sexta-feira, 20 de abril de 2018

Eu já vou dormir atrasado. De um compromisso que nem foi marcado. Mas que eu não vou chegar a tempo. E cansado. Com os olhos enevoados das nuvens no céu infinito. Que esconde o Cosmos e os Deuses. Como um teto que te priva das estrelas com a desculpa de te proteger da chuva. Eu preferiria tomar chuva as vezes, para ter as estrelas quase sempre. Mas ninguém me perguntou, e agora não existem casas sem teto. Existem pessoas dormindo nas ruas, mas isso é só outra incoerência humana traduzida em miséria, fome e desespero. Nada de novo aqui no front da luta perdida. Mas algo continua errado no reino da Dinamarca. E os violinos tocam uma marcha fúnebre na rua. É o enterro do nosso coração. Somos agora como vampiros, mortos vivos. Sugadores de sangue de presas longas. E como nos esbaldamos. Em um banquete de indefesos que sofrem para que possamos sorrir. E dançamos ao som do sofrimento silencioso. Até que o sol grita ao horizonte. Aí nos corremos para nossas tumbas fundas. Distantes do mundo real. E dormimos por séculos, alheios a existência coletiva. Até que a nossa fome desesperadora nos acorde novamente. E o processo se repita. Enquanto o céu transforma a noite em dia. E planeta gira no infinito frio do oceano espacial. E nós discutimos se a pulga é maior que o elefante ou o contrário.
"- Ah se eu tivesse a tua idade..." - me diz uma senhora.
Todos somos jovens, só morremos cedo. Que dívida é essa, que temos que morrer para pagar? Ouço Suassuna suspirar. Eu não sei o que dizer. Mas penso que alguém saberia.
"- Não esquece de ser forte..." - me disse meu avo em um flashback de 30 anos quando eu cai e ralei meu joelho na pedra. Eu chorava, mas ele me pegou no colo, passou um paninho molhado para limpar a areia colada no sangue do joelho. Me acalentou e sorriu dizendo:
"- Não esquece de ser forte...". Eu parei de chorar sem entender. 
O que eu esqueci? Como fico duro e forte? Chorar é errado? Meu joelho nem está ralado, o que eu estou dizendo?
Gira o mundo, gira tudo. Sobe o ar, desce o mar profundo. E a humanidade se faz e desfaz em um timelapse digno da cinematografia mainstream Hollywoodiana. Em algum momento, quando os carros voam e as esteiras carregam as pessoas pelo planeta, a tumba do vampiro se abre. Acordado e faminto ele diz:
"- Sinto sede de sangue de joelho ralado..."
Corram todos!

terça-feira, 17 de abril de 2018

O grupo.

Suavemente a grande pedra redonda gira. Com dificuldade em alguns momentos, travando e girando mais lentamente. Quase parando. Somente para retomar a rotação mais uma vez...
O ar que sai do corredor é pesado e miasmático. Todos levam as mãos as suas bocas e narinas. Gash´Tar, o mais jovem, se vira para fora do fluxo de ar tossindo copiosamente.
"- Hahahahaha" - gargalha Dhorin observando a cena - "Acho que o seu meio humano não vai aguentar...".
"- Você está bem?" - pergunta a deslumbrante elfa, Shimaê, se aproximando de Gash´Tar. Enquanto a criatura sinaliza que sim com a cabeça... E para de tossir. A elfa lhe entrega seu cantil. "- Beba, lhe fará bem...". Se virando para Augustus com olhos de vorpal, sobre a reação de Dhorin.
"- Acalmem-se companheiros... Nem entramos e já teremos rusgas? Guardem um pouco para o que nos espreita aí dentro..." - diz o cavaleiro sorrindo um sorriso pouco convincente.


