quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Todo ciclo tem fim.

Ciclos sem fim são repetições. Todos os ciclos precisam de fim para se renovarem em novas coisas. E eu digo coisas porque preciso dizer. Queria mesmo era dizer pessoas, dias, jobs, sentimentos e comidas. Mas coisas engloba tudo isso e muito mais. Meu pé direito dormiu enquanto eu imaginava o que estou escrevendo agora. Agora ele formiga no sono dos pés que se imaginam pisando em campinas eternas de plástico bolha. Eu não sei o que os pés sonham quando sonham. Talvez nem sonhem. Talvez tenham pesadelos horríveis sobre ir a pedicures sinistras que os machucam enquanto dão risadas diabólicas.
Eu não me sinto ficando para trás sendo eu mesmo. Só não consigo me imaginar sendo o que o mundo quer. Não faço por mal, é só porque se eu não for fiel a mim mesmo, não vou conseguir ser fiel com mais ninguém. E trocar toda essa minha idéia desenhada na minha cabeça por dinheiro, parece uma coisa muito imbecil para se fazer. Principalmente quando eu tiver 198 anos e estiver morrendo. Aí, de certo, que eu vou desejar ter esse tempo que tenho agora.  E ter feito com ele o que estou fazendo... Não. A vida é muito curta para ser só mais um idiota. Já tem idiotas demais nesse barco. A gente precisa ser diferente. To falando de violão solto. De cigarros longos. De sorrisos com lágrimas nos olhos. De arrepio na pele. De fotos eternas. De noites com lindas alvoradas. De verdades escritas. Lidas. E faladas. Um bem-te-vi pousou no predio do lado do meu. E gritou que bem me viu. Bem vi ele também. Só não gritei. Os carros correm lá embaixo enquanto a fumaça sai pela xícara do meu café. Uma das vantagens de se escrever o que se sente é não precisar nunca fazer um novo parágrafo. Não é preciso respeitar essa regra. Porque quem está escrevendo, tem a certeza de que novos parágrafos sempre vem. A vida é assim. Como o fim dos ciclos que não são eternas repetições. Entende?
Sempre existem novos parágrafos.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Morre Ruan Bruno Gomes Nunes, 2 anos de idade. Vitima de uma bala perdida no Rio de Janeiro.

O Rio de Janeiro está em dezembro. É época de Natal, presentes e papai Noel. Pergunta pro Ruan o que ele quer ganhar. Ele não vai te responder. A bala que era perdida encontrou alguém. E foi ele. Bala é coisa fria, metal duro. Projétil. É como uma abelha cheia de raiva, voando pelo mundo. Pode ser que ninguém a encontre ou pode ser que seja diferente. O pessoal da UPP, da unidade de policia pacificadora, não pacificou. Ou sei lá, pacificou demais. Disseram que bala veio "lá de cima do morro". Do pessoal do tráfico. Da droga. Da bandidagem. O pessoal da pacificação, não revidou o tiro. Também puderam. Nem viram. A bala veio perdida. O Ruan tinha dois anos, tava lá deitadão. Dormindo provavelmente. Curtindo o teto do quarto. Dentro da casa da mãe. A bala perdida o encontrou. E pronto. A mãe dele apareceu no jornal chorando, pedindo justiça. E será que vem? Será que tem? Será que muda alguma coisa? O Ruan não vai mais chorar de madrugada. Agora ele virou um post triste no facebook. Virou uma memória dolorida. Uma cicatriz, dessas que só quem sofreu sabe como é levar até o fim da vida. E não te engana não caro(a) leitor(a). Talvez amanhã, sejas tu a encontrar a tal da bala perdida. Talvez amanhã seja o teu filho que entra nesse beco sem saída. Amanhã, pode ser tua mãe. Aquela do bairro pobre, das seis pegadas de onibus no dia. A emprega domestica que tu não sabes o nome, mas chamas de Maria. Amanhã, pode ser, que o tiroteio comece até mais cedo. Eu se fosse tu, nem dormia. Só corria. Eu se fosse tu ia pra longe desse medo. Pergunta pro Ruan, o que o papai Noel trouxe pra família dele. Pergunta pra quem fica, qual é a cor desse desenho....

