quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Mokbat

foto: @mirekis7

Não é incomum ouvir com a chegada do inverno, ao redor das fogueiras, no fundo das tavernas ou das bocas enrugadas das velhas curandeiras sobre a lenda do Mokbat. De fato, muitas das vezes que ouvi alguém contando sua história, presenciei um certo desconforto sobre a história ser tratada como lenda. Existem os que dizem que Mokbat está lá para os olhos que quiserem ver. As histórias dão voltas e mudam datas e até nomes, mas nenhuma delas foge do grande animal com tromba de pedra que sustenta o penhasco. Alguns o chamam de mamuthis, elefante, em alguns casos usam o nome Lyuba.
No inverno passado uma senhora que acompanhava uma caravana começou a falar durante o jantar que seu pai era de Mokbat. E que a cidade já estava lá antes do avô do seu bisavô nascer. Disse que na região a coisa toda é conhecida como "Tromba de pedra". Que tromba é o nome do nariz da criatura, que se estende até quase raspar o chão - mostrava ela usando o braço para simular a bestialidade. Mokbat era a raça daquele bicho. E que naquele tempo quando os Deuses ainda se prestavam caminhar com os pés no mesmo chão que os homens, eles também viviam livres. Gigantescos, destrutivos, caminhando pelas planícies e por vezes secando rios inteiros para a manada beber água... Eram monstruosidades que não respeitavam nada além da sua própria vontade. Nesse tempo, os homens ainda eram jovens e tentavam erguer as primeiras cidades. O nomes das vilas desoladas pelas manadas de Moktbats estão nos cânticos das crianças e dos velhos contadores de histórias.
"- Hifruid, Ranir, Jacka´r, Bartpa, Silfür, Tjakãn..." - cantava a velha mulher como se lamentasse. Milhares morreram sob as patadas das bestas. Outros tantos pelo desmoronamento de toras de madeira e tijolos de pedras sobre seu sono. Verdadeiros colossos que nem percebiam os flechas e lanças arremessadas contra seu couro. O que separava as manadas de Mokbat dos Reinos Livres, eram a cadeia de montanhas ao sul e águas do Grande Oceano ao norte. Nesse espaço porém, eles viviam livres e soberanos. 

Até que um dia, a filha de uma mãe morta na cidade de Hifruid, teve sua própria filha soterrada por tijolos de pedra na cidade Bartpa. O nome daquela mulher não é importante, até porque ela já teve mais nomes do que as flores que nascem na primavera da campina. Ela jurou que se vingaria do infortúnio durante a vida ou depois dela. E que cobraria dos próprios Deuses a dívida de sangue da sua mãe e filha, ou entregaria sua alma ao espírito mais negro de todos: Balkur. Mas que não teria paz em seu espírito sem que a justiça pendesse na balança da Tyr. A mulher desapareceu, alguns disseram que ela se juntou as tribos nômades, que viviam distantes do centro da planície, sempre em movimento e sem nunca construir nada.
Dizem que já em idade avançada, ela foi abandonada para morrer a própria sorte, como era o costume... E que enquanto ouvia as rodas das carroças irem embora ela disse:
"- Vive toda essa vida a espera de uma só chance que pudesse me ofertar justiça. Tyr e todos os outros me traíram, agora ofereço a ti Balkur meu espírito e minha vida... Em troca, tudo que peço é o sofrimento das bestas que assolam minha terra..."
E durante aquela noite, várias matilhas de lobos da campina se juntaram ao redor dela. Uivando e rosnando enquanto giravam no seu entorno. A mulher permaneceu entoando os cânticos proibidos de Balkur por todo o tempo. Até que bem perto do nascer do sol, antes do céu se riscar com a sua luz, um vulto sombrio se aproximou da anciã. No mesmo momento todos os lobos correram ganindo e se torcendo como se estivessem sentindo muita dor. Alguns serpenteavam e caiam desesperados...
"- Olá pequenina..." - disse a gélida voz pronunciada sem boca.
"- Balkur, senhor das sombras, pai de toda dor..." - balbuciou a idosa assustada. E começou a gemer terrivelmente levando as mãos à barriga - "ããããñnn pelos Deuses, minhas tripas estão se revirando... o que é isso?"
Balkur abriu sua boca em formato de meia lua, mostrando suas presas brilhantes como estrelas e disse:

