terça-feira, 2 de maio de 2017

Lembrem-se de mim - ele disse.

Era outono. Um final de tarde daqueles de cinema. Céu amarelo, vermelho, roxo e negro. Ventava um vento ameno. Que fazia a grama dançar na calma de cada lufada. Os galhos das árvores uivavam com o atrito do ar. Era um daqueles momentos silenciosos, de pesar. De não se esquecer tão cedo. Mesmo onde estávamos, no campo aberto, do lado de fora da casa parecia ser um lugar fechado. Um comodo do mundo. Um cantinho bendito entre a terra e o firmamento. Uma ponte para o além. Para o depois do que vem.
Quase era possível ver a cortina da eternidade suavemente flamulando. Se entreabrindo e entrefechando.
"- Ela está aqui..." - ele balbuciou com os olhos perdidos no céu e sorriu.
Mais de uma pessoa perguntou "quem?", mais de uma pessoa queria saber "quem está aqui?". Alguns de nós nada disseram. Eu acho que ele falava do fim. No feminino. Como sendo a morte, talvez... Ela deve ser a causadora da partida. 

A viagem. 
A jornada.
Não dá pra explicar tudo com palavra, caro(a) leitor(a), mas gosto de pensar que o silêncio respondeu a todas as perguntas.

Eu não me considero um ser humano religioso. Nunca me fez muito sentido a ideia de "pai celestial". De um criador provedor da existência. Um causador de bençãos ou maldições. De um juiz capaz de devolver erros ou acertos a cada ser de acordo com a sua conduta.
Mas isso nunca me fez descrer na espiritualidade. Eu gosto de pensar, por mais idiota que seja declarar isso, de que esse plano extraterreno, extramundado é distante da nossa perspectiva de acerto e erro. Releva essa ideia de bom e ruim. De positivo e negativo.
Vai ver, foi por isso que ele sorriu ao dizer "ela está aqui...". Ele sorriu como que vendo além dos átomos e moléculas. Ele viu o que para nós é invisível. É irrelevante. E que talvez para o resto do universo seja a essência.
E por um segundo hipotético, não mais do que isso, por um instante, um respiro. Um momento, eu vi que ele não se importava mais. Que de alguma forma ele entendeu que aquele corpo velho e cansado. Aquele veículo doente e usado, tinha encontrado seu ponto final.
Segurei a sua mão enrugada. Suas unhas bem feitas e delicadas. Seus pelos finos e brancos, bem espaçados. Sua pele fina e frágil, de tantos sóis e tantas chuvas. De tantos cortes e tantas lutas. De tantas roupas e uniformes. De muitos amores. De dias de vida e desse dia de morte.

Movi meus olhos e vi seus olhos me olhando. Não éramos só nós que estávamos tristes, o mundo estava chorando.
"- Sem choro..." - ele disse rápido. Quase grosso. Como quem diz com pressa. Sem tempo para perder o trem que não o espera. Sem tempo para perder a onda que tudo leva.
"- Lembrem-se... de mim..." - disse sorrindo um sorriso bonito. De dentes amarelados de cigarros e vinhos. Com lábios finos. E uma barba rala, sem compromisso, sem expectativa. Ainda sorrindo, piscou seus olhos azul turquesa. Com suas sombrancelhas hirsutas.
E suspirou.
Um suspiro final.
De quem solta o ar sem de novo puxar.

A vida sempre termina no suspiro, me disse uma professora de yoga. Me lembro disso, quando expiro.
Ele suspirou para nunca mais expirar.
Devolveu o ar ao mundo sorrindo. Sem de novo puxar.

Vá em paz, tu que vais partir. Segue teu caminho, não precisas mais estar aqui. Fica tranquilo, escuta minhas palavras: essa dor que sentimos um dia passa. Teu rastro será só amor. A lembrança que tu nos deixa é de vida. E a vida precisa sempre continuar.
Tu cumpriu teu papel. Sem exceder nada. E nada faltar.
A saudade que sentimos é a saudade que deixamos.

Amanhã nos encontraremos.
Palavras não resolvem o que não entendemos.
Te vejo mais tarde.
Te vejo do lado de lá.

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