sexta-feira, 1 de julho de 2011

O velho Vidal.

Era um senhor desses que tu vê como foi a vida nas marcas do corpo e do rosto. De uma magreza quase doentia, exibia somente uma barriga proeminente. Redonda como uma melancia inchada. Diferente dos braços esguios quase esqueléticos. Dos ossos da face no lugar das maças. Dos olhos azuis profundamente depositados no fosso que era seu rosto. Aparentava ter algo entre noventa e cem anos. E apesar disso ser muito subjetivo, basta dizer que o velho Vidal mal e mal havia cruzado os setenta. Seus cabelos negros e grossos de outrora, foram substituídos por uma careca brilhante e chamativa. Sobravam-lhe apenas alguns fios discretos e encabulados sobre as duas orelhas. Orelhas por sinal, dessas que os antigos chamam de abano ! Como uma referencia ao leque que formam. Grandes orelhas, mas pouco eficazes. O velho Vidal era praticamente surdo. Isso fazia com que suas sombrancelhas, essas sim grossas e sempre despenteadas, permanecessem praticamente sempre franzidas. A expressão dava a ele um ar de irritabilidade gigantesco.
Caminhando na rua com dificuldade, aos domingos de manhã ou talvez em um final de tarde tranquilo. O senhor sempre causava espanto. Crianças se escondiam e os adultos abaixavam as cabeças em respeito. Querendo na verdade, lhe tirar logo da vista. Ou fingir que não o viam para que o velho não lhes pedisse nada.
Pobres ignorantes que eram. Não sabiam que eram eles que deviam lhe pedir atenção. O velho Vidal sempre foi um homem muito culto. Desde mais moço, preferira a companhia de livros e compendiuns do que das mesas de bar. Diferente da maioria, o senhor apreciava sim a boa conversa. Era um ótimo argumentador, e educado como poucos. Repudiava brincadeiras frívolas e as "imbecilidades culturais", como dizia. Era um ser humano diferente. Pra começar, sempre morou na mesma casa na rua das Laranjeiras. A número 641, com um portão enferrujado na frente. Tinta caindo das paredes. E janelas sempre fechadas. Sozinho, mas não solitário. Durante as décadas de clausura que enfrentava, foi acompanhado pelos pensadores e filósofos clássicos. Discutia bossa nova e o pouco que foi gravado do samba original com os compositores de seus velhos LPs de vitrola. Mantinha alguns livros de poesia, apesar de não ser um grande conhecedor do genero, os utilizava como alívio para os males que o mundo lhe jogava no colo. E fotos, muitas delas. O velho Vidal tinha albúns, e mais albúns de fotos antigas. Sua juventude esquecida. Sua família e amigos. Seus trabalhos, ele fora professor por mais tempo do que eu tenho de vida neste planeta. Ensinava história a adolescentes.
No meio de tantas fotos, alguém com paciência, acharia a foto dela. Sim caro leitor, ela. A amada que nunca mais voltou. Vidal não era um velho quando pediu sua mão em casamento. Na época, a barba havia começado a lhe brotar na face. O que sabia ele ? Um garoto piá, como seu pai chamava. Estava apaixonado e decidiu se casar. Ela era linda, dessas meninas que fazem o mercado parar quando passam. Que os outros homens tiram os chapéus e dão licença nas passagens. Delicada como um flor jovem, recém desabrochada. E o melhor: amava Vidal mais do que ele a ela, só não lhe revelara isso.
Uma febre a matou. Assim, brutalmente. Vidal, lá ainda moço, fechou seu coração a sete trancas e o arremessou nas profundezas do inferno mais distante. Nunca olhou para outra moça com os mesmo olhos. Até as teve, por obrigação de ser homem que a época lhe demandava. Mas nenhuma teve seu coração, verdade seja dita. Nem ele mais o tinha. Nem ele mais queria te-lo.
Os anos foram se passando, e as moças que se apaixonavam por Vidal, acabavam revelando que era mesmo apaixonadas pela companhia que tivessem. Casavam-se as pencas. Seus amigos as tinham e morriam de ciume do rapaz que era motivo de suspiros quando passava. Com aquele ar enigmático de: "Sou imune ao amor".
Suas amizades se afastavam de mãos dadas com aquelas que queriam se casar com ele. Cada um para um canto desse planeta. E Vidal alí. No mesmo lugar. Assistia ao mundo como quem vê uma peça de teatro. Inerte ao que o roteiro lhe apresentaria.
Veio sua aposentadoria. Depois os problemas de saúde. E foi mais ou menos por aí que ele se perdeu em sua própria amargura. Havia se fechado por tanto tempo, quem nem mais um simples: "Bom dia" sabia trocar. Olhava para quem arriscasse o cumprimentar com estranheza e repúdio.
O velho Vidal não tinha bons dias. Nem boas tarde. Nem boas noites. Ele tinha dias, tardes e noites. Isso quando os tinha. Quando não os recusava. Os invertia. Os enganava. Isso quando não os humilhava com sua frequencia obrigatória cadenciada.

Morreu sentado no sofá da sala. Enterrado entre centenas de livros. De raridades que lhe deixariam ter um velhice muito mais confortável caso fossem vendidas a publicações próprias. Que pouquíssimas pessoas viram impressas.

Sua morte não foi percebida pela humanidade. Seus amigos não enterraram seu corpo com pompa e circunstância. O velho ficou ali, sentado por quase uma dezena. Até que seu corpo já cheirava tanto a ponto de fazer um ou outro vizinho sentir vontade de vomitar.
E foi por esse motivo, que o planeta soube da morte do velho Vidal: pela vontade de um vizinho vomitar.

Foi encontrado com as magras pernas cruzadas. Usando um casaco de lã grossa listrado. E um chapéu panamá cinza escuro com uma faixa bege. Nos pés tinha sandalhas. Um relógio no pulso esquerdo. Barba por fazer a dias. Olhos azuis abertos arregalados e um sorriso estampado.

Em sua mão a foto dela. Num preto e branco amarelado desses de antigamente antes do que era velho pra gente hoje. Ela sorria pra ele e bem no meio da fotografia. Somente seu busto jovem de menina moça pronta pra ter uma vida feliz. Antes da febre. Antes do coração trancafiado as correntes do inferno. Antes das décadas de amargura que Vidal sofreu.

Antes disso tudo. Ela lhe dera a foto e escrevera na base com uma tinteiro preto de ponta bem fina: "Para o amor da minha vida, Vidal !"



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