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Ânglóriath.

Passos no escuro.

O sol nascia entre as montanhas. Riscando o céu com manchas amarelas e vermelhas. Estava frio e estaria frio por mais algumas horas. Os antigos diziam que um sol vermelho representava o sangue que seria derramado no decorrer do dia. Uma mensagem, talvez.
"- Histórias para crianças..." -  pensou torcendo os dedos sobre o cabo da sua espada - "Nada mais...".

Um mensageiro havia chegado a Thebarh, a cidade sobre a cordilheira. E foi assim que começou. Ele trazia uma mensagem dos Reinos Baixos. Pedindo que o conselho se reunisse para recebe-lo.
Por meses, o clérigo da cidade real trocou cartas com o conselho de Thebarh dando boletins sobre a saúde do Rei. Corvos chegavam a cada três ou quatro dias trazendo nas patas, pequenos cilindros de metal. E lá de dentro eram lidas as curtas cartas que diziam:

"- Febre que não diminui. Continuo sangramento nasal. Ausência de força física."
"- Diarréia, pústulas de sangue e perda parcial da visão" - e todos tiveram certeza de que o trabalho estava concluído.
"- Melhora considerável. Ausência total de febre e feridas. O Rei está bem..." - foi a última carta recebida a pouco mais de dez dias...
O Rei devia morrer. 

Mas algo parecia estar lhe dando mais saúde além do que o efeito do veneno que era adicionado a meses no seu dejejum matinal.
A apenas 3 dias, o conselho terminava uma reunião quando Kalanthir, o Senhor da Guerra de Thebarh, ergueu o braço abruptamente dizendo:
"- Precisamos enviar nossos arcos aos artesãos do lago. Precisamos de novas peças."
"- Não temos dinheiro para pagar por novos arcos" - lhe respondeu de pronto o homem gordo vestido com roupas excessivamente coloridas que respondia por Gorth, o Senhor do Tesouro.
"- Pois bem, em alguns meses, quando o inverno terminar, não conseguiremos atirar flechas a mais do que 2 metros além das muralhas nobre amigo... Nossos arcos são velhos e desgastados. E o tempo os faz ficar mais secos a cada dia. Muitos já se partiram e até soldados foram feridos... O que devo dizer a minha majestade quando me for questionado o porque dessa situação?"
Houve um silêncio incomodo a mesa.
"- Envie metade dos arcos para os artesãos, a outra metade fica para proteger as muralhas... Precisamos de proteção." - respondeu Gorth.
"- A neve está aos nossos pés Gorth. Ninguém sobe para Thebarh durante o inverno. Enviamos os arcos agora e as flores da primavera nos trarão novas armas... Acredito que muitos dos arcos só precisam de novas cordas e mais verniz... Serão poucos os que fim é inevitável..."
"- Os arcos são importantes para nossa defesa Senhor Tesoureiro" - disse calmamente a voz do homem mais velho ali sentado. Sir Penphi o Cavaleiro dourado, Senhor da guarda Real - "E o inverno realmente nos alcança. Nada jamais atacou Thebarh no inverno...".
"- Além disso, um carregamento de carroças deixará a cidade em poucos dias, indo para o Lago. Tenho certeza de que Sir Arthie pode negociar bons preços com o chefe dos artesãos... Considerando principalmente o seu apetite por moedas..."
Houveram risos educados. Sir Arthie era o filho mais velho de Gorth. E um soldado exemplar que tomou um rumo diferente do pai.

"- Enviarei alguém com carroças para buscar os arcos, Senhor Kalanthir..." - respondeu Gorth em ton monocórdico. Sem retirar os olhos de Sir Penphi.
Kalanthir saboreou a pequena vitória por alguns instantes antes de dizer:
"- Excelente. Para poupar trabalho do seu filho, enviarei alguns homens para juntos defenderem a caravana...."
Gorth acenou com a cabeça concordando, enquanto franzia a testa para se levantar. Movendo o corpanzil pela sala, inchado como um boneco de cera que se nega a derreter.
Estava feito.

