segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Oi filho.

Esse é o primeiro texto que eu escrevo aqui desde que você nasceu. E se tem uma coisa que a tua chegada me ensinou logo de cara é que não existem dias sem importância. Todo dia vale mais que um diamante. Pode parecer piegas (e é, eu sei), mas existe muita beleza em todo tempo que temos aqui. Tu completou 4 meses a algumas semanas, e desde que tu chegou todo dia vimos algo novo em ti e na gente. Não é fácil e lindo como no cinema, mas é fácil e lindo de fato. Não existe preço alto demais para ver teu sorriso. Não existe sentido mais nítido do que tu. E não existe caminho para a nossa felicidade que não passe por ti. Simples assim. Sem ser nada simples...

O futuro pode ser bem nebuloso hoje. Tu nasceu no meio do mandato do presidente Jair Messias Bolsonaro. E na época que vivemos, o comportamento das pessoas é bem pouco humano. Todo mundo tem certezas demais. Todos sabem quem é o culpado e em 99% das vezes é a outra pessoa. O mundo tem sido um lugar mais hostil do que eu gostaria de te apresentar. Por isso procuro sempre te mostrar paisagens bonitas, sorrisos e canções felizes e eu e a tua mãe nos esforçamos muito para que haja sempre carinho e proteção ao teu redor. Ser teu pai é a maior responsabilidade que já tive na vida. Enquanto sinto toda essa vontade de vida ao meu redor, percebo também o medo que nos assombra pelos vãos dessa fortaleza que nos estamos batalhando para construir. Essa, inclusive, é uma das nossas muito lições aprendidas: o medo não nos impede filho. A vitória do medo é nos paralisar e diante do terror do desconhecido e dos olhos gelados da incerteza, nossa batalha é a de não pararmos. E é a de continuarmos nos movendo, respirando e com corações pulsantes. No rumo do que acreditamos ser o melhor para ti. Certos ou errados? O futuro nos contará. Podemos errar, mas erraremos tentando ao máximo acertar.

Existimos flutuando sobre o tempo. E seguimos flutuando depois de existirmos. Até desaguarmos no mar e esperarmos a hora de evaporar para retornarmos ao rio e novamente flutuar.

Você acabou de começar a descer a corredeira. E nós estamos aqui contigo. E eu acredito que tendo conhecido o amor que sentimos por você, tu nunca estarás sozinho. Mesmo quando chegar a nossa hora de desaguar e a tua de continuar...

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Quem tem direito de esquecimento?

Algumas das pessoas que lerem isso, sem dúvidas. Mas a grande maioria esmagadora, não!
Direito de esquecimento é pela regra:  o direito do indivíduo não ser lembrado por situações pretéritas constrangedoras ou vexatórias, ainda que verídicas. 

Talvez pudesse ser o direito da Dona Graça, mulher negra, mãe de quatro crianças de dois pais diferentes, empregada doméstica sem registro formal a quase 40 anos, dona de uma tosse que "daqui a pouco passa" mas já dura meses e não faz a mínima ideia de em quem votou na última eleição para prefeito e vereador. Desconfia que seja naquele rapaz jovem charmoso que o pastor mandou.

Não, a Dona Graça não precisa pedir direito de esquecimento. O país já a esqueceu. Na verdade, o país só ouviu um sussurro do que foi seu nascimento. Literalmente como um rei tem a sala do seu trono distante de onde os vassalos pariam seus filhos. O nascimento da Dona Graça foi um leve espirro para o estado. Daqueles bem baixinhos... E do nariz do estado saltou uma gota de muco transparente, quase invisível que dizia: Nome: Rute da Graça Nascimento Teixeira - CPF: 22.580.745-60. Dali para frente, tudo que a Dona Graça fez foi ter direito de esquecimento. 

Por situações constrangedoras e vexatórias como ser assaltada inúmeras vezes nas linhas de coletivo que usa diariamente. Por ter sido apalpada, beijada, lambida, cheirada sem desejar, mordida, empurrada, ter pego chuva, temporais, não uma vez ou outra. Mas mensalmente. Sempre que chovia na realidade. De fato, viver do jeito que a Dona Graça vive é depender da previsão do tempo para tudo. É ter pouco ou quase nenhum elevador. É não ter smartphone. É não guardar nenhum tipo de dinheiro ou posse. É receber para comer. Toda semana. Todo dia. Sem férias em "Jeri". Não. Para Dona Graça, o Haiti AINDA é aqui. Mas ela não compreenderia essa referência. Nem teria como. Música é luxo de final de semana e datas especiais. Música popular daquela que se faz antes de gravar discos e CDs. Música de quem não tem muita energia para gastar fingindo ser aquilo que não é. Música de quem escreveu seus lamentos no papel que tinha em casa. E cantou ouvindo amigos tocando violões e tambores na rua.

Dona Graça e suas canelas inchadas flutuam por aí. Não no corpo de uma mulher. Mas no coletivo das pessoas que entendem, que não é fácil existir enquanto outras pessoas discutem se tem direito de esquecimento. E essa Dona Graça raramente espera que alguém a salve das maldições que herdou sabe-se lá de quem.
Ainda que verídicas.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Olhos negros.

Seus olhos negros são tão negros.
Ninguém pode negar.
A noite teme a escuridão que brota da tua vista.
E o sol não nasce se tu o espera. Ele se recusa.
É tão escura a tua pupila,
que ela não dilata:
ela aspira como um buraco negro.
A vida e as galáxias.
O vento e o pudor.
A luz e o amor.
Nada resiste,
nada sobra.
Além das dobras 
do negro tão negro 
dos teus olhos negros.