segunda-feira, 10 de abril de 2017

Taças de vinho e conversas fulanas

Quando o médico lhe falou que o cancer não era bom, ele baixou a cabeça. 
As palavras do especialista ecoaram pelo consultório enquanto seu paciente encarava as próprias mãos enrugadas. 
"- ... então a melhor atitude agora é pensar nos teus preparativos Jairo...".
Silêncio. Daquele tipo de silêncio denso. Corpulento. Que não se desfaz sozinho.
O médico lhe deu espaço. Sabia que as pessoas reagiam de formas diferentes a essa questão. E se tu parar pra pensar, não é nada fácil. Abrir um envelope de papel timbrado com a logomarca de um laboratório. Ver os números. Os gráficos. Ler as análises. Levantar a cabeça e olhar para quem está na tua frente, dizendo:
"- A chance de cura é menor do que 1%. Você vai morrer em breve..."
"- Essa árvore é muito bonita Dr..." - disse Jairo tirando os olhos das mãos.
O médico continuou em silêncio. Franziu suavemente os lábios. E virou a sua cadeira para a grande janela que havia atrás da sua mesa. Ela dava pra um jardim. Um espaço utilizado pelos pacientes da clínica para tomar sol e se movimentar um pouco. Todo gramado. A árvore a qual o Jairo se referia era uma figueira de copa bem vasta. Dois enfermeiros conversavam na sua sombra, enquanto alguns pacientes caminhavam com a ajuda de andadores e bengalas pelo jardim. Aproveitando o sol da manhã.
O médico achou aquilo realmente muito bonito. Fazia tempo que ele não olhava pela janela. Consulta atrás de consulta, hospital, clínica, consultório, tudo tomava tempo demais. Ele virou a cadeira lentamente dizendo:
"- Olha Jairo, acredita em mim, eu sei que isso pode ser bem complicado..."
"- Não sabe não." - o interrompeu o paciente, movendo seus olhos com rapidez em direção aos do médico. - "você já disse para outras pessoas que elas vão morrer, eu sei... Mas ninguém nunca te falou isso...".
Os lábios do Dr. se franziram suavemente de novo.| Dessa vez junto com o cenho.
"- Ta certo... Eu nunca ouvi isso...Eu acho que devias conversar com a nossa psicóloga, ela pode te ajudar muito..."
"- Ela pode me fazer morrer mais devagar?"
"- Ninguém pode..." 
Jairo dobrou os joelhos se levantando, enquanto falava sem olhar o médico nos olhos:
"- Quanto tempo Roger? E não me diz que tu não sabe..."
Silêncio de novo.
"- Realmente depende muito do teu organismo mas não mais do que 3 meses, o cancer se espalhou..."
O paciente ficou de pé diante da mesa. Agora ele olhava para os próprios pés.
"- Jairo, não precisas ir embora agora. Espera um pouco, me deixa chamar a Dr. Sílvia aqui, vocês podem usar o meu consultório para conversar..." - mas o médico parou de falar. Ele reparou que o Jairo ria baixinho. Não um sorriso terno. Uma risada mesmo. Daquelas de quem escuta uma piada boa. Só que ele se controlava para não solta-la.
Como eu falei, o Dr. Roger sabia que cada pessoa reagia de um jeito diferente. Enfrentar o final iminente da vida pode revelar formas de desespero desconhecidas dentro de cada um de nós. Não seria a primeira vez que o médico veria alguém rindo de desespero. Nem a última...
"- Senta Jairo, por favor, espera alguns minutos..."
O paciente não aguentou, gargalhou alto. Sentou com lágrimas nos olhos, chorando de rir. Golfando ar pela boca, sem conseguir se controlar.
O médico observou preocupado.
"- Doutor... hahaha... Me desculpa..." - disse Jairo enxugando as lágrimas.
"- Está tudo bem... Não tem nenhum problema...".
"- É só que... hahaha. Desculpa... hahaha, tu tá pedindo calma e tempo pra alguém que acabou de saber que tem menos de 3 meses de vida... haha. Desculpa..."
"- Jairo, esperar 5 minutos não vai mudar nada... A doença não vai ir embora e nem piorar nesse tempo... Precisas sim ter calma..."
"- Não doutor. haha... 5 minutos pode ser tudo que eu tenho... Eu tenho netos, tenho filhos, tenho textos que não terminei de escrever, viagens que eu programei sem fazer... Tenho planos pra nossa empresa. Vinhos que eu quero experimentar. Tenho um charuto guardado em uma caixa com uma garrafa de uísque que preciso abrir. Eu me casei com o amor da minha vida... A mulher que mais amei, em toda minha existência. E agora eu preciso encontrar ela e falar que vou morrer. Não daqui a 30 anos... Daqui a 3 meses, antes provavelmente.... E tu me pede 5 minutos, me pede uma consulta de 1 hora com uma psicóloga... - as lágrimas corriam pelo rosto de Jairo - ... eu não preciso falar de mim doutor.
Eu preciso falar com eles. Dizer o que eu ainda não disse. Fazer o que eu ainda não fiz... Eles dizem que é por isso que se chama o cliente do médico de paciente... Porque é preciso ter paciência... Paciência para que doutor? Para morrer???"

Jairo se sentou.
O silêncio parecia tão denso que poderia ser cortado com uma faca.
O médico lhe olhava com uma das mãos tapando a própria boca.
Jairo moveu a boca para falar.
Não disse nada.

O médico baixou a mão e pensou em lhe dizer para falar, mas também não disse nada.
"- Obrigado Roger. Por tudo..." - Jairo disse olhando para baixo enquanto se levantava.
"- Jairo... Jairo..." - repetiu o médico enquanto o paciente saia da sala rapidamente.
O médico se levantou e foi até a porta, a tempo somente de ver o paciente saindo do consultório a todo vapor.
A secretária olhou o médico, o médico fez sinal de que estava tudo bem... E suavemente fechou a porta...
Dr. Roger se sentou na janela. Viu alguns pássaros voando sobre o gramado.
O sol da manhã tocou a sua pele pelo vidro e o calor foi reconfortante.

Ele fechou os olhos e pensou na sua filha. E na filha dela...
Alguém bateu na porta, era a secretária.

"- Dr. o exame da próxima paciente... Vou deixar aqui..." - colocando um envelope sobre a mesa. - " Tudo bem Dr. Roger? Posso ajudar em algo?".
"- Não, não, obrigado Dulce... Pode deixar, obrigado." - disse o médico abrindo o envelope e passando os olhos pelos números, gráficos e análises.
Outra morte, pensou.



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