quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A VELHA LOBA

Nas terras ao Norte, não importa em que tipo de solo seus pés pisem, todos moradores conhecem a história da velha Loba. Para alguns, a história é antiga como o tempo. Mas não espere encontra-la em estátuas, ou tomos das bibliotecas e universidades. A velha Loba é uma história contada pelos avós junto a fogueira. E mesmo que para alguns, sejam somente histórias, ela nunca desaparece por completo...

Dizem que antes das cidades terem muros e dos rei usarem coroas, o homem vivia mais perto da natureza. Curávamos nossas feridas com folhas e ervas, cuidávamos das nossas crianças com frutas e flores. E acima de tudo e todos, respeitávamos a natureza. Caçávamos sim, mas nunca filhotes. Colhíamos e plantávamos nos campos. Mas haviam muitos lugares que não ultrapassávamos. O elo entre os homens e a terra era vivo e forte. Sadio e equilibrado. 
De tempos em tempos, saiam das florestas densas para os bosques abertos, homens e mulheres que falavam com os animais. Que se camuflavam como se fossem invisíveis aos olhos desatentos. Que conheciam palavras antigas para curar e fazer a natureza ajudar na colheita, na doença e na vida de todos. Essas pessoas quase sempre viam acompanhadas de muitos animais, e quando partiam anunciavam que esse seria o tempo de uma dessas criaturas. Houveram assim, muitos registros de anos do falcão, da lontra, do pequenino tordo negro, do bisão e dos lobos... Infelizmente, o homem se esquece. E mesmo que de tempos em tempos a natureza reafirmasse o acordo, com o passar das gerações, cada vez menos de nós recebia o povo da floresta de forma apropriada. O tempo dos animais não durava um ano humano. Ele durava o quanto durasse. E só seria alterado quando uma dessas pessoas se apresentasse e por fim, declarasse seu novo nome. Por séculos, recebemos o povo das florestas com música, comida, bebida. Dançando com nossas melhores roupas, com flores nos cabelos das meninas e até os mais velhos dobravam os joelhos em respeito a eles. A sua chegada, era sempre requisitado água limpa. O povo da floresta a tomava e muitas vezes se banhava com ela, sem pudor. Após, pedia-se que os doentes lhes fossem trazidos. E um por um eram examinados e consultados. Aos curáveis, curas rápidas e naturais eram ofertadas. Aos incuráveis, davam-se longas conversas ao pé do ouvido. Muitos dos que não tinha cura, sorriam diante da entidade. Agradeciam. Se ajoelhavam e os abraçavam. Após esse período, o povo da floresta conversaria com todos que tivessem perguntas. Dos menores até os mais velhos. Sem distinção. Eles dormiam pouco, sempre ao redor das vilas. Comiam frutas e as vezes carnes, sempre perguntando como foi a caçada. Quem abateu a presa. E demonstrando respeito pelo alimento. Era um tempo de ouro. Muitas vidas foram salvas, por cura, conhecimento e acolhimento.

Mas o tempo passou.

E houve um novo capítulo dessa história, onde poucos e cada vez menos se importavam.
Não vou lhes contar sobre quantas vezes as criaturas da floresta esperaram junto as clareiras. Sozinhas. Sem nenhuma fogueira ou abraço, como recepção, até partirem... Não vou lhes dizer de como as criaturas da floresta ficaram cada vez mais agressivas. De como os corvos e falcões atacavam as crianças ou de como as matilhas de lobos rompiam a escuridão e desapareciam carregando um ou dois dos nossos, sem qualquer aviso. Ervas venenosas começaram a crescer entre nossas folhas e as árvores davam frutos cada vez menores ou simplesmente nenhum...
Houveram aqueles entre nós que tentaram avisar. Que em conciliuns (reuniões oficiais) foram ridicularizados. Chamados de velhos e inúteis. Grupos de homens se armaram com metal e raiva, entrando fundo nas florestas. Pouquíssimos retornavam. Um desses grupos, teve somente um sobrevivente. Um jovem homem que não tinha 20 verões de vida. Ele voltou nu, pedindo para falar com os anciões. E um aviso ele transmitiu. Daquela data, em exatamente 4 estações, haveria um reencontro. E se fosse o desejo do homem, pacificar-se com a natureza, essa possibilidade existia. Porém, essa seria a última chance. Após isso, nunca mais.
Esse moço foi encontrado enforcado em uma árvore, fundo na floresta, pouco tempo depois. Em seu rosto havia um risada demoníaca. Algo não humano, algo selvagem...

Os dias flutuaram como folhas que boiam sobre um rio. Descendo em direção ao mar, sem parar. E quando a data se aproximou, muitos de nós se negaram a participar. Mas um grande grupo se formou. Pessoas vindas de várias vilas e até cidades distantes. Todos conhecedores das histórias. E foi lá que ela apareceu...

