quarta-feira, 2 de março de 2016

Aquele velho.

Fugia do verbo. Mas quando chorava bebia as próprias lágrimas. Gostava da chuva, mas sempre preferiu o gosto das maçãs. Jamais existiu mandinga mais forte que seu pensamento positivo. Tinha santo forte. Adorava olhar céus estrelados. Se sentia constelação. Assistia dias nascerem, quase sempre se emocionando. Como se fossem os últimos. Como se a vida não tivesse fim. Como se janelas fossem passagens extraplanares para dimensões distantes. Fazia sua rotina cantar. Tomava banho de Beatles. Cortava as unhas com Rubel. Cozinhava à Phill Veras. E apresentava Dônica as pessoas como se fosse um velho amigo de infância. Desenhava papeis e paredes. Guardava seus textos em gavetas. Queimava cigarros com gosto de café. E tentava a anos gostar dos filmes de Godard. Imaginava como seria envelhecer. Como seria se ver morrer. Como seria descobrir todo o mistério que cerca o segredo além dessa existência. Sempre me dizia que a vida era só o prelúdio. Que havia mais. Mas nunca me falou de Deus, mandamentos ou dízimo. E se alguém o questionava sobre essas coisa, sobre a hipocrisia humana, ele contava uma piada. Sempre das ruins. E ria como criança. Golfando no ar até lágrimas lhe escorrerem os olhos. Nunca se encaixou entre as outras pessoas. Ele precisava do seu espaço. Sofria muito com isso. Muitos o erravam nas palavras. Mas não eram as palavras que o machucavam. Palavras são só palavras. Era a crueldade alheia. A vontade de ver sofrer é que lhe doía mais. Um dia me escreveu uma carta dando adeus. Perguntei para onde ele ia? Não sei, respondeu calmo, e tu vais para onde? Não entendi. Eu acho que nunca entendia. Compartilhávamos diálogos longos, cheios de silêncio. Líamos lado a lado. Acendíamos nossos próprios cigarros vendo as chamas dançarem no imprevisível. Um dia eu cheguei no seu apartamento, para lhe contar novas novidades da ultima semana. Mas ele não estava lá. Sem cartas. Sem bilhetes. Sem nada. Por muito tempo, pensei que ele fosse fruto da minha imaginação. Que ele nunca existira realmente. Me peguei olhando para os cantos dos cômodos. Vendo sua imagem em baixa opacidade passar por mim. Apontando quadros nas paredes, atuando como atores de filmes antigos, chorando, sorrindo e cantando. Quando me percebi, escorriam lágrimas dos meus olhos. E antes que a primeira caísse, eu a bebi com a ponta da língua. E lembrei que ele sempre estaria em mim. 

Como a vida que se dá pra quem se deu. 
Ele, enfim, cedeu.

Sem comentários:

Enviar um comentário