quinta-feira, 12 de março de 2009

Belos dias e longas noites...

A água estava calma.
Batia no casco do navio suavemente, formando padrões. Ondas curtas e gentis. O mar parecia uma criança educada. Vez ou outra mostrava seu potencial, levantando uma onda um pouco mais perturbada. Mas permanecia calmo na maioria do tempo.
Nosso barco buscava o novo continente a vários meses. Completávamos quase um ano em alto mar. Na saída do ultimo porto, muitos ficaram para trás. Muitos homens começavam a adquirir o habito de se sentar no crepúsculo para ler as cartas que receberam na saída. Não haviam mais cartas para serem lidas. Todas as palavras já tinham entregue seus recados. E agora esses homens buscavam dia após dia, uma frase, uma expressão, um desenho, ou qualquer coisa que tivesse passado sem ser percebida. Até as manchas do papel contavam.
" - Ela tomou café enquanto me escrevia essa carta." - ele conseguia dizer pela mancha em circulo que a xícara havia deixado na base do manuscrito.
"- Minha esposa passou um pouco de seu perfume favorito no papel, ainda posso sentir o cheiro..." - o cheiro já não existia mais. Mas mesmo assim ele podia senti-lo... só ele podia...
"- Sempre que leio, eu posso ve-la acordando e sorrindo pra mim... Sinto menos saudade quando penso nisso..." - este havia recebido um bilhete. Nem carta era... Mas mesmo assim ele o guardava, com mais esmero do que guardava sua ração diária.
Os meses passados no mar são severos. No começo é fácil nos lembrarmos do que deixamos para trás. Mas com o passar dos dias. Quando as noites solitárias ficam cada vez mais longas e vazias, fica pior. Os homens param de conversar e as rodas de cigarros e rum ficam cada vez mais vazias. Até terem só dois homens.
Um que fuma e outro que bebe.
Os homens acordam cedo e resolvem os problemas do barco cada vez mais rápido. Depois dormem. Cansados. Muitos ficam se comer. A fome não alcança os que sofrem as saudades do coração.
Acordamos em um dia cinzento. O mar estava um pouco mais agitado. Perto do meio dia uma fina garoa caia sobre nosso barco. Meu primeiro imediato avisou que choveria a tarde...
Ele estava certo.
No final da tarde a chuva começou a ficar mais forte. Gotas grossas. Vento severo. Nossas flâmulas e bandeiras dançavam freneticamente sobre nossas cabeças. As ondas cresciam, uma após a outra.
Alguns homens se seguravam em cordas para caminhar sobre o convés. Passos cuidadosos, firmemente apoiados sobre a madeira molhada que rangia a cada torçida que nosso casco dava. Os mastros balançavam e algumas caixas começaram a se soltar das cordas em que estavam presas. O caos se desenhava.
Meu imediato avisou que a garoa que havia se tornado chuva, estava prestes a crescer até uma tempestade. Pedi para todos tivessem cuidado.
Os olhares de saudade estavam agora divididos com o medo.
Muitos homens eram marinheiros de primeira viagem.
Não demorou muito para o nosso navio começar a balançar feito um brinquedo de criança. Algumas ondas estouravam no próprio convés. Vinham como tapas contra uma face. A nossa. As caixas se soltavam novamente. Corriam pela madeira lisa se partiam nas muretas de proteção do navio. Muitas pessoas corriam de um lado para o outro, tentando salvar o que era possivel.
O mar não te dá muitos avisos do que pretende fazer. Afinal, foste tu que vieste até aqui... Eu não reclamava, eu respeito o mar.
Onda após onda, nossos homens se confundiram e perdemos nosso rumo... seria impossivel mantermos a linha.
O navio vagou a própria sorte.
Enquanto eu olhava pela janela vi algo próximo a nossa frente. Parecia uma grande núvem transparente. O mar se chocava contra ela, as ondas subiam além do que podiamos ver... O navio estava indo naquela direção.
Avisei o imediato para que virasse a bombordo com extrema urgência. Ele saiu correndo da minha cabine. Gritava com toda força de seus pulmões.
"- VIREM, VIREM AGOOOORA, VIIREEEEMMMMM..."
Continuei observando, esperando.
Lentamente o barco começou a deitar para a direita. Aquilo passou bem perto e quase nos chocamos. Ouvi os homens comemorando quando quase raspamos a lateral naquela coisa.
Pude ve-la melhor, era vidro...
Era uma grossa barreira de vidro transparente que represava o mar. Ela parecia curva. A tempestade nos impedia de chegar muito perto. E não podiamos ver além.
Pedi que trassassemos nossa localização usando as estrelas. Foi quando meu navegador disse:
"- Comandante, o sol está apagado...."
Olhando para cima vi. Não haviam estrelas, nem lua. Só um grande círculo cinzento que não emitia luz alguma. Além do círculo existia uma espécie de teto, branco, com gesso e paranho.
Pedi que meus homens levassem o barco de volta a parede de vidro.
Voltamos cuidadosamente. Usando minha luneta pude ver através do material. Parecia uma sala de jantar. Não sei se consigo lhe explicar, mas havia uma gigantesca mesa, com pratos e vários talheres do tamanho de castelos. Um pano dobrado próximo ao prato me pareceu ser um guardanapo. Dobrado e limpo, esperando lábios sujos de alimento.
Não consegui ver além da mesa. Era muito longe...
Não podia dizer isso aos meus homens, eles iam achar que eu havia ficado louco. Que a tempestade havia levado minha sanidade.
A chuva começava a parar.

Isso não é o mar. É um copo d´agua.

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