quarta-feira, 15 de março de 2017

No dia em que o Gregory morreu, eu escrevi:

Depois de encarar a tela em branco do BLOGGER por quase 20 minutos, eu decidi escrever sobre a falta de ideia de como começar a escrever o que quero.
Ou seja, eu sou piegas até pra escrever. Uso a analogia da "desafiadora folha em branco", pra começar algo que não sei ao certo o que vai ser.
Ligo essa do Sigur Rós e deixo a música subir no volume mais alto que a minha vergonha permite. Do lado de fora da janela do meu escritório, o dia é cinza. Sem chuva, quente, com alguns pássaros voando e zigue-zague pela imensidão do céu.
Pois é, eu acendi um cigarro e fiquei olhando pro céu. Pensando em como eu não devia dizer nada, de novo. Mas aquela vozinha escrota dentro da minha cabeça continua dizendo:

"- Registra isso que estás sentindo. Um dia vais ler de novo. Faz isso."
Lá vai:

Hoje o cachorro da minha mãe, que era meu também, morreu.
Ele era um Yorkshire e tinha 17 anos de idade. Faria 18 esse ano. Em outubro. Seu nome do canil era Gregory Von Frau Schneider. Que brasileirando não diz nada além de "Gregory da Sra. Schneider". A sra. Schneider era a dona do canil onde ele foi comprado. Minha irmã o comprou, como um presente para a minha mãe. Mas a nossa casa toda o recebeu. Não no primeiro dia. Acho que cada um fez isso do seu jeito. Uns mais distantes. Outros mais receptivos. O Gregory era um baita cachorro. Carinhoso. Brincalhão. Divertidíssimo. E extremamente inteligente. Serio, ele era tão inteligente que as vezes nos assustava. Ele apontava para objetos com o focinho. Dizendo o que queria sem usar palavras. Ele nos chamava e nos guiava dentro da casa até a gaveta em que eram guardados os seus apetrechos de passeio (guia, coleira, etc...). E a gente perguntava:
"- Quer passear malandro?"
E ele sorria. Sim sorria e girava no próprio eixo do corpo dele.
Eu desconfio que o Gregory foi um cachorro diferente para cada um dos membros da minha família. Ele dormia todas (TODAS) as noites com a minha mãe. Sim, no inverno na cama. No verão no chão do quarto ou na caminha dele.
Ele nos recepcionava quando chegávamos de madrugada de festas. Já entrei muito na casa de minha mãe com o dia nascendo e fui recebido por ele com uma bola na boca. Abanando o rabo. Em posição de brincar, com as patas da frente no chão e as de trás de pé. E a gente rolava no chão. Ele rosnando sem morder, só pressionando os dentes de leve nas nossas mãos. A gente cheirando e beijando a cabeça dele.

O Gregory me acordava com muita frequência. Raspando as patas na base da porta do quarto. Até eu abrir, ele entrar, cheirar tudo. Me lamber o rosto algumas vezes. E depois sair. Como quem dissesse:
"- Eaí? O que estás fazendo? Massa, agora eu vou corre lá fora. Valeufalou!"
Que merda, esse texto tá virando exatamente o que eu não quero. Uma sequencia enfadonha de lembranças sentimentais sobre o bichinho. Bom, foda-se.
O últimos dois anos de vida do Gregory foram bem difíceis. A saúde dele piorou muito a partir do décimo quinto ano de vida. Começou sendo diagnosticado com artrose. O veterinário nos disse que não tinha o que fazer. Que a idade só permitia que a gente tratasse os sintomas. Mas que mesmo isso, depois de um tempo ia superar a medicação. Fizemos o possível, mas no final ele parou de correr. Se movimentava com dificuldade e sempre com a ajuda de alguém, que o pegava no colo e o levava até o destino. Fosse a área de serviço para fazer um xixi ou o pote de água.
No último ano, sua visão foi atacada. Seus olhos ficaram completamente turvos. Brancos. O mesmo veterinário foi muito paciente em nos explicar que ter um cachorro cego é uma grande dificuldade. E quando o questionamos sobre operar os olhos, ele deixou claro que com a idade do cachorro a cirurgia não valia a pena. Na verdade, era um risco para ele.
A conversa terminou com algo como:

"- Leandro, vocês deviam falar sobre uma possível eutanásia..."
"- Acho que não Dr."
"- Leandro, conversa com a dona dele. Vai ser bem complicado cuidar desse cachorro cego... Pensa bem...
"- Ok obrigado." - e fui embora.
Minha mãe nem quis ouvir sobre o assunto.

