(REPOST DA PARTE I - continuação abaixo): O Rei e o Reino.
Há um homem cansado, sentado na salão. Seu cansaço repousa sobre o trono real. E logo acima da sua cabeça velha, de fios brancos, lutas e dias tantos, existe uma coroa. Antes dourada, hoje manchada, mas ainda cravejada de pedras, rubis e diamantes. Suas mãos enrrugadas, magras e fracas, já foram grandes mãos de um guerreiro. Admirado, temido, faminto por vitórias e nunca vencido. O salão estaria vazio se não fosse por ele. Sua respiração produz núvens brancas de vapor invernal. Sobre seus ombros, um manto veradeiramente real. Vermelho cor sangue. Com taxas de metal e brancas bordas esvoaçantes, sem igual. Lá está ele, sentado ao trono sobre o último degrau. Como quem dissesse ao próprio reino:
"- Vejam todos, estou no ponto mais alto do Reino. Acima de qualquer montanha ou de qualquer desejo. Aqui, vos digo amigos e inimigos: temei-me. Pois ao som da minha voz, frias lâminas afiadas deslizarão pelos seus pescoços. E como o sol rompendo o turvo véu da madrugada, o sangue brotaria pelo horizonte vermelho, sem desculpas ou demoras! Brutal, como a força da natureza. E rápido como a cauda da raposa que desaparece no bosque distante dos olhos do caçador. Temei-me. Pois sou implacável!".
Mas nada diz ele. Nenhuma palavra é parida por aquela boca soterrada na funda barba de décadas e mais décadas de vida. Não caro leitor. Aquele homem cansado, imponentemente sentado, no ponto mais alto do castelo coroado, poderoso como um Deus alado, está calado. E seus olhos avermelhados, estão petrificados sobre o nada que sua mente busca desvendar. O vazio desesperador e pálido, de um mundo complicado. Intrigado. Como quem faz um cálculo estelar colossal sem mover um músculo. Ensaiando o movimento de peça por peça do tabuleiro de xadrez com a mente. Imaginando os reflexos, os movimentos perplexos, a missão, o objetivo e o nexo! Tudo ao mesmo tempo. De cenho franzido. Respirando ofegante pela boca seca. Até que na porta se ouve uma batida. Um único som.
TUUMMMM - ele faz.
E ecoa o carvalho pelo salão, como um tambor de guerra.
Não reage nosso Rei. Nem a púpila se move. Permanece. E então vagarosamente apoia as costas no trono. E deixa a cabeça cair levemente para trás. Não move os braços, ou as pernas. Ele pende como um sino da igreja. E finalmente, sem desespero ou aviso pronuncia as palavras:
"- Entre." - e quem ouve sabe que é uma ordem.
A porta se abre de imediato.
O som das dobradiças rangendo rasgam o ar.
E o silêncio do salão é substituido por um momento.
Estranho.
Pelo justo vão da porta, passa um pequeno corpo. Magro. E desliza pelo salão como uma cobra rasteja à relva. Até se ajoelhar diante do trono, com o capuz cor verde musgo escuro. E ficar em silêncio.
O Rei espera.
A criatura mal se move.
E então se ouve:
"- Acabou?"
"- Sim majestade! Acabou! A coroa tem a vitória. O Senhor, venceu..."
"- Não Kallabeth, com a sua idade você já deveria saber...
...não existem vencedores na guerra. Existem sobreviventes. As vezes, nem isso meu filho..."
PARTE II: O Rei e o Príncipe.
O silêncio se ergue após da boca do Rei se fechar.
O príncipe Kallabeth o encara com olhos jovens. Suado. Cansado da batalha. Com medo e um turbilhão de raiva e paixão entrelaçados como uma longa e espessa trança no cabelo de uma moça na flor da idade. Fio perfilado a fio, quase como uma cobra venenosa. Sua mente transa quase uma dezena de pensamentos ao mesmo tempo, confuso como os jovens podem ser depois de derramar sangue, de sentir pele e ossos se abrindo ao golpe de sua espada.
