terça-feira, 14 de agosto de 2018

Contos insólitos.

- Por exemplo, toda vez que um homem urina eu interfiro. Pouquíssimas mulheres se quer imaginam isso. Dá muito trabalho manter essa situação, mas eu faço questão de manter isso desse jeito a centenas de anos. Na verdade, isso me ajudou muito a decidir como seria o sexo de vocês... - me disse Deus.
- Como assim? Que merda tu tá falando? - perguntei.
- Não usa essa palavra na minha presença. - respondeu ele me encarando, meio puto.
- Ok, desculpa. Do que estás falando Deus? - rebati.
- Vou te explicar: - ele falou abrindo um sorriso empolgado e juntando as palmas das mãos - fiz o ser humano parecido comigo. Capaz de grandes feitos. E apesar de dar todas as dicas para vocês disso, é algo que homens e mulheres não percebem. Mas a capacidade de vocês para a realização de obras só é limitada pela sua natureza mortal. Tirando isso, nós somos idênticos. Eu sei que a diferença é grande, claro, eu não sou mortal e não existo da mesma forma que vocês. Fica tranquilo, eu sei que não entendes de fato o que isso quer dizer e tomei esse cuidado durante o processo. É importante que vocês realmente não compreendam a diferença entre o divino e o mundano. Isso os torna mais dóceis. Só que o que eu não sabia é que vocês se tornariam tão excessivamente "terrenos". Tão "carnais". E isso acaba os tornando mais agressivos. Eu queria ver o que ia acontecer, confesso. Foi divertido esperar esse resultado. E ao mesmo tempo, valeu a pena. Vocês simplesmente ignoraram toda capacidade que eu lhes dei e se fecharam em um físico absolutamente limitado. Vocês são como enormes águias selvagens que se recusam a sair de dentro das gaiolas com as portas escancaradas em que vivem... Vocês olham para o céu azul e pensam: "como eu gostaria de estar lá fora voando...". Mas simplesmente não se movem para fora da jaula... Chega a ser engraçado, as vezes.
- Acho que eu entendi... - respondi olhando para o nada.
Ele ficou me encarando, levou a mão a sua barba, a acariciando levemente e disse baixinho:
- Pode perguntar...
Eu movi meus olhos para os dele e percebi que seus olhos eram multicolores. Verdes, azuis, negros, marrons escuro e claro, ao mesmo tempo. Acho que eu vi uma galáxia dentro da pupila dele. Isso me facionou por alguns instantes até eu perceber que realmente queria fazer uma pergunta. Quando dei por mim, ele estava sorrindo um sorriso paciente e me encarando.
- Mas o que isso tem haver com urinar Senhor? - perguntei com o senho franzido.
Ele gargalhou:

- EXATAMENTE! Ahhh como eu amo vocês.... Que criaturas fantásticas. HAHAHAHAHA - gargalhava - Que criaturas maravilhosas. Perceba pequeno, acabei de lhe dizer que eu os fiz tão especiais quanto um ser vivo pode ser. De todas as formas vivas, vocês são a mais espetacular. Mais de 6 bilhões de pequenos Deuses com a força para fazer o inimaginável no mesmo planeta e vocês se preocupam com o que? Com papel higiênico! HAHAHAHAHHAHAHAHAHHAHAHHAHAHAHA. Eu já contei essa piada pela galáxia inteira e sempre funciona HAHAHAHAHAHAHA. Eu acho isso o máximo HAHAHAHAHAHAHA...
- Eu não entendi... - disse envergonhado.

- Eu sei HAHAHAHA, eu sei... - respondeu ele lavando as lágrimas dos olhos de tanto rir - eu sei que você não entendeu pequenino...
Fiquei lhe olhando. Ele continuou rindo um pouco e voltou a falar:
- Te explico... Nem sempre eu achei graça dessa situação. E fiquei realmente possesso quando os primeiros de vocês começaram a usar meu nome e imagem para fazer todos os absurdos que fizeram no passado...

