terça-feira, 10 de agosto de 2010

Segura na mão de Deus e vai.

Diz a lenda, que existe um grande Rio entre o mundo dos vivos e o mundo dos não vivos. Dizem também que o Rio foi feito com o dedo indicador de Deus, abrindo uma vala e a preenchendo com as lágrimas da humanidade. Mas Deus sabia que nem todas lágrimas eram verdadeiras, que por trás de algumas existiam pensamentos avesos a tristeza. Pois que as misturou sem titubear, dizendo a si mesmo:
"- Cada qual verá somente lágrimas semelhantes as que derramou..."
Quando visto da margem dos vivos o Rio é revolto e cheio de pedras ponteagudas. Nem nas margens ele se acalma, arrasta pequenos animais que ficam para trás. E nem a grama alí cresce... deixando a terra vermelha aberta. Como uma ferida molhada. O som da água lembra, as vezes, trovões de verão. Pois o Rio enche piscinas represadas por grandes pedras e quando estas transbordam, a violência da água é implacável.
Quando visto da margem dos não vivos, o Rio é calmo e limpo. A água é transparente e corre suavemente rumo as curvas do desconhecido. Gordos peixes dourados pulam comendo mosquitos e insetos que o sobrevoam. A luz do sol atravessa sua superfície o deixando brilhante como uma lampada. Do lado dos não vivos, flores de todas as cores crescem nas margens. E os mais belos pássaros cantam as mais lindas canções.
Dizem que na hora de nossa morte, nossa alma é levada até a margem do Rio. E vemos então as lagrimas que derramamos, pois a mais ninguém elas importam. Não importa se você chorou sozinho sofrendo ou se fingiu que sentia dor. Não importa se chorou preocupado com alguém ou se traiu a confiança de seu melhor amigo. Alí, de pé. Na beira do Rio, tu verás todas tuas lágrimas. De fato, ele será composto por elas. Pois como disse o poeta: viver é derramar um rio de lágrimas. E pobre de quem pensa que as lágrimas só saem dos olhos. Pobre de quem vê o mundo como o que o mundo se mostra. Pobre e coitado (no sentido etimológico da palavra, se referindo a extensão carnal de coitar).
Não amigos e amigas, alí não existe maquiagem ou desculpa. De pé na margem do Rio, com as solas dos pés tocando a terra vermelha e molhada. Nus como viemos a este mundo, é como devemos deixa-los. E não bastará fechar os olhos, pois como eu disse, pobre de quem acha que são eles que vertem as lágrimas. Não. Mesmo os cegos verão e os surdos ouvirão. E como num beco fechado, sem saídas. Confrontaremos nosso viver.
Todos erramos, nossa natureza é falha. Existem os que não admitem errar, e particularmente são os que mais me enojam.
Continuam as lendas, falando sobre um balseiro. Ele foi posto alí por um motivo. Antes do princípio das eras conhecidas, o Criador pensou:
"- Se tudo que vive morre, preciso permitir que os que quiserem voltem a mim. Para o recomeço do fim."
E deu ao balseiro sua balsa de boa madeira trançada com cordas brancas de linho, uma túnica grossa e um longo remo de sândalo. E lhe disse:
"- A ti, eu dou a tarefa de cobrar o que cada alma fez em vida. E munido disso, trarás a mim aqueles que puderem vir..."
O balseiro nada decide. Ele vem lentamente em nossa direção, arrastando o longo remo no lodo do rio revolto, subindo e descendo as águas atormentadas dos nossos dias. Mas parecendo fazer isso sem se esforçar. Ele para na margem e pergunta:
"- O que fizeste enquanto estava deste lado ?"
E nossas bocas falarão mesmo sem nossa vontade. Mesmo que tenhamos morrido mudos ou com nossas línguas arrancadas por lâminas enferrujadas e nossos dentes por sussetivos socos e pontapés. Ainda assim, ouviremos nossa própria voz dizer:
"- Eu fui bom..."
"- Eu fui ruim..."
"- Matei cinco inocentes e roubei treze carros..."
"- Abandonei minha família..."
"- Eu roubei tudo que pude de todos que consegui..."
"- Eu tentei meu melhor..."
"- Menti, traí e fugi..."
"- Não ajudei ninguém que não pudesse me ajudar..."
"- Roubei do povo o que eles não tinham..."
O balseiro já ouviu de tudo. Nada mais o impressiona. Ninguém vê seu rosto, nunca. Mas na verdade ele sorri por baixo do manto. Sorri, enquanto escuta nossos atos. Acha graça dos que roubam e matam. Acha graça dos bons e acha graça dos ruins. Pois nada lhe importa de verdade. A vida é um instante efêmero. Um momento que pode ser transformado em uma boa coisa ou em uma piada ruim. É como pensa ele.
Quando terminamos, ele pede que demos a ele o que mais fizemos com nossas vidas. Os que mais roubaram, sem se arrepender, tentam tomar-lhe o remo a força. Os que mais mentiram, tentam prometer-lhe algo. Os que mais mataram, tentam afoga-lo nas próprias lágrimas. Mas somente os que não foram de todo maus e ardilosos. Somente os que não tiveram raiva do viver, inveja ou maldade podre no coração lhe estendem a mão. E sobem na balsa.
Esses o balseiro carrega a outra margem, onde são recebidos por seus pais e avós. E pelos avós de seus pais, ao lado dos avós dos avós deles. Todos alí estão. Sorrindo em paz e satisfação em receberem mais um dos seus. E juntos, na eternidade dos grandes salões, a morte continua em seu mistério eterno. Deixando para além do véu da vida os segredos do terra e do firmamento.
Aos que tentam ludibriar o balseiro, pagar-lhe o dinheiro roubado durante a vida. Matar-lhe cruelmente ou enganar-lhe em mentiras eternas e pegajosas, a esses... O balseiro nega a passagem. E não há eternidade para eles. Haverá, numa próxima vida, vivida em pagamento a anterior. Outra chance. Mas antes, eles deverão viver algum tempo somente ao lado de seus iguais. Sendo enganados e mortos e roubados. Dia após dia. Até realmente se arrependerem do que fizerem e fizeram.

Mas isso, provavelmente, não passa de uma lenda idiota...

Hoje é um bom dia pra ouvir isso (COPIE E COLE):

http://www.youtube.com/watch?v=nOuKdeZ2x-M


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