"Tanto horror... mas vencemos!" - pensa Kallabeth enquanto deixava a mente vaguear por um universo de lembranças recentes e anseios. Até que algo o draga de volta com a força de uma cachoeira que impõe ao rio qual caminho seguir.
Os olhos do Rei o encaram com frieza. Ele conhece aquele olhar, não é o olhar do seu pai. Os dois pares de olhos se sustentam por um breve momento.
"Preciso saber se ele está pronto! Por favor garoto, esteja pronto..." - o Rei pensa enquanto diz:
- Nosso generais já estão aqui?
- Sir Ulv´Mir padeceu em combate senhor. - responde o príncipe - os outros dois devem estar chegando, se já não estiverem no castelo... ordenei que o corpo fosse trazido, limpo e vestido com sua armadura. Junto com as tropas.
"Excelente garoto!" - pensa o Rei. Ele olha para uma pequena mesa lateral ao trono. Uma pequenina xícara, delicadamente ornamentada repousa. Sua mão a alcança com gentileza e ele beberica um gole sem retirar os olhos do Príncipe.
- Vamos convocar a família de Sir Ulv´Mir, a viuva e os dois filhos. Eu darei a notícia a eles, a viuva receberá o soldo permanente do General. Em respeito aos serviços prestados por seu magnifico esposo. E um dos filhos poderá seguir a patente do pai quando a hora chegar...
"O mais novo é promissor, o mais velho é arrogante e indisciplinado. Mas ele não se importa com isso agora..." - pensa Kallabeth.
Continua o Rei:
-... Sir Ulv´Mir será cremado na pira real. A cidadela será fechada por 2 dias...
-... e somente depois desses 2 dias, as tropas poderão entrar. Fazendo um desfile pela rua principal, limpos, armados, alimentados e completamente bêbados. - completa o príncipe Kallebeth enquanto interrompe o Rei.
"Muito bom filho..." - pensa o Rei enquanto encara seu filho.
- Exatamente. Uma festa para romper o luto. - lhe diz.
- E um herói para justificar a causa... - diz Kallebeth sorrindo enquanto se levanta.
"Até aqui, perfeito. Mas e o que mais você tem ai garoto?" - pensa o Rei.
Continua o príncipe agora de pé:
-... minha majestade receberá nossos dois generais, de armadura polida, descendo de seus cavalos na escada na entrada do Palácio...
- Sim - diz o Rei - com honras, música e pétalas de flores coloridas sendo jogadas ao vento sobre nós. E você? - lhe interpela com uma sombrancelha erguida.
"Vamos lá! Me impressione Kallabeth, coroe nossa vitória diante do Reino! " - pensa o Rei.
O príncipe se empertiga, deixando a coluna reta, movendo suavemente os ombros para trás. E mesmo ainda sujo de sangue seco nas mãos e na face. Levanta levemente seu queixo magro. E esboça um suave sorriso com um dos lados da sua boca. Suave o suficiente para existir, mas nada ousado. E então diz:
- Após os aplausos, após o Rei beijar a face dos generais, após as tropas entrarem dançando, cantando, beijando as meninas da rua, por último a tudo isso me apresento eu. Armado, vestido com a capa branca, montando um brutalmente gigantesco manga larga da infantaria, limpo e ornamentado. Para descer diante de vossa majestade, saudar a população, subir as escadas e me ajoelhar aos teus pés...
"Sim..." pensa o Rei "... o nascimento de um herói vivo! O filho que merece a coroa sobre sua cabeça!"
- Você será recebido como um herói! - diz o Rei.
Forma-se um silêncio pétreo entre os dois.
- Mas não serei coroado... - diz a voz do príncipe em um tom consideravelmente mais baixo.
"Fico feliz que seja você a dizer isso, filho..." - pensa o Rei enquanto diz:
- Ainda não... - deixa a voz morrer enquanto o encara.
"Mas esse é um passo importante..." - pensa o príncipe enquanto diz:
- Eu entendo PAI! - e lhe encara com um olhar duro.