Um grupo improvável. É como o Barão das Terras-Baixas os classificou, quando se apresentaram a corte. A notícia de que Lorde Zafhir o honesto, precisava de um grupo de aventureiros, com urgência, correu boa parte dos 13 reinos livres. Mas ainda assim, nenhum grupo chegou a Cidade das Gemas, antes do final do verão. O período, sem dúvidas, era ruim. Muitos estavam empregados em aventuras marítimas, navegando em busca de riquezas e fama. Outros aproveitavam o período de calor para viagens que não poderiam ser feitas durante o rigoroso inverno. Aprendizes se dirigiam as escolas Mágicas do Norte. Homens de armas, procuravam tutores além das Campinas do Leste, com as tribos guerreiras. Paladinos faziam seus votos de pobreza e castidade e rumavam para as cidades desoladas por pestes. Todas as grandes cidades recebiam diariamente navios cheios de especiarias e novidades vindas de terras distantes.
E foi em um desses barcos, o Olho d´Mar, que Augustus o cavaleiro, Dhorin o anão guerreiro, Shimaê a sacerdotisa de Lunai e o Khanel o místico aportaram na Cidade das Gemas. Shimaê e Khanel logo ouviram as notícias sobre a necessidade não solucionada de Lorde Zafhir. E tentaram algumas informações gratuitas a respeito do nobre. Com pouco sucesso, com exceção do indicativo de que o título de "o honesto" não era verdadeiro. De fato, parecia bem duvidoso.
Mas as semanas que se passaram, só trouxeram propostas frívolas de escolta para caravanas e primos distantes de uma nobreza falida. Não que o grupo já não tivesse feito esse tipo de serviço. Faziam e com frequência. Mas o objetivo de ter vindo até o Reino de Ah´Ur, era justamente encontrar maiores desafios. Foi então que conheceram o meio-orc Gash´Tar. A poucos dias de completar a segunda dezena na Cidade, o grupo aproveitava o sol da manhã quando perceberam uma voz franzina tentando ser ouvida no púlpito público de anúncios.
"- Senhores... Senho... Senhor... Senhores!..." - gemia o franzino monstrinho. Com sua pele meio escamada, meio lisa. Sem cabelo ou barba, com orelhas quase pontudas, nariz de porco, olhos roxos e duas presas para fora da boca vindas do maxilar inferior. " - Por favor, ouça... Por fav... Ouçam!". Tentava dizer.
Dhorin bateu com as costas da mão no ombro de Augustus, apontando com o queixo em direção a cena.
Um grupo de mercadores, provavelmente alcoolizados gargalhava do meio-orc. Lhe apontando os dedos e lhe dando apelidos grosseiros.
"- Veja só Sibá! Não sabia que seu filho tinha conseguido um emprego! hahahhahahahahahhaha" - disse um olhando para o homem da sua esquerda.
"- hahahahaha maldito, se sou pai desse aí, foi durante a Guerra das Tribos! Ei garoto! Sua mãe lhe contou que foi estuprada na noite que engravidou de você?"
"- hahahahaha" - riam todos juntos com as mãos sobre as próprias barrigas.
Antes de a brincadeira terminar, Shimaê já estava no pé do púlpito público de anúncios em que o meio-orc se encontrava. Ao seu lado Khanel, silencioso e empertigado observava toda a situação como um estranho desconhecido a todos.
"- Venha!" - ela disse com um rosto duro, sem expressão.
"- Eu preciso... Dar o anúncio do Barão... Se eu não der..."
"- Você vai dar. Venha comigo. Agora." - ela repetiu lhe estendendo o braço magro e a mão ossuda.
O meio-orc não teve coragem de lhe negar.
Enquanto isso acontecia, Augustus e Dhorin foram em direção aos mercadores bêbados.
"- Tudo bem Senhores, tudo bem! A brincadeira chegou ao fim...." - disse o cavaleiro com pouco mais de 2 metros de altura e um corpanzil bem estruturado de quem mantem seus treinos de forma rigorosa.
Os mercadores se calaram, um pouco assustados, um pouco decepcionados. Mas sem querer problemas. Ainda assim, antes que pudessem se mover, Dhorin sacou um machado de cabo médio que levava para seus passeios dentro da cidade. O girando uma, duas, três vezes e parando com a lâmina apontada para o rosto de um deles.
" - Aglhad bundushantúr gabil gathol khaz-kadut, GALENTAR!" - gritando essa última palavra e brandindo a arma apontada.