"- Nenhum ser vivo deve estar em minha presença sem lastimar... Sinta sua própria febre minha criança.."
E a mulher gemia dizendo:
"- Pelos Deuses malditos! O que é isso..." - enquanto suava e sentia seu coração palpitar - "eu vou morrer?" - perguntou sentindo seu nariz e orelhas escorrerem sangue quente...
"- Claro que vai... Mas não agora... Me regozijo no sofrimento da sua carne..."
E ali ele permaneceu, curvado sobre o corpo daquela senhora. Até que a primeira luz surgiu além do horizonte. Em nenhum momento a idosa desejou a partida de Balkur, nem lhe amaldiçoou pelo sofrimento inominável, de fato depois de algum tempo ela parou até de reclamar e abriu os olhos lacrimejantes lhe encarando. O sorriso da entidade foi pouco a pouco se desfazendo, minguando lentamente como o fio de uma espada que não é afiada...
"- O que desejas minha menina? Porque lutas contra teu sofrimento???" - perguntou-lhe Balkur. - "Queres justiça???"
A velha mulher balbuciou alguma coisa e fechou os olhos. Depois tentou falar novamente, mas sem sucesso. Até que arregalou seus olhos com força e disse:

"- Justiça não! VINGANÇA!"
Balkur, o pai da angústia respondeu:
"- Pois bem, se queres vingança eu te concederei. Mas precisas pagar mais do que a tua vida velha e teu espírito mirrado..."
"- Eu pago! Qualquer coisa!" - disse a senhora.
"- Qualquer coisa?" - perguntou lhe o sorrateiro espírito vil se enrolando sobre o corpo da velha como uma serpente que envolve sua presa...
"- Qualquer coisa!" - gritou a mulher enquanto era engolida pelas sombras.
Na escuridão de Balkur, sentindo mais dor do que qualquer ser vivo já sentiu ele perguntou ao pé do ouvido da atônita senhora:
"- Peça e será dado: o que queres criança?"
E toda dor desapareceu por um instante. Foi quando ela respondeu:
"- Eu quero que todos Mokbats morram. E que essa terra seja amaldiçoada para sempre. Quero que os homens se lembrem de que do sofrimento de uma mulher a ruína venceu. E que eternamente essa história seja contada..."
"- O pagamento minha menina, é que tu permaneças viva e em sofrimento, sentirás não só dor na carne, mas no espírito e na mente. Não terás uma noite de sono sem que sejam pesadelos, jamais sentirás o prazer do alimento ou terás sede e nenhum pensamento teu deixará de ser atormentado pela angústia e pela dor..."
"- Até quando?" - perguntou a mulher.
"- Até o dia que não suportares mais, aí todos Mokbats devem renascer dos próprios ossos e assolar essa terra sem pai novamente..."
"- E se eu nunca me curvar?" - disse a idosa - "E se eu suportar?"
"- Então sua será a vida eterna minha querida. E você viverá para sempre assim..."

"- Eu aceito!"
"- Que assim seja feito... No final do inverno, uma caravana de homens surgirá e lhe carregará para uma caverna. Ali tu serás! Eles vão lhe ouvir, lhe obedecer e servir. Ordene que façam uma estátua representando os Mokbat mortos e que construam uma cidade ao redor da caverna. Ali, protegida por mim, receberás tua dádiva e pagarás o teu preço enquanto puderes..." - disse a serpente de sombras.
"- Balkur, eu nunca vou desistir..." - balbuciou a velha mulher.
"- Um dia, quando tu o fizeres, eu retirarei todo sofrimento de ti e despejarei sobre as almas de centenas de milhares nessa campina..." - enquanto a deixava.
Tudo foi como ele disse que seria. A idosa resistiu ao inverno se contorcendo sob a neve. Sem fome ou sede. Quando a caravana a encontrou, ela contou palavra por palavra. E os homens a guiaram por dias até encontrar a montanha. Na sua base, havia uma caverna úmida e quente. A mulher foi colocada ali e ao redor da montanha uma vila se formou. Por várias gerações os homens esculpiram a pedra da "Tromba de Pedra" como é a vontade da velha. Com os passar dos anos, várias cidades forma construídas. Mas nenhuma nunca foi soterrada novamente pelas manadas de Mokbat.
Ainda hoje, dizem, que durante a noite na "Montanha Elefante" pode-se ouvir os gemidos e lamentos da velha mulher. No fundo da caverna que é fortemente guardada. Dizem que se a mulher desistir de sofrer, aquele reino todo será desolado novamente.
E que nenhum outro Deus é tão cultuado quanto Balkur, o desgraçado.
Há quem diga que após o acontecido, outros Deuses tentaram contatar a velha mulher. Que o próprio Tyr a buscou e ouviu:

"- O problema da justiça é que ela sempre está atrasada... Balkur é meu marido e a dor que ele me deu é nosso único filho! Um dia eu deixarei esse filho conhecer o mundo... E só aí eu terei justiça!"