O Rei se move no trono enquanto se levanta e diz:
- Venha até aqui - lhe esticando uma das mãos.
Kallabeth prontamente avança sobre os degraus e toma a mão do seu pai que lhe puxa para si. Enquanto enrola seus braços ao redor do tronco do príncipe. Lhe segura com força pela nuca e diz ao seu ouvido:
- Mas ser coroado herói dessa vitória é o passo mais importante que você já deu em direção a esse trono...
- Eu entendo pai! - lhe diz o príncipe.
O Rei se solta do filho dizendo:
- Agora vá, você tem muito o que fazer. E não esqueça de me enviar a viuva de Ulv´Mir ainda hoje.
O príncipe concorda com a cabeça.
E enquanto fecha a porta da sala do trono, pensa:
"- A vida de Ulv´Mir é uma excelente barganha pela coroa..." - e sorri um sorriso ácido.
Após a saída do príncipe, o corpo do Rei desmorona sobre o trono.
Há silêncio no grande salão escuro. Até que a boca real diz:
- Não me deixe esquecer disso: na próxima estação depois da neve, o príncipe estará pronto para assumir a coroa.
E uma voz vinda da escuridão do salão responde monocordicamente:
- Como desejar Majestade!.
- Aproxime-se amigo, você já ficou tempo demais no seu esconderijo.
E um homem alto, com ombros largos, usando capa e capuz escuros como a noite sai de trás de uma coluna escondida.
- O que me diz? Ele está pronto? - pergunta o Rei.
O homem retira o capuz, enquanto caminha vagarosamente em direção ao trono e responde:
- Ele enviou Sir Ulv´Mir para um flanco de batalha da qual nenhum dos homens saíram vivos. Todos foram esquartejados pelas lâminas adversárias. Cavalos, homens, capitães e até o General... - respira fundo enquanto se senta no degrau mais alto, bem próximo do trono.- "... no começo achei que fosse um erro que custaria toda batalha!
O Rei o encara com um olhar sombrio.
- Depois percebi que a falange do velho Ulv´ era composta por soldados mais velhos e rapazotes ainda verdes. E que pelo tamanho, o inimigo precisaria despender muitos homens e força para segura-los. Se o inimigo não fizesse isso, seria rompido ao meio e perderia. E se fizesse, o centro e o lado oposto iriam devora-los. Kallabeth garantiu a vitória, sobre todas as outras coisas. Caso Sir. Ulv´Mir vencesse, nós venceríamos. Caso Sir. Ulv´Mir falhasse, como falhou, a coroa teria um herói morto, um príncipe herói vivo e a mesma vitória... - e se cala.
O Rei leva sua mão ao próprio queixo e diz:
- Garantir a vitória é a primeira regra.- se cala por um instante até continuar - E ser coroado herói enquanto cumpre a primeira regra, pode ser um bom passo...
O homem sentado ao pé do trono respira fundo novamente e diz:
- Foi o que nós fizemos Kallarth...- e lhe lança um olhar ameno - ... seu filho está fazendo exatamente o que nós dois fizemos a 25 anos atrás... e sorri.
O Rei continua lhe encarando. Menos como Rei e mais como homem enquanto diz:
- Meu pai estava louco, nobre amigo... Ele ordenou que eu trouxesse a cabeça da minha mãe em um baú com moedas de prata... - diz olhando para o vazio a sua frente.
O homem responde:
- E nós fizemos o que precisava ser feito para que um homem louco deixasse a coroa para você, e que sua mãe pudesse morrer de velhice, confortável e segura no palácio de verão...
O Rei permanece encarando o vazio enquanto o homem se levanta e recoloca o capuz. Desce os degraus do trono e suavemente se vira para trás dizendo:
- Não demore muito para dar a coroa à Kallebeth, meu amigo... Ele estará pronto em muito breve!
Sem lhe olhar o Rei acena com a cabeça, concordando...
"Um último teste e saberemos!"- acena enquanto pensa.