 


Velha, como diz o nome. Pequena, com um metro e meio de altura, ou menos. Cabelos brancos como a neve. Profundos olhos azuis cintilantes tal qual água de uma caverna escondida. Movia-se de uma forma sobrenatural, não humana. Com longos dedos das mãos e pés. Coberta por tecido fino e delicado. E com um sorriso escancarado nos lábios.
Primeiro sua cabeça surgiu de dentro de um vasto arbusto. Como se fosse um coelho em um corpo de velha. Levou poucos instantes para sumir e reaparecer metros a sua própria direita, farejando com o nariz como um javali procura por trufas. Dali, ela se ergueu em pé. Mexeu nos cabelos com as mãos estabanadas, claramente sem intimidade com a ação... Então ouviu-se um longo e firme uivo lupino vindo das trevas da mata. Ela olhou sobre o próprio ombro, mas sem mover seus pés. Seu tronco girou rápido, sem dificuldades. E quando voltou para a pequena multidão que assistia tudo em silêncio, ela sorria com dentes pontiagudos, inumanos. Depois, novamente se ergueu sobre as pernas e deu alguns passos em direção as pessoas. Mas ela andava de forma alegórica, movimentando excessivamente as ancas e os ombros. Como se estivesse fingindo ser uma humana. Movendo o pescoço para os lados a cada passo. Até que depois de alguns metros, ela caiu no chão grunhindo. As pessoas se entreolhavam, confusas.
Foi um dos conselheiros do Rei que disse:
"- Ela está caçoando... !?" - sem ninguém entender se isso era uma afirmação ou uma pergunta.
Os grunhidos se transformaram em risada. E a risada se transformou em uma tosse, mais rouca do que deveria ser. Para tossir, a velha se pôs sobre os 4 membros e com os joelhos no chão, ficou parecida com um gato expelindo bolas de pêlo... Até que foi parando. E como se tivesse lembrado do que estava fazendo. Diante daquelas pessoas. Estacou. Olhando para todos com as pupílas erguidas até a própria testa, como faz um cachorro acoado. Antes do bote.
E ali rosnou, bem baixinho primeiro.
"- RRrrrrRRRRRRããããrrrrrrRRRRR" - ela fez com o fundo da garganta. E as mães pegaram seus filhos no colo. Então tossiu mais e parou de novo.
Então, pela primeira vez falou:
"- Nos darão carne..." -  ela resmugou. E poucos a ouviram.
Então repetiu mais alto:
"- Nos darão carne!" - disse se levantando.
E um dos nobres presentes a respondeu:
"- Claro, claro... Que tipo de carne querem? Basta dizer e trare..."
"- Carne viva!" - e sorriu um sorriso cheio de dentes.
As pessoas suspiraram de medo. Uma mãe correu de volta para a vila segurando seu bebê que gritava. A velha a olhou com um suave relance de sua cabeça.
"- Carne viva? Uma va-vaca?" - retrucou o nobre dando um passo para trás.
Ela lhe olhou e um longo uivo foi ouvido.
"- Nos darão carne, daqui a 5 noites. Mas não nos darão seus animais. Nos receberemos sua carne, crianças, mulheres, velhos, homens, o que for. 2 cabeças de carne. Aqui nessa clareira. Cinco noites..."
"- E se nos recusarmos?" - disse um soldado com a espada em punho.
E vários rosnados diferentes vieram da escuridão da mata.
"- Aí nós pegaremos toda carne que quisermos, em 5 noites. Escolham duas cabeças, vivas. Aqui. Ou cedam o que nós quisermos. - e sorriu como se preferisse a segunda opção - Cinco noites." e recuou para trás se movendo sobre os 4 membros. Encarando a multidão.
Até parar na beirada da mata, ficar de pé e dizer:
"- Houve um tempo em que nós eramos amados, cediamos a vocês nossos filhotes, nossas crias, nossas mães e pais. Vocês entravam na mata, tomavam nossa carne e partiam para se nutrir do nosso sangue... Mas vocês pararam de nos amar. Pararam de nos receber. Pararam de nos honrar. Agora, esse é o preço para que voltemos. Sua carne, viva. Aqui. Cinco noites."
E sumiu...

sábado, 5 de outubro de 2024

Ode cardiáco.

Existe um lugar distante, longe de tudo.
Em que a vida é sempre infante.
E o tempo não provoca luto.
Um lugar escondido.
Secreto à tudo.

Guardado no peito calado.
Habita,
meu coração
mudo.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O busto parado
na praça
Assiste a vida
que passa

Toma chuva
no tempo
Sente o pó
do vento

Sem pressa,
o busto 
espera
a sua
hora