Os arcos poderiam ser trocados em duas ou três estações... Mas nenhum dos homens presentes, era louco o suficiente para questionar as informações que Kalanthir trazia.
Dois dias depois, duas carroças e mais 10 soldados montados, desciam as cordilheiras com arcos como carga. Sir Arthie, comandava a caravana.

De volta as muralhas de Thebarh. O sol nascia vermelho enquanto ele se esgueirava pelas ameias. Sorrateiro como um gato negro na noite escura. Se movia em silêncio controlando a própria respiração. Dois soldados montavam guarda enquanto ele se aproximava.
"- Haverá neve ainda hoje..." - disse o mais alto.
"- Eu odeio neve. É terrível guardar essa muralha no frio...." - respondeu o segundo.
E começaram a se mover.
Ele esperou até o último momento e então deslizou entre duas ameias para fora da cidade. Se segurando pelas mãos na borda lisa. Suas luvas de malha de ferro o permitiam fazer isso. Ele grudou na pedra como um inseto que sobe paredes fica grudado. Com os pés balançando no vazio que seria cair. Sentindo o vento empurrar seu corpo. Ainda assim, silencioso.
"- Vamos logo comer algo, o próximo turno já deve estar lá embaixo..."
"- Pão duro com carne de porco quente, eu aceito, por favor..."
"- Você está ficando gordo."
"- E você careca, qual o problema?"
"- hahaha filho de uma cadela..."
Conversaram os homens que passavam por ele, sem nem lhe ver ali pendurado.    

Poucos instantes depois, estava no pé da Casa Torre. Onde os aposentos reais ficavam.
A porta estava trancada por dentro e ele sabia que além daquelas tábuas de madeira haviam pelo menos dez homens armados de guarda. Homens diferentes dos que faziam a guarda das muralhas, homens de Sir. Penphi.
Mas usar a porta para entrar, nunca foi seu objetivo. Subir as muralhas pelo lado de fora da Casa Torre era praticamente impossível. Ali as pedras foram colocadas em angulo negativo. Viradas para a cordilheira. Se o vento do inverno não o carregasse
, com certeza ele seria avistado por algum dos guardas. Por isso, escolheu subir por fora, passar pelas muralhas e chegar até aqui.

"- Agora vem a parte divertida..." - pensou, colocando as manoplas de metal com ganchos de escalada. Suas botas também recebiam correias com pontas sobre os dedos dos pés. Lâminas finas mas extremamente resistentes. Forjadas por artesãos do povo das vilas altas. E usadas para resgatar cabras e colher ervas raras no cume das montanhas. Ele havia treinado. Repetido, novamente e repetido de novo. E foi assim que firmando seu pé direito no vão entre os tijolos que ele deu o primeiro impulso para cima. Firmando os ganchos das mãos nas saliências da pedra.
"- Eles saberão que alguém subiu aqui... As marcas na pedra serão vistas... Mas eu já estarei longe. E Elisabeth estará comigo. Distante de tudo isso..." - pensou já passando o segundo andar da Casa Torre. Uma lufada de vento o empurrou com força para a direita, precisou de toda força dos seus braços e pernas para se aproximar da parede e esperar a pressão passar.
"- Maldito vento!" - pensou e quase falou. Mas manteve os dentes cerrados com força.
Alguns instante e pode prosseguir. Desviando as fendas de observação da torre. E indo cada vez mais para cima. Em algum momento, pensou ter ouvido alguns guardas conversando. E ficou parado, pelo temor de ser ouvido quebrando as juntas das pedras com seus ganchos e lâminas. Aguardo e assim que eles se foram, continuou.
Ouviu uma ave gritar. Havia um ninho a alguns metros a sua esquerda, em uma fenda de um tijolo quebrado. Era um trinca-ferro, ele sabia. O único pássaro forte o bastante para fazer o ninho na pedra. Quebrando as rachaduras com o bico até partir o tijolo.
"- Ele defende a sua família. Eu respeito isso... Não tenho assuntos com você pequeno amigo... Estou só de passagem..." - pensou enquanto deixava os gritos do pássaro para trás. 
Mais alguns metros, e o mundo lá embaixo parecia um formigueiro. Pequenas pessoas, com seus pequenos afazeres. Correndo para cima e para baixo. Erguendo baldes de água dos poços. Levando cavalos para pastar e beber. Apressados com cestas cheias de pães quentes recem assados. Carregando carnes salgadas para as cozinhas. Um dia como tantos outros para todos eles.
Ali ele estava. No último andar da Casa torre.
Havia uma varanda a menos de dois metros acima da sua cabeça. Dentro dos aposentos reais não haveria nenhum guarda. Mas provavelmente algum vassalo. A Casa torre não tinha latrina, os dejetos reais eram recolhidos três vezes ao dia e todo quarto era limpo assim que o rei saísse. Se bem que ultimamente ele saia pouco, a doença o havia debilitado.
Por isso, escolherá a primeira hora da manhã.
O rei deveria estar dormindo.
E ninguém o acordaria a não ser por uma ordem extraordinária.

