segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Desconsidere-se

Imagino um café com Pablo Neruda. E me perco ouvindo a playlist de Interstellar, enquanto o mundo insiste em girar. Ondas de rádio vindas de bilhões de anos luz avisam que a terra não está só. Existe vida além da via lactea, e provavelmente ela não se interessa por nós. Folho as páginas de um livro antigo e novamente me perco por entre as frases que o destino faz brotar nos meus olhos. Como flores em um jardim de inverno, iluminadas por um sol ameno, quase paternal. Me aproximo de uma flor amarela, a mais bela. Mas antes que possa toca-la sou transportado para a Travessa da Saudade, uma rua como outra qualquer. Em qualquer cidade. Com uma placa em um poste. E um silêncio ensurdecedor no ar. Fecho meus olhos e sinto o calor, é difícil até respirar. Ouço um ruído. Quem está aí? Sou eu! Eu quem? Eu, você.
Me viro e me vejo me virar. Como um espelho em uma esquina que me confunde. Me vejo me imitar em um reflexo idêntico do que eu posso ser. Mas paro bruscamente, confuso. Franzindo o cenho, observo o meu reflexo idêntico a também me observar. Eis que ele diz enquanto estou calado:
- Sabes que o reflexo és tu, aí do outro lado!
Digo que não, enquanto sou imitado. Não pode ser. Eu sou eu, e esse reflexo é a minha cópia. Não?
- És a cópia de ti, eu sou o que vive fora do espelho. Tu estás aí aprisionado.
Olho para as minhas mãos. Quando foi que fiquei tão velho? Me pergunto sem resposta.
- O tempo é uma aposta garoto - me diz novamente o reflexo - que todos são obrigados a fazer.
Se isso é dentro do espelho e se eu sou o meu próprio reflexo, aonde está todo o resto?
Me confundo e falseio. Meus olhos se fecham lentamente, como em um desmaio. Dobro os joelhos, me apoio com a mão no chão para não cair. Ergo a cabeça e vejo meu próprio reflexo a rir. A escuridão me toma, só consigo pensar:

- Porque meu reflexo me odeia? Porque quer tomar meu lugar?
Acordo sozinho, no meu próprio quarto. Janela aberta, sol nascendo e pássaros a cantar. Vejo o espelho do banheiro e meu reflexo parece me obedecer. Ele me segue quando passo e para quando paro. Pisca quando pisco e sorri quando o faço.
Tudo bem de novo, imagino. Foi só um sonho.
- Foi - responde o reflexo - mas será que desses tu vais acordar?
Minha boca não se move, fico petrificado. Quem poderia sonhar? Um sonho dentro do sonho e eu não sei se acordei ou voltei a imaginar. Minha mente dança gentilmente entre a realidade e a imaginação. Me confundo com tantos outros eus no meio da multidão. E depois de uma tempestade de dias e noites me pergunto: qual é a minha solidão?
Todos os reflexos respondem simultaneamente, siga nessa direção. Minha mente vai, meus pés não. Nem tudo que se move, se mexe. Ouço alguém dizer. Me pergunto:
- Quem fala? Quem é?
Ouço minha voz:
- Você.
A pergunta mais antiga do mundo, volta para mim. Quem posso ser? Sou quem sou ou quem gostaria de ver? Existem varias repostas para a mesma pergunta, mas como posso saber?
Vejo no meio da confusão um reflexo que não dança, que não pula ou fala. Ele fica parado e me encara. Me aproximo, enquanto ele também vem. 
- Quem é você? - ele me pergunta.
Como assim? Quem sou? Ele é um reflexo, uma projeção. Eu sou...
- Você - respondo.

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