negra e olhos turvos leitosos, curtida pelo sol e rasgada pela vida.
Darlene é a mais nova da sua irmã, 6 anos. E já sabe trocar fraldas. Nunca teve boneca da Estrela. Também, quem precisa de boneca se você pode dar um bebê de verdade a uma menina? Claro, sempre sob a supervisão da Dona Irací:
"- Isso querida, agora torce pra lá... Assim... Puxa aqui ó e prende bem com o alfinete. Cuidado com o dedinho... Isso minha neta querida!" - diz a avó enquanto a menina sorri ao ser estimulada.
De volta na moto, sua mente divagou. Um carro passa buzinando:
"- SEU FILHO DA PUTA!" - gritam um dos jovens no seu interior.
Sem tempo pra olhar, desce do viaduto. Talvez tenha cortado eles, talvez tenha demorado pra acelerar, talvez o carro que eles tem corra três vezes a velocidade da minha moto, talvez sejam só uns babacas brincando por aí... Não importa. A buzinada fica pra trás, o viaduto também... A estrada agora o leva até um acesso, é um condomínio particular. Coisa fina.
Na portaria outra moto está pedindo entrada, enquanto o funcionário interfona a casa.
"- OOOh colega, espera ali do lado por favor..." - sinaliza o guarda armado com o dobro do seu peso apontando a direção com um cacetete e cara de nenhum amigo...
"- Não dá nem pra ficar chateado, os guarda tão fazendo o deles... To ligado que esse condomínio já foi assaltado e agora pra entrar aí é uma merda..." - pensa ele.
O boy na sua frente é autorizado e sai esgoelando a moto.
Ele se aproxima, tira um bilhete de um bolso e fala o endereço. Um dos guardas vai até o interfone enquanto o outro o examina de cima até em baixo. Sem encostar nele:
"- Pode tirar o capacete e abrir o baú aí amigão?" - diz ele dando um cutucão na moto.
Ele abre, fecha, é autorizado, voa até a casa, toca a campainha, gente feliz, música, vê crianças brincando na sala, luzes amarelas, ambiente aconchegante.
"- As casa aqui não precisa nem de muro..." - pensa ele.
Alguém passa pela porta aberta enquanto ele está fazendo a entrega e muda o rosto de um sorriso pra uma cara de "posso ser assaltada a qualquer momento por você...". Ele vê. Conhece bem, já viu a mesma cara milhares de vezes. Dá vontade de dizer que não quer assaltar ninguém, que quer comprar mais remédio pra dona Irací não sentir dor. Mas não diz. Se ele disser qualquer coisa fora do:
"- Boa noite, sua entrega, obrigado, boa noite!" - pode receber uma reclamação no aplicativo.
O pedido vai embora e junto com ele vai o único elo que existe entre a sua presença aqui e esse condomínio.
"- O destino da comida é essas casas bonitas, o meu não." Ele sobe na moto, a porta se fecha em silêncio. A música se abafa, a chave é torcida na ignição, o motor ronca e ele parte.
Alguns dizem obrigado, tem uns que dão até uma gorjeta. As vezes, o obrigado é tão valioso quanto o dinheiro. Tem quem nem olhe pra ele. Tem quem nem diga "olá". As vezes, parece que para alguns a sua presença incomoda. Depois de tanto tempo, na realidade, ele se convenceu de que seu lugar não é em qualquer lugar.
"- Tem lugar que não é para mim... Lugar de gente bacana. Eu vou até lá, entrego e saio fora... Mas nem eles me querem lá e nem eu quero ficar, tá ligado? Melhor assim...".
Um dia, alguém lhe disse que o mundo é grande. E todo mundo tem o direito de ser livre. Achou bonito, gosta de ouvir essas coisas.
"- Mas o meu mundo não é grande não. Meu mundo é do tamanho dessa cidade. Cortado por asfalto escuro e pontes de concreto. Meu mundo é murado e atrás dos muros pode ser que existe um mundo maior. Não sei. Vai ver eles me prenderam aqui pra eu entregar a comida e ficar quieto. Vai ver minha mãe entrou nesses muros procurando um bom lugar pra criar a gente. Um lugar longe da chuva e da rua... Vai ver, quando a gente morre consegue ver o mundo inteiro. Sei lá. iFoda" - ele sorri ao lembrar do colega dizendo.
E torce o acelerador da moto até que o grito do motor seja mais alto que a voz dentro da sua cabeça.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

É vida ou sonho?
Se me perguntam,
respondo:
Sonho não tem cheiro.
Não tem hora.
Nem forma ou norma.
Sonho é o desenho 
do desejo.
O reflexo do anseio.
Vida é a página do livro.
Virada 
dia 
após 
dia.
Sonho 
é a poesia.