Os homens correram. Alguns para a direita, outros para a esquerda. Augustus gargalhou dizendo:
"- Calma Dhorin..."
"- Calma não saciará a minha vontade de usar o machado humano!" - bufou de volta o anão de longa barba ruiva, cheia de adereços de pedra e ferro.
"- Algo me diz, que sua sede por ação encontrou uma nuvem de chuva..." - respondeu Augustus se virando para Shimaê que descia o meio-orc do púlpito.
O meio-orc se apresentara como Gash´Tar, escravo na corte de Lorde Zafhir, o honesto. Barão de Ah´Ur. Senhor das Campinas de Lakti´R até onde a Antiga Grande Floresta encontra as montanhas de Bäldar.
Gash´Tar havia sido enviado com uma caravana de escravos a 2 dias, estava faminto e dormindo no relento. Sua missão era simples, trazia uma carta do conselho de Zafhir, convocando heróis a buscarem fama e fortuna na corte do Barão. Requisitava-se somente, coragem e pelo menos um anão no grupo. Pois o enredo incluiria uma masmorra abandonada.
"- Parece bom!" grunhiu Dhorin por trás da hirsuta barba ruiva.
"- Não parecer bom!" respondeu calmamente Khanel. E todos os outros o olharam com estranhamento. Khanel era silencioso como um pantera negra em noite sem luar. Só falava o estritamente necessário. Augustus costumava contar a mesma história diversas vezes. De que ao aceitar participar do grupo, Khanel simplesmente acenou a cabeça positivamente. Sem nenhuma expressão de sentimento ou alegria. Khanel era um homem de idade avançada, apesar de nunca revelar a sua idade. De pele morena e cabelos negros, com uma barba bem feita e cheia de pelos brancos. Trazia no rosto magro tatuagens tribais. E frequentemente passava dias, até semanas sem dizer absolutamente nenhuma palavra. Quando questionado, costumava concordar com o que era dito ou adormecer rapidamente, de forma pouco natural. Assim, quando falava, causava algum estranhamento. Não só por causa da dificuldade em pronunciar as palavras em idioma comum. Mas por que a voz soava de forma gutural e poderosa. Uma voz, com qual diversos outros homens se orgulhariam de usar.
"- É melhor do que ficarmos engordando nas ruas desse pulgueiro..." - disse Augustus.
"- Seu Lorde... Como ele é?" - disse calmamente Shimaê se aproximando suavemente de Gash´Tar.
O meio-orc silenciou. E o silencio transbordou sobre o quarto que eles dividiam em uma taverna.
"- Responda!" - falou alto Dhorin. Mas antes que ele pudesse terminar, Shimaê continuou:
"- Ele é mal não é?".
O meio-orc concordou com a cabeça e os olhos arregalados...
"- Partimos ao nascer de dois sóis. Preparem-se." - disse a sacerdotisa se levantando. Augustus fez uma menção de dizer algo, mas Shimaê prontamente continuou:
"-... mesmo que a missão que essa criatura condenada tenha vindo oferecer, seja algum tipo de armadilha, existe mais uma missão por trás das palavras dele... - e se virou para Khanel - ... a terra que esse homem comanda sofre. Não somente esse pobre coitado que está diante de nós."
Khanel disse simplesmente:
"- O código." - e se levantou também.
"- Sim, o código - completou Shimaê - se virando para Augustus e Dhorin - viveremos e morremos..."
E Dhorin se levantou completando sua frase:
"- ... pelo código!"
Por último Augustus se levantou dizendo:
"- Que assim seja feito. Que novamente, encontremos nosso destino no desconhecido e que ele seja digno de nos desafiar."
Shimaê abriu um sorriso ameno, mas visivelmente desenhado em seus lábios. E sem olhar para Gash´Tar lhe disse:
"- Você dormirá conosco até a nossa partida criatura. E a partir desse momento, estará sob a proteção de Lunai e de seus servos".
O meio-orc não ousou discordar. Conhecia a Deusa Lunai. Mãe da luz noturna. Esposa paciente do Sol. Mística e poderosa desde antes do tempo ser tempo. Seus sacerdotes são conhecidos pela sabedoria e pela ligação íntima ao que chamavam de "o Código". Um conjunto de regras de como se comportar em vida. Para que seja possível aproveitar da eternidade ao lado "da Mãe" Lua nos seus Palácios de Luz.

A viagem até as Campinas de Lakti´R foi monótona. Todas as noites, o grupo se revesava em guardas ao redor de uma pequena fogueira. Que também era usada para esquentar carne seca e vegetais selvagens colhidos durante o dia. Ao amanhecer do segundo sol, Gash´Tar revelou:
"- Eu nunca dormi tão bem na minha vida...".
Dhorin gargalhou dizendo que o meio-orc deveria experimentar os colchões de pena de ganso e talvez alguns travesseiros... Mas Shimaê permanecera o observando, com olhos de pedra. Até que Gash´Tar arranjou alguma outra ocupação frívola no acampamento. Ela, e talvez Khael que ficou em completo silêncio, compreendera que o meio-orc falava da paz que estava podendo usufruir. Na verdade, quando deu por si, Shimaê percebeu que estava sentindo pena daquela pobre criatura. Que tipo de maus tratos esses escravos sofriam? De todas as criaturas, de todos os Deuses, o ser humano pode ser uma das mais perversas. Capaz de atos inimagináveis.
"- Sacerdotisa - questionou Augustus - você vem?!"
E ela percebeu que estava divagando a mais tempo do que deveria. Enquanto se levantava e se botava em marcha com o resto deles.
Após 6 dias de caminhada enquanto cruzavam uma pequena planície ladeada por algumas colinas, um grupo de 5 cavaleiros com estandartes de uma águia segurando uma balança de minérios nos pés surgiu ao longe.  Um dos cavaleiros ergueu um berrante dando três silvos curtos. Enquanto os outros desceram a galope em direção ao grupo. Após os silvos o cavaleiro desapareceu.
Dhorin prontamente sacou seu machado.
"- Calma pequeno amigo, são batedores..." - disse Augustus.
"- Sir. Klinkir..." - disse Gash´Tar parecendo assustado.
"- Você os conhece?" - perguntou Shimaê, enquanto pegava a carta do conselho que Gash´Tar a havia entregado na Cidade das Gemas. Mas o meio-orc não lhe respondeu nenhuma palavra.
A alguns metros um dos cavaleiros se ergue sobre os estribos do seu manga larga negro e disse:
"- Ora, ora, o que temos aqui?!" - desacelerando o cavalo e sendo seguido por outros 3 homens de armas com suas espadas em punho.
"- Saudações cavaleiros!" - disse Augustus com uma das mãos levantadas. Mas foi prontamente ignorado pelo grupo que se aproximou flanqueando Gash´Tar. O meio-orc se encolheu entre Khael e Shimaê que observavam atentos toda movimentação.
"- Gash´Tar! Você me custou uma peça inteira de prata! Apostei que irias fugir... Há! Talvez tu devesse ter fugido filhote de porca!" - continuou o homem margo de cabelos e barba negros. Rosto fino e nariz achatado...
"- Sir Klinkir..." - começou a dizer Gash´Tar, sendo interrompido pelo cavaleiro novamente.
"- Não fale sem ser requisitado escravo." - e parando seu cavalo bruscamente com olhos de fogo sobre o meio-orc.
"- Cavaleiro!" - disse Shimaê lhe chamando a atenção - "Nós estamos atendendo a um chamado do Conselho de Zafhir. Estamos aqui para ajudar, abaixem suas armas...".
Sir Klinkir sinalizou para seus homens abaixarem as armas. Enquanto abria um sorriso e dizia:
"- Sejam bem-vindos então!" - e fez uma pequena reverência com a cabeça - "Vocês estão nas terras que pertencem ao Lorde Zafhir. Nós os escoltaremos até o castelo...".
Foi rápido. Menos de uma manhã de caminhada e o as colinas haviam ficado para trás. O pequeno castelo surgiu no horizonte. Eram seis torres redondas ligadas por muros de pedra com seis ou sete metros de altura. Um portão de madeira fechado na única passagem aparente. O Castelo dava vista para as planícies, para a floresta e ficava a alguns quilometros de um riacho. Não era uma obra de arte, parecia antigo e pouco conservado. Algumas propriedades ao seu redor plantavam batatas, cebolas e ervas. Bem como alguns pastores tocavam ovelhas e porcos para um estábulo de madeira colado a uma das paredes de pedra. No ponto mais alto da construção, repousava uma estátua de pedra de uma águia de asas abertas olhando para cima.
O portão não demorou para ser baixado. Alguns homens surgiram entre as ameias dos muros, observando curiosamente os recém chegados. Cruzando a porta, um pequeno átrio de chão batido revelou mais um portão, só que de ferro. Do lado direito do átrio, alguns homens erguiam blocos de pedra com cimento e gordura animal, no que parecia ser uma espécie de reparo ou reforma.
