(REPOST DA PARTE I - continuação abaixo): O Rei e o Reino.
Há um homem cansado, sentado na salão. Seu cansaço repousa sobre o trono real. E logo acima da sua cabeça velha, de fios brancos, lutas e dias tantos, existe uma coroa. Antes dourada, hoje manchada, mas ainda cravejada de pedras, rubis e diamantes. Suas mãos enrrugadas, magras e fracas, já foram grandes mãos de um guerreiro. Admirado, temido, faminto por vitórias e nunca vencido. O salão estaria vazio se não fosse por ele. Sua respiração produz núvens brancas de vapor invernal. Sobre seus ombros, um manto veradeiramente real. Vermelho cor sangue. Com taxas de metal e brancas bordas esvoaçantes, sem igual. Lá está ele, sentado ao trono sobre o último degrau. Como quem dissesse ao próprio reino:
"- Vejam todos, estou no ponto mais alto do Reino. Acima de qualquer montanha ou de qualquer desejo. Aqui, vos digo amigos e inimigos: temei-me. Pois ao som da minha voz, frias lâminas afiadas deslizarão pelos seus pescoços. E como o sol rompendo o turvo véu da madrugada, o sangue brotaria pelo horizonte vermelho, sem desculpas ou demoras! Brutal, como a força da natureza. E rápido como a cauda da raposa que desaparece no bosque distante dos olhos do caçador. Temei-me. Pois sou implacável!".
Mas nada diz ele. Nenhuma palavra é parida por aquela boca soterrada na funda barba de décadas e mais décadas de vida. Não caro leitor. Aquele homem cansado, imponentemente sentado, no ponto mais alto do castelo coroado, poderoso como um Deus alado, está calado. E seus olhos avermelhados, estão petrificados sobre o nada que sua mente busca desvendar. O vazio desesperador e pálido, de um mundo complicado. Intrigado. Como quem faz um cálculo estelar colossal sem mover um músculo. Ensaiando o movimento de peça por peça do tabuleiro de xadrez com a mente. Imaginando os reflexos, os movimentos perplexos, a missão, o objetivo e o nexo! Tudo ao mesmo tempo. De cenho franzido. Respirando ofegante pela boca seca. Até que na porta se ouve uma batida. Um único som.
TUUMMMM - ele faz.
E ecoa o carvalho pelo salão, como um tambor de guerra.
Não reage nosso Rei. Nem a púpila se move. Permanece. E então vagarosamente apoia as costas no trono. E deixa a cabeça cair levemente para trás. Não move os braços, ou as pernas. Ele pende como um sino da igreja. E finalmente, sem desespero ou aviso pronuncia as palavras:
"- Entre." - e quem ouve sabe que é uma ordem.
A porta se abre de imediato.
O som das dobradiças rangendo rasgam o ar.
E o silêncio do salão é substituido por um momento.
Estranho.
Pelo justo vão da porta, passa um pequeno corpo. Magro. E desliza pelo salão como uma cobra rasteja à relva. Até se ajoelhar diante do trono, com o capuz cor verde musgo escuro. E ficar em silêncio.
O Rei espera.
A criatura mal se move.
E então se ouve:
"- Acabou?"
"- Sim majestade! Acabou! A coroa tem a vitória. O Senhor, venceu..."
"- Não Kallabeth, com a sua idade você já deveria saber...
...não existem vencedores na guerra. Existem sobreviventes. As vezes, nem isso meu filho..."
PARTE II: O Rei e o Príncipe. (continuação abaixo)
O silêncio se ergue após da boca do Rei se fechar.
O príncipe Kallabeth o encara com olhos jovens. Suado. Cansado da batalha. Com medo e um turbilhão de raiva e paixão entrelaçados como uma longa e espessa trança no cabelo de uma moça na flor da idade. Fio perfilado