- Tipo, a idade média? - perguntei.
- ISSO! Ótimo exemplo. A idade média me deixou transtornado. Admito. Quando vocês começaram a se doutrinar de formas tão absurdas, a se queimar em fogueiras "santas" - ele fez as aspas com os dedos - isso realmente foi demais para mim. A peste negra foi um golpe mais pesado do que eu imaginava, mas enfim, foi como eu escolhi na época. E não vou me justificar. O tempo passou e nós conseguimos sair dessa juntos. Vocês mudaram o foco absurdo do que era a religião e o conhecimento e eu peguei mais leve na minha ira. Mas é aí que está pequenino: ao mesmo tempo que vocês escolheram outro caminho, a idiotice da humanidade permaneceu ali. Latente, sim. Mas completamente viva. E ainda servindo de pano de fundo para quase tudo que vocês fazem. Essa energia imediatista que busca prazer, lucro e satisfação me incomoda ainda. Mas não tanto quanto a forma inicial dela... Muitos ainda morrem por motivos completamente humanos. Eu sei bem. Mas é diferente daquele primeiro pulso. Eu fiquei nervoso no começo. Mas depois de dois ou três séculos eu resolvi entrar na brincadeira. No começo eram todos os homens. Porque as mulheres já vem sofrendo demais pela presença masculina. Vamos ser sinceros: homens são escrotos. Então eu os escolhi exclusivamente para passar por esse processo. Pensei em simplesmente matar todos vocês e fazer com que as mulheres não precisassem mais de vocês para procriar a raça. Seria um pouco drástico. Então, voltei atrás e comecei a fazer todo homem do planeta se sujar quando urina. Quanto mais "importante" - ele fez as aspas de novo com as mãos - é o homem, mais ele se suja ao urinar. Algumas vezes, isso realmente interfere na história. Por exemplo, eu fiz Cabral se molhar todo ao mijar pela primeira vez na baia do Brasil. Ele quase caiu no mar HAHAHAHAHA. Foi uma cena e tanto, ele pendurado para fora do barco com aquele pintinho sacudindo ao vento. E aqueles primeiros cinco índios rolando de rir na areia, assistindo tudo. De fato, essa abordagem ajudou a entrada dos portugueses nas primeiras tribos. O que foi bem desesperador depois. Mas enfim. Foi como foi.
- Então toda vez que eu me mijo, a culpa... é tua!?

Ele abriu um sorriso ao dizer:
- Quase sempre. Ontem por exemplo, eu fiz o Trump mijar os próprios sapatos e molhar a calça logo depois. Ele fica enfurecido toda vez. Semana passada foi o Bolsonaro. Eu adoro fazer políticos se urinarem. É especialmente agradável, ve-los irritados.
- Mas porque?!? - perguntei de novo.

- Para que eles se recordem da sua humanidade. Para que eles se lembrem de que são feitos de carne e que a carne morrerá em um curto espaço de tempo.
- Cara, eles não entendem isso... - disse rápido.
- Entendem. Mas se esquecem rápido. Toda vez que eles se sujam de urina eles se lembram de que não são mais do que ninguém. Alguns até param de se irritar com o passar do tempo e pensam a respeito com paciência. Talvez seja a natureza divina da criação de vocês, talvez seja algo exclusivamente masculino, talvez eu tenha realmente deixado as mulheres com a melhor parte de ser humano. Eu ainda não entendi totalmente. Mas o fato é que fazer vocês se urinarem é algo simbólico que tem tradução prática. Sabia que depois de um tempo, muitos de homens começam a sentar no vazo para fazer xixi? Como as mulheres. 
- Não sabia... - respondi.
- Sim! E sabia que os homens que sentam no vazo para fazer xixi raramente fazem parte do grupo de homens que agridem mulheres de alguma forma? - ele perguntou.
- Não... - disse novamente.
- Pois é. Eu também não entendi isso completamente. Mas desconfio que vocês, talvez todos vocês, precisem de uma ajudinha para desenvolver mais sua empatia. Não só os homens, só que muitas mulheres já desenvolvem a empatia tendo filhos. Mas de qualquer forma, tenho pensando em fazer algo para elas também.
- Ok... Que loucura. Eu me sujei ontem fazendo xixi.
- Eu sei. - ele concordou.
- Só que seca rápido. Foram só umas gotinhas.
- Sim, eu sei. - disse ele sorrindo.
Fiquei em silêncio.
- Acho que eu vou ao banheiro agora.
Ele não disse nada, só continuou sorrindo.

