quinta-feira, 26 de março de 2020

V1D4 L0K4?


A cidade passa rápido, soldando prédios, placas, paredes, lombadas, casas e os poucos carros que ainda estão na rua, em um único e gigantesco objeto disforme. Dentro do capacete, é quente e úmido. A espuma rasgada do forro já pegou chuva, água de poças, sangue de quedas, poeira e muito suor. A viseira é turva como o vidro de uma janela que quase nunca é limpa.
"- A viseira é a janela por onde vejo meu mundo..." - ele pensa brevemente enquanto torce o acelerador da 125 cilindradas ouvindo o motor se esgoelar.
O vento balança sua roupa, desviando dos buracos no asfalto com a precisão de um artesão que costura com agulha e linha. Ele não erra nenhum ponto... Também pudera, já errou muitos. Essa é terceira moto. As duas primeiras foram vendidas peça por peça pela família, enquanto ele repousava em uma cama com pinos segurando os ossos no lugar. Venderam pra comprar comida, pagar conta de luz e água.
"- Placas e parafusos dentro da minha pele..." - ele se lembra cruzando a emenda da cabeceira de uma ponte no asfalto: TLOC-TLOC, fazem os pneus em alta velocidade cruzando a deformidade do piso - "... eu sou remendado como essa cidade."
No baú do moto, comida. iFood pedido por alguém, em algum lugar. Ele e os outros dois motoqueiros que trabalham lá se reúnem pra conversar. Enquanto se deliciam com os odores que brotam da cozinha do restaurante a cada movimento das panelas e frigideiras.
"- Entregar na chuva é uma merda..." - diz o mais novo.
"- Uma merda é passar fome cara, se liga!" - responde um deles.
"- iFoda!" - e os três caem na gargalhada. Ensopados enquanto se espremem sob uma marquise aos fundos do estabelecimento, fumando cigarros baratos.
A restaurante é do "Seu Inácio", ele é gente boa até. Sempre lembra a cozinha para dividir a comida do dia com os rapazes da entrega. Turrão, linha dura, mas com bom coração. O lugar se chama "Cucina di Mama".
"- Quer dizer "Cozinha da mamãe" noutra língua, ta ligado? - disse um dos motos quando ele começou a trabalhar lá.
Ele não tava ligado. Mas sabia que precisava do emprego. Inclusive, sua "mama" precisava que ele tivesse esse emprego. Dona Irací, doméstica a vida inteira. Mas antes disso, lavadeira, colhedora de campo, boia-fria. Hoje em uma cama. O médico disse que era cancer, tratou o que pode. Não consegue mais ficar de pé sozinha, tem dores que lhe causavam o choro. E ainda cuida dos dois netinhos enquanto todos outros trabalham.
"- Deixa o carrinho aqui do lado que a Darlene me ajuda a trocar né Darlene?" - diz a senhora de pele negra e olhos turvos leitosos, curtida pelo sol e rasgada pela vida.
Darlene é a mais nova da sua irmã, 6 anos. E já sabe trocar fraldas. Nunca teve boneca da Estrela. Também, quem precisa de boneca se você pode dar um bebê de verdade a uma menina? Claro, sempre sob a supervisão da Dona Irací:
"- Isso querida, agora torce pra lá... Assim... Puxa aqui ó e prende bem com o alfinete. Cuidado com o dedinho... Isso minha neta querida!" - diz a avó enquanto a menina sorri ao ser estimulada.
De volta na moto, sua mente divagou. Um carro passa buzinando:
"- SEU FILHO DA PUTA!" - gritam um dos jovens no seu interior.
Sem tempo pra olhar, desce do viaduto. Talvez tenha cortado eles, talvez tenha demorado pra acelerar, talvez o carro que eles tem corra três vezes a velocidade da minha moto, talvez sejam só uns babacas brincando por aí... Não importa. A buzinada fica pra trás, o viaduto também... A estrada agora o leva até um acesso, é um condomínio particular. Coisa fina.
Na portaria outra moto está pedindo entrada, enquanto o funcionário interfona a casa.
"- OOOh colega, espera ali do lado por favor..." - sinaliza o guarda armado com o dobro do seu peso apontando a direção com um cacetete e cara de nenhum amigo...
"- Não dá nem pra ficar chateado, os guarda tão fazendo o deles... To ligado que esse condomínio já foi assaltado e agora pra entrar aí é uma merda..." - pensa ele.
O boy na sua frente é autorizado e sai esgoelando a moto.
Ele se aproxima, tira um bilhete de um bolso e fala o endereço. Um dos guardas vai até o interfone enquanto o outro o examina de cima até em baixo. Sem encostar nele:
"- Pode tirar o capacete e abrir o baú aí amigão?" - diz ele dando um cutucão na moto.
Ele abre, fecha, é autorizado, voa até a casa, toca a campainha, gente feliz, música, vê crianças brincando na sala, luzes amarelas, ambiente aconchegante.
"- As casa aqui não precisa nem de muro..." - pensa ele.
Alguém passa pela porta aberta enquanto ele está fazendo a entrega e muda o rosto de um sorriso pra uma cara de "posso ser assaltada a qualquer momento por você...". Ele vê. Conhece bem, já viu a mesma cara milhares de vezes. Dá vontade de dizer que não quer assaltar ninguém, que quer comprar mais remédio pra dona Irací não sentir dor. Mas não diz. Se ele disser qualquer coisa fora do:
"- Boa noite, sua entrega, obrigado, boa noite!" - pode receber uma reclamação no aplicativo.
O pedido vai embora e junto com ele vai o único elo que existe entre a sua presença aqui e esse condomínio.
"- O destino da comida é essas casas bonitas, o meu não." Ele sobe na moto, a porta se fecha em silêncio. A música se abafa, a chave é torcida na ignição, o motor ronca e ele parte.
Alguns dizem obrigado, tem uns que dão até uma gorjeta. As vezes, o obrigado é tão valioso quanto o dinheiro. Tem quem nem olhe pra ele. Tem quem nem diga "olá". As vezes, parece que para alguns a sua presença incomoda. Depois de tanto tempo, na realidade, ele se convenceu de que seu lugar não é em qualquer lugar.
"- Tem lugar que não é para mim... Lugar de gente bacana. Eu vou até lá, entrego e saio fora... Mas nem eles me querem lá e nem eu quero ficar, tá ligado? Melhor assim...".
Um dia, alguém lhe disse que o mundo é grande. E todo mundo tem o direito de ser livre. Achou bonito, gosta de ouvir essas coisas.
"- Mas o meu mundo não é grande não. Meu mundo é do tamanho dessa cidade. Cortado por asfalto escuro e pontes de concreto. Meu mundo é murado e atrás dos muros pode ser que existe um mundo maior. Não sei. Vai ver eles me prenderam aqui pra eu entregar a comida e ficar quieto. Vai ver minha mãe entrou nesses muros procurando um bom lugar pra criar a gente. Um lugar longe da chuva e da rua... Vai ver, quando a gente morre consegue ver o mundo inteiro. Sei lá. iFoda" - ele sorri ao lembrar do colega dizendo.
E torce o acelerador da moto até que o grito do motor seja mais alto que a voz dentro da sua cabeça.