"- O Gregory vive o quanto ele quiser."
"- Ok mãe."
A ideia de terminar a vida dele, era pesada demais pra gente.
Enquanto ele não estivesse sofrendo, ele ficaria vivo.
Nos últimos três meses, as coisas mudaram de novo. Ele teve uma pequena convulsão. Depois passou por períodos em que se recusava a comer e a beber água.
Eu via minha mãe chorando e sabia que deixar o cachorro assim, só ia piorar tudo.
Falei com a namorada de um amigo, que também é veterinária e ela não acreditou em mim quando eu disse que tinha um York com 17 anos.

"- É muito velho Leandro!"
Era mesmo, eu sabia.
Em uma dessas crises, minha mãe aceitou que eu o levasse a um veterinário. Ele estava mal. Isso era claro para quem olhasse para ele. Combinei:
"- Amanhã de manhã eu passo aí e pego ele, ok?"
"- Ok!" - respondeu minha mãe e desligou o telefone.
No dia seguinte, eu entrei na casa dela. E qual foi meu espanto quando vi o cachorro comendo banana e chorando por mais.

"- Ele tá bem! Melhorou!" - ela disse chorosa.
Não acreditei.

Se passaram quase duas semanas até a próxima crise. Demorou, mas veio.
Da última vez que o vi, ele me olhou enquanto eu fazia carinho na sua cabeça. Eu sabia que ele estava cego, mas sabia que ele sabia quem eu sou.
É ruim dizer adeus. Adeus, talvez seja o verdadeiro motivo de eu escrever essas palavras. Dizer adeus, interrompe o que se vive. Para o que está acontecendo. Finda o que se tem. É como dizer: "

"- Ok, agora deu."
E aquilo acaba.

Lógico, que as lembranças que temos, nunca serão apagadas. E também é óbvio que eu prefiro lembrar dele me convidado pra passear, roubando restos de comida da churrasqueira, brincando com os seus brinquedos. Do que dele no fim.
E não é ser egoísta. Não, é lembrar dele do jeito que ele foi realmente. Não um cão cego moribundo.
Mas um dos melhores amigos que eu tive na vida.

Um amigo que sabia quando eu estava triste. Quando queria brincar. Um amigo que sempre teve uma lambida para acalentar um dia difícil.
O Gregory foi comprado pela minha irmã, e ele veio de um canil que tinha várias ninhadas de York juntas. Minha irmã escolheu o Gregory, porque acho ele lindo. Ele estava lá sentado com aquelas fitas azuis nas orelhas a olhando. Ela o pegou, ele a lambeu o rosto. Ela o comprou.
Anos depois descobrimos pelo pedigre dele que o cachorro havia nascido um dia depois da morte do meu velho pai.

Eu sempre gostei de pensar que os dois se cruzaram na porta desse mundo.
Meu pai de saída.
O gregory de entrada.
Meu velho gostava de cães grandes, tipo pastor alemão capa preta. Ele deve ter olhado para o Gregory e dito algo como:

"- Cuida deles cachorrinho!"
E ele respondido:
"- Pode deixar Beduschi. Eu cuido!"
E assim que a minha mãe o viu, ela que sofria pela morte do meu pai, sorriu. Eu jamais vou esquecer desse dia.
E talvez, nem seja o meu amor pelo Gregory que me faça chorar enquanto escrevo essas palavras. E sim pelo o que ele fez.
A vida do Gregory, nos ajudou a esquecer da morte de um ente querido. Só quem abre seu coração para um amor verdadeiro sabe a dor que o fim dele lhe dá.

Eu tenho uma árvore de pedra no peito. Gravo nela o nome das pessoas que eu amo e que já partiram. Gravo nela o nome das pessoas que a ordem natural me obriga a dizer adeus.
Ela só tem nome de pessoas. De familiares. De amigos e amigas que a vida foi levando.
Mas eu não acredito que nenhum deles vai se importar se eu adicionar o nome do Gregory.


"Que o caminho seja gentil com as tuas patas grande amigo. Espero te ver de novo. Sempre estarás no nossos corações Gregory Von Frau Beduschi. 
Com todo amor, Leandro."

Pronto cara, agora podes correr pelo imenso gramado verde da eternidade. Onde toda comida é carne e presunto. E todas as bolinhas de plástico sempre voltam exatamente para a tua boca.
Espero te ver de novo um dia.
Até lá, fique em paz.


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