Instantes depois eu sentei na privada para fazer xixi.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Aqui de longe, o infinito parece tão pequeno.

Minha mãe se chama Selma e nasceu em Florianópolis a quase 76 anos atrás. Ela conheceu meu pai e se mudou para Blumenau. Se casou, teve três filhos e se inundou dessa cidade. Se tornando alguém daqui com o passar dos anos, sem nunca ter deixado o sotaque de "manezinha" para trás...
Quando todos nós recebemos a notícia do nascimento da terceira filha da minha irmã quase do outro lado do planeta terra, ela mesmo afirmou que seu nome seria Erica. Uma criança saudável, linda e perfeita. Vimos todos juntos a pequena Erica dormindo no colo da mãe, ainda no hospital. E foi difícil segurar as lágrimas para mais de um de nós. Ficamos extasiados com as suas pequeninas mãos, seu rostinho perfeito e a sua carinha séria enquanto dormia o sono de quem acabou de chegar nesse planeta. E não está nem um pouco preocupada com as idiotices tremendas que nós os adultos estamos.
Quando desligamos, logo corri para a internet para pesquisar sobre o nome que a minha irmã e seu marido escolheram. Erica, vinda de Erarich. Que significa "Soberana águia". Aquela que comanda dos céus. Que persevera. Achei justo e muito bem escolhido. Fiquei pensando em rimas com Erica. Em desenhos com essa grafia. Em referências, em personagens, livros, em filmes com Ericas. Não sei, mas minha mente parecia querer se aproximar da pequena Erica. Nem que em sonho. Em desejo de boa vida. De bom futuro. De boa sorte.
Foi quando o marido da minha irmã avisou ao planeta que seu nome já não seria mais Erica. Que a sua terceira filha seria chamada Selma. Que eu consegui ver: minha irmã também se mudou para outro lugar. Se casou e teve três filhas. Uma mais linda que a outra. Só que dessa vez, nós somos aqueles que ficaram para trás.
Eu fico imaginando que é engraçado como a vida realmente se repete. A passagem para outro planeta, país, cidade... O laço matrimonial, o nascimento das crianças. E a saudade que fica tanto com quem vai, como com quem fica.
Voltei correndo para a internet, para pesquisar agora o nome da minha nova sobrinha e da minha mãe. E descobri que Selma significa "protegida por Deus", "capacete, proteção". Me aliviei, a pequena Selma já nasce com o nome de uma guerreira. Com o dna de quem é humilde e gigante ao mesmo tempo. E por uma linda escolha dos seus país,  já vem a esse mundo com uma armadura mágica que não tenho dúvida, vai lhe ajudar muito.
É engraçado como a saudade pode ser apaziguada com uma foto, um vídeo, um telefonema. E ver minha irmã feliz ao lado da sua família, das suas filhas e do seu marido, nos ajuda muito a aceitar a sua decisão.
Eu ligo para a Selma brasileira e falamos rapidamente:
"- Oi mãe!"
"- Oi querido."
"- Já tá sabendo da Selminha?"
"- Sim" - diz ela sorrindo.
"- Eai? O que tu achou?"
"- Aaaah eu gostei né... Erica também era bonito..."
"- Selma é lindo!"
"- Obrigado filho..."