Movendo-se muito lentamente, ele foi para a esquerda e contornou a varanda. Subindo logo em seguida. Fez tudo o mais silenciosamente que pode. Até atingir a beirada de pedra. A porta estava fechada, mas sabia que isso não era um problema. Suavemente deslizou para dentro da sacada. E se deu um instante de paz. Havia conseguido. Soltou as manoplas dos pulsos e os deixou ao chão, sua utilidade terminava aqui. Para descer, seria outro caminho...  De um dos bolsos da sua roupa, ele retirou duas longas ferramentas de metal. E se aproximou da fechadura. Deslizou para dentro uma linha longa de ferro retorcido e depois outra. E as moveu suavemente. Um instante e ouviu o mecanismo da porta se abrindo. Com uma mão guardou as ferramentas de volta aos bolsos, enquanto com a outra puxava uma lâmina com meio metro de aço. Pressionou a porta com a mão das ferramentas e abriu uma fresta. O quarto estava silêncioso. E o rei estava deitado na cama, respirando de forma cadenciada sob o dossel. Um passo, seguido de outro e estava dentro dos aposentos, já encostando novamente a porta. Sentiu o suor lhe escorrer o rosto. "- Calma, devagar..." - disse a si mesmo.
Agachado, continuou a caminhar, passos curtos e silenciosos. Abafados pelo estofamento inferior de suas botas. Botas de ladrão como eram conhecidas. Se algum guarda o tivesse parado, na estrada para cá, com essas botas, ele sabia que seria preso. Mesmo que as tivesse só carregando em uma carroça. Não há razão para um homem usar botas com estofamento, a não ser, não querer ser ouvido ao caminhar. 
A quase três década atrás, ele lembra de ouvir um conselho:
"- O mundo é maior que um castelo meu filho. Nunca se esqueça, o mundo vai além das muralhas dos castelos de todos os senhores do Reino..."
Cresceu aprendendo que tudo tinha dois lados, ou até mesmo mais. E sabia que pelo pagamento que receberia, muitos outros receberiam muito mais. 
"- Ainda assim, eu terei Elisabeth comigo... Eles não.".
Na altura da cabeceira da cama, ele parou. E suspendeu os joelhos suavemente até poder ver o rosto real. Passou a mão pela coberta de pele que esquentava o Rei a puxando para baixo. Delizou sua lâmina logo abaixo do queixo dele. Com força o suficiente para sentir o cabo tocando algum osso durro dentro da garganta real. Mais sangue do que ele gostaria jorrou. E junto com ele, um som abafado por sua outra mão. Ainda assim, mais alto do que deveria ser.
"- Uuuuuaaaaaargfffffh" - gemeu o rei tentando se sentar e se cortando ainda mais. Enquanto debatia a cabeça e abria ainda mais o corte.
A porta do quarto se abriu com um guarda de corselete de metal e espada em punho dizendo:
"- Majestade? O que... MALDITO"enquanto corria em direção ao homem agachado ao lado da cama do Rei.
Tudo foi muito rápido. Muito mais rápido do que achava que seria... Largou a espada na cama e rolando puxou duas adagas das próprias costas. Desviando do soldado e ficando de pé. Enquanto girava viu o corpo convulsivo do Rei se debatendo. Espirrando sangue para todos lados. Foi quando um segundo homem de armas passou por seu ombro, de espada em punho cravando a arma no peito do primeiro soldado.