"- O portão de madeira é novo. Foi derrubado e trocado por esse..." - disse em linguagem anã, Dhorin atento a construção.
Khael respondeu:
"- Derrubado ou violado?" - sem nem olhar para o anão.
Sir Klinkir lhes interrompeu:
"- Suas armas não serão carregadas para a presença do Lorde Zafhir." - e apontando para um de seus homens disse - "Leve o escravo para o salão, o resto de vcs esperam aqui até termos autorização de entrar na sala do trono..."
Um homem empurrou Gash´Tar com força, dizendo:
"- Vamos porco!" - ao meio-orc coube somente obedecer em silêncio.
Não era incomum que Lordes de reinos pequenos como o de Ah´Ur tivessem a impressão de maior poder do que Lordes de reinos maiores. Um Lorde, normalmente, não tem sangue real. Um lorde é uma pessoa, ou descendente de alguém que presta serviços valiosos a uma coroa ou família real. As terras do Lorde não lhe pertencem. Mas pertencem a coroa do reino em que estão. E são administradas para que haja lucro para a coroa com suas benfeitorias. A expressão "sala do trono" poderia ser usada para um Rei, Rainha ou Príncipe. Mas não para um Lorde...
Não se passou muito tempo. Dhorin, Augustus, Shimaê e Khael puderam conversar um pouco em privacidade sob o olhar atento de pelo menos 30 guardas armados. Suas armas haviam sido recolhidas a uma sala do primeiro andar.
Sir Klinkir veio caminhando com passos de chumbo de uma das portas superiores, dizendo:
"- Venham, subam!" - e retornando pela porta de onde veio.
O grupo entrou na salão lado a lado. Com Augustus e Khael nas pontas e Shimaê e Dhorin no meio.
O salão era grande. Com colunas de pedra e vários homens e mulheres sentados em mesas abaixo de um grande degrau de pedra que servia de palanque para um único Trono, também de madeira e estofado com almofadas vermelhas. No trono um homem franzino, com aparentemente 50 anos de idade, e barba e cabelos negros estava esparramado tomando uma taça de vinho. Ele conversava com um homem mais velho que se encontrava ajoelhado a sua direita. Diversos soldados com armas em punho, perfilavam-se nos dois lados do salão. Entre as mesas e o degrau de pedra do trono, Gash´Tar estava sentado em um dos cantos. Com uma corrente de ferro negro presa ao pescoço. Alguns cães estavam deitados ao seu redor, outros brigavam  por ossos que os haviam sido dados. Ficava claro que se Gash´Tar quisesse comer, seria necessário testilhar o alimento com os animais.
O grupo avançou alguns metros enquanto o salão silenciava. Murmúrios e passos, era tudo que se ouvia.
"- Bem vindos, ó bem vindos sejam!" - disse o homem sentado no trono se ajeitando sentado - "é... sim... Bem vindos sejam os nobres heróis, venham, aproximem-se!" - fazendo um sinal para o grupo.
Caminharam mais alguns poucos passos, até que Augustus disse:
"- Lorde Zafhir, viemos atender ao seu chamado. Meu nome é Augustus, estão são Dhorin, Shimaê e Khael - todos referenciavam ao lorde com a cabeça enquanto seus nomes eram pronunciados - pedimos respeitosamente por sua hospedagem..." - e fez um movimento de semi referência. Dobrando seu joelho até meio caminho do chão e retornando.
Silêncio.
Lorde Zafhir o encarou por um instante, antes de dizer:
"- Hospedagem concedida... é... Está concedida. Sentem-se a mesa, comam de meu pão e do meu sal. Bebam da minha água e do meu vinho. Teremos muito tempo para conversar após o banquete... Sim...".
Sentados, momentos depois, com vinho quente servido em suas taças, comendo pão fresco, manteiga e carne desfiada em tigelas.
"- Porque não sinto que somos bem vindos nesse salão?" - perguntou Dhorin com a barba suja de gordura e vinho. Olhando seus pequenos olhos por todo espaço.
"- Porque não somos!" - respondeu Shimaê que comia pequeninos bocados de pão seco cortados com as mãos.
"- A carne e o vinho são bons..." - disse Augustus bebendo mais um gole de sua taça.
Khael não comeu, nem bebeu nada além de água.
"- MÚSICA!" - ordenou Lorde Zafhir em determinado momento.
E músicos se apressaram a começar a tocar harpas e flautas, tambores e rabecas. Enquanto cantavam:

" Feito de aço e pedra, justo como uma régua.
Senhor do céu e da terra.
Caminhando, varão como ele só.
Mestre nas armas com o coração cheio de dó.
Amável e querido, Lorde Zafhir.
De família justa com legitimidade.
Como nenhuma outra aqui.
Fazendo o bem por onde vai.
Auxiliando todo homem que cai.
Como a mão de um pai.
Amável e querido, Lorde Zafhir.
Como nenhum outro aqui..."

Várias pessoas batiam palmas e dançavam. E Shimaê trocou olhares com Khael que movendo sutilmente seus olhos, lhe apontou o trono. Onde Lorde Zafhir os encaravam de forma perseverante. Um leve sorriso se formou em seus lábios enquanto ele erguia uma taça a mesa do grupo. Shimaê prontamente ergueu a sua taça em reposta e dobrou a sua cabeça para baixo em uma referência completa, falando aos amigos sem que fosse possível perceber que ela dizia algo:
"- Montaremos guarda no quarto em que dormirmos..."
Sorrindo Dhorin respondeu:
"- Sem dúvidas" - enquanto deixava o copo na mesa e subia no banco batendo palmas - "Sem dúvidas...".

CONTINUA.



quarta-feira, 11 de abril de 2018

Vai ver...

Eu sou da geração X. A geração que se digitalizou. A geração que nasceu analógica e foi pega de surpresa pelo tsunami digital. Paredes foram quebradas, distâncias encurtadas. Todos nós fomos arremessados uns contra os outros, outros contra uns e assuntos antes nunca imaginados tomaram forma, cor, gosto e cheiro bem diante dos nossos monitores de tubo VGA com resolução SD.
A gente aprendeu que não precisamos mais ir para a biblioteca dos colégios para pesquisar sobre os assuntos de história. A gente tinha agora um "procurador digital" que reunia o conhecimento ao alcance de alguns cliques.
A gente entendeu que não precisamos mais nos ligar no telefone fixo para conversar, podíamos trocar mensagens via nossos PCs. Falar em grupos de amigos simultaneamente.
A gente descobriu que o mundo afinal nem era tão grande assim, e agora podíamos ver fotos virtuais de qualquer lugar do planeta (que normalmente demoravam vários minutos para serem completamente carregadas... mas ok!).

