quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Oi pai.

Amanhece um dia daqueles, ainda noite. Quinta feira, quente, 10 de agosto de 2017. E eu vou trabalhar sem saber se me lembrei ou se não esqueci. Se o sonho que sonhei era meu ou era teu. Sentado no carro eu freio quando as luzes ficam vermelhas. E acelero quando são de outra cor. A música da rádio e os anúncios soam iguais. As ruas são todas uma só. E no piloto automático eu me vejo segurando uma xícara de café com leite sem açúcar que transborda vagarosamente, pingando o chão.
Ouço distante, baixinho:

"- Moço...".
Volto rápido, como água dragada por um ralo. Recordo do mundo real. Escorro e acordo.
"- Oi... desculp..." - respondo envergonhado.
Corte seco da narrativa.
Estou sentado no computador e meus dedos dançam pelo teclado. Me percebo diferente quando escrevo. Trançando lembranças, sentimentos e linguagem não falada. A escrita é mesmo uma safada. Ela arranca do peito as palavras que pesam como chumbo. E eu deixo. Sinto novamente sensações esquecidas. Me lembro de cheiros, de gostos, de bons e maus dias. Caminho pelo passado, como um espectador de um filme assiste a uma história. Me permito lembrar de conselhos esquecidos. E de erros cometidos. Me vejo de novo, mas longe de mim.

Sem perceber, estou segurando o controle de um video game da década de 90. Sentado na frente de uma televisão, na casa dos meus pais. Encarando sem piscar a tela do antigo televisor de tubo, como só quem joga videogame entende. Com a língua de fora, me movimento, torcendo os dedos sobre todos os botões do controle ao mesmo tempo. Em uma série de cliques frenéticos, magro como fui na infância. Vestindo uma camiseta que eu adorava com o super-homem estampado.
Eu me vejo por algum tempo. A luz que entra pela grande janela na casa dos meus pais, através dos vãos da cortina. Deixando feixes de luz que cruzam a sala. A antiga mobília, os velhos tapetes que já se foram. Os sofás, os quadros, a mesa de jantar e o velho lustre pendurado bem no meio do teto.
Eu não sei quanto tempo eu fiquei ali jogando ou me observando jogar. Sei que me vendo jogar eu ouço inesperadamente o som de passos. Olho para a porta que dá na copa e vejo uma sombra se aproximando. Vagarosamente ela vem. Me recordo agora do som das pantufas que meu pai gostava de usar em seu tempo livre em casa. E revivo o momento em que ele aparece na porta entre a copa e a sala, com uma camisa social verde musgo dentro da sua calça social escura e com um cinto negro de couro segurando a bela barriga que ele ostentou no final da vida. Ele fala, mas o eu que lembra, não recorda do que ele diz. O eu da época se vira como se estivesse muito concentrado e olha para ele respondendo:

"- Oi pai..." - minha voz é horrível, eu penso.
Ele sorri de volta e vejo seus lábios se moverem novamente. Uma frase mais longa e complexa agora. O eu da época se levanta e vai em direção a ele, meu pai se vira e caminha em direção ao próprio quarto. O eu que observa os acompanha.
O quarto dos meus pais tem um varanda, e meu pai sempre sentava em um sofá bem próximo a ela para ler. É isso que vejo acontecer, meu velho se senta vagarosamente enquanto o eu da época olha para o céu na varanda. Meu pai abre um livro e fala algo, o pequeno eu se aproxima se aconchegando no braço do sofá. Há um livro aberto nas mãos do meu velho. Ele lê um trecho e o pequeno eu o observa com atenção. Ele aponta para uma figura com suas mãos enrrugadas.
"- Que massa..." - murmura baixinho o pequeno eu. 

Meu velho sorri enquanto lê. Um sorriso bonito que não me lembrava de ter guardado na memória.
Eu acho que invejo um pouco o pequeno eu dessa época.
A minha memória se desfaz como um sonho que termina. Tão real quanto se pode ser. Tão viva quanto se pode estar.
Eu abro meus textos guardados e quando o computador me pergunta:
"- Como é o nome do arquivo que você quer salvar?"
 

Eu digito: oi pai.