"- Me errou....???"- pensou em um segundo.
Mais sangue, tudo era vermelho. O corpo do soldado caiu sobre o corpo do rei. Quebrando cama e dossel com o impacto. 
Houve um momento para olhar pelo corredor e ouvir gritos vindos dos andares inferiores.
Voltou o olhar para o quarto, o soldado estava na sua frente. Se virando e dizendo.

"- Me dê uma adaga!".
"- O que...? Quem é você...?" - perguntou atordoado, calculando o movimento que faria para tentar pular pela sacada novamente. 
"- Como? Porque?" - conseguiu pensar.
"- Em apenas alguns instantes, mais de dez homens entrarão por essa porta e te matarão. Aqui ou lá embaixo. Me dá uma adaga, e foge." - disse o soldado - " Agora Anglóriath!".
Ele ficou em silêncio. O homem lhe olhava profundamente nos olhos. E continuou.
"- ouro para todos nós aqui. E isso podia acontecer. Só entrega a adaga e segue teu plano!" Com menos de um instante de demora, a adaga voava nos pés do soldado.
Enquanto ia até a porta da varanda, o viu caminhar até o outro lado da sala, levantar uma das mãos e atravessar a lâmina na palma, lentamente e fazendo uma das piores expressões de dor que ele já ouvira. Parado na porta da varanda, virou novamente a cabeça para olha-lo e viu o soldado sentando e enterrando a mesma lâmina na própria coxa direita. Mordendo os lábios em silêncio absoluto. E lhe devolvendo um olhar de ira inesquecível.
De dentro da mochila, retirou uma corda com um gancho na ponta. O gancho era uma lâmina dobrável. Desdobrou-o e o firmou na borda do parapeito da sacada. Atirou a corda que estava presa ao vazio das cordilheiras, observou uma única vez, bateu suas luvas uma na outra e deslizou segurando a corda com as duas mãos.

Desceu como uma aranha. Como uma cobra. Como uma sombra. Com a habilidade de quem já repetiu esse processo inúmeras vezes. Não havia se afastado nem dez metros quando viu a primeira cabeça surgindo do alto da varanda.
"- ARCOS!" - gritou a cabeça - "ARCOS AGORA! ARCOS!"

Continuou descendo em frenesi absoluto. Mão após mão. Forçando os braços dobrados juntos ao corpo. Com as duas pernas regulando a velocidade como um freio. Enroladas na corda. Sentia suas panturillhas queimarem com o atrito. Não sentia nada nas mãos, mas sabia que elas também se machucariam. Era alto demais. Um percurso longo demais.
"- Queimado, mas vivo. Filhos da puta!" - rangeu os dentes pensando. Viu mais três cabeças aparecendo na varanda. Uma delas soprou um corno de batalha.
"-uuuuuuuuÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓ" - fez o berrante.
Lá embaixo os homens se moviam como formigas apressadas. Dessa vez, precisava descer pela cordilheira. Pelo menos quatro vezes mais muralha que a rota inicial.
"- Elisabeth... Elisabeth...." - continuava pensando.

Se aproximou da muralha quando pensou sentir a corda balançando. Como se algo a tivesse atingido firmemente.
"- Eles me querem, nem que seja morto." Soltou uma das mãos da corda e a enfiou na mochila, precisamente onde guardava as lâminas de escalada. Onde elas estariam? Balançou mais um pouco. Pendurado por uma única mão cansada. Sentiu o suor escorrendo, enquanto viu o trinca-ferro alçando voo para longe do ninho.