Fomos a geração que baixou os primeiros .mp3 durante as madrugadas.
Jogamos os primeiros jogos cooperativos nos computadores.

Muito antes de alguém se quer pronunciar a expressão "midia digital" nós vivemos o mIRC e logo depois o ICQ.
Muitas pessoas vão ler essas palavras e lembrar de expressões, programas, sites e procedimentos que eu não vivi ou não me lembrei enquanto escrevia...
E tudo bem! Meu texto não é sobre o saudosismo digital. Não. Meu texto é sobre pensar no que a gente tá se transformando depois da sétima ou oitava onda digital nos atingir.
A impressão que eu tenho, é que no passado as pessoas se desgostavam menos. Não sei ao certo porque. Talvez seja o menor contato. Tipo como a maioria de nós sente que as relações mudam quando deixamos as casas de nossos país. Porque paramos de vê-los diariamente, então quando os vemos é menos intenso. Assim parece funcionar a relação humana hoje em dia... É como se todos estivéssemos dentro da mesma residência. Falando, ouvindo e mostrando fotos e vídeos o tempo inteiro. Aí acontece de alguém fazer um grupo sem aquele primo mala. Ou de comentar sobre como a tia "fulana de tal" tá enchendo o saco do tio "beltrano de tal". E pior, nós de alguma forma ampliamos isso para nossas time lines. E de certa forma, escolhemos bloquear o "X" e parar de seguir o "Y". Porque eles não gostam da cor verde como eu, eles preferem o azul. E aquele pessoal que curte a cor vermelha então? Esses eu denuncio! Eu os odeio, eles dizem!
É como de se de um jeito surreal, ampliar a nossa comunicação acabou nos distanciando mais do que aproximando... Estamos todos a poucos cliques de distância, mas falamos frequentemente com as mesmas pessoas. E julgamos frequentemente as mesmas pessoas. Utilizando o acesso a essa informação toda só para declarar que "na minha opinião" o João é um merda porque ele torce para o time B ao invés de torcer para o time A.

É estranho.
Mas se tu parar para pensar, tudo que a nossa comunicação fez desde a invasão da primeira era digital foi nos segmentar. Você compra com cartão de crédito, você não ganha likes de ninguém, você gosta de um partido político específico, você não gosta de homens de cabelo enrolado, você prefere pizza com abacaxi, você acha as roupas da nossa loja lindas, você quer conhecer aquele autor, você quer saber como é a melhor forma de construir uma bomba.

Acelerando a nossa forma de se comunicar, nós criamos mais e mais muros entre nós mesmos.
Quando eu brincava na rua, antes de conhecer o computador, eventualmente era obrigado a jogar com um vizinho próximo por quem eu não tinha muita simpatia. E muitas vezes, me ver em uma situação física real de aproximação com outro ser humano que eu não gostava muito por qualquer que fosse o motivo, acabava me aproximando desse indivíduo. Abrindo o véu do meu próprio ego para alguém que podia muito bem ser um futuro amigo. Acabava por me mostrar um lado além do que as telas do meu celular e do meu computador hoje em dia podem mostrar.
Olhar no olho de alguém, me revelava mais do que as palavras escritas por essa pessoa. Ouvir a sua risada ou seus xingamentos, ver seu corpo se movimentando, seu esforço para alcançar uma bola e a sua reação quando outro amigo se machucava, me ensinava mais sobre esse alguém do que uma aba do facebook que diz "PERFIL" consegue ensinar.

Não entenda errado, a era digital é definitiva. Com certeza teremos novas mudanças em futuros não muito distantes. E provavelmente nunca mais seremos o que fomos nessa galáxia far, far away... E temos aplicações incríveis para a comunicação hoje em dia.
Meu ponto é que esse "ódio" digital é muito facilmente destilado quando toda relação que as pessoas tem é feita através de pouquíssimas palavras escritas em uma fotografia virtual.
E assim nós seguimos parando de nos curtir, deixando de nos seguir, julgando sem se ouvir e nos conhecendo sem nunca termos nos preocupado em se conhecer de verdade.
Jóia!