"- Minha família..." - pensou.
"-.... voe e avise a minha família...".
Em um instante, um piscar de olhos. Sentiu a mão soltar da corda. Pensou ser isso. Mas sentiu o baque do próprio braço junto ao abdomem, e começou a cair suavemente. Suas costas se viraram para o chão, seu rosto para o céu. Seus olhos se abriram. Viu a corda se dobrar em um grande círculo.  
"- Eles a cortaram!" - pensou.
Bateu os dois pés contra a pedra da torre, já havia visto homens caindo de montanhas antes. Muitos morriam pelos sucessivos impactos contra as rochas.
Se afastou gradativamente da Casa Torre. Suave, sentindo o vento em suas costas.

Fechou os olhos. Ouviu os homens gritando. Ouviu outros berrantes.
"- Elisabeth. Kantish. Meus amo..." - sorriu.
E o chão o abraçou.    

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"- Preciso lembra-los senhores, de que o Rei tem um filho em idade quase adulta?" - gritou Sir Penphi, fazendo com que toda a sala se calasse - "Eu preciso lembra-los, de que esse conselho jurou individualmente e coletivamente, perante Deuses e homens que protegeria a coroa contra qualquer dano e a qualquer custo?"
Houve silêncio.
O cavaleiro dourado sempre fora obstinado.
Desde que recebeu o grau de cavaleiro da acadêmia e tornara-se Sir Penphi o Cavaleiro Dourado, Senhor da guarda real, ele nunca havia visto uma crise como essa. O Rei estava morto. O impossível acontecera. Haviam se passado dois dias e Sir Penphi não dormira por nem um instante. Ele comera. Havia pedido somente alguns momentos de privacidade, quase no meio da primeira madrugada, para usar os baldes da latrina. Fora isso, ele estivera ali. Procurando, ordenando, questionando e principalmente assegurando-se de que nenhum golpe seria consolidado. E eles haviam tentado.
As duas casas mais fortes do Reino, enviaram pedidos ao conselho para que um regente fosse nomeado. Colocando seus nomes em evidência, "... a favor de restaurar a paz e o futuro do reino...". 
"- Abutres." - reservou-se Penphi.
O corpo do Rei fora limpo, costurado e vestido. Colocado em um altar no antigo templo de Khún. Haviam Deuses menores, que eram venerados por alguns, mas todos que acreditavam em algo, acreditavam em Khún, o primeiro. O criador. Mais velho que o próprio tempo. O templo ficava no alto da cordilheira. E fora esculpido na pedra da montanha. No seu interior, bancos de madeira vermelho sangue circundavam um altar com uma mesa de pedra no meio. No teto do salão, haviam diversos buracos disformes na pedra, que com o passar do tempo foram cobertos por vidro grosso e quase transparente. Ali eram feitas as cerimônias reais. Casamentos, celebrações e também funerais. O corpo seria velado até que o alto sacerdote determinasse que fosse queimado e as cinzas jogadas ao vento. 
Bem abaixo do templo, de volta a reunião do conselho real, os homens ouviam Sir Penphis falar:
"- Eu declaro aqui, traidor qualquer um, QUALQUER UM que se opor a colocar a coroa na cabeça de Sir Elioth..."
"- Ele ainda não tem idade Penphis!" - retrucou Gorth o Senhor do tesouro.
"- Ele terá idade no próximo verão, e você sabe disso Gorth!" - disse de pronto Sir Penphi apontando um indicador no rosto do homem gordo. "- No passado, homens mais novos sentaram no mesmo trono!"
"- Calma Cavaleiro Dourado! Calma, nobres senhores..." - se levantou Kalanthir com tom apaziguador. "- Sir Elioth deve estar pronto, falta tão pouco para a idade certa que ninguém se importará... O Rei está morto, deve sempre haver um Rei! Lembram-se?"
"- Deve sempre haver um Rei..." - repetiu Gorth olhando para as próprias mãos inchadas e concordando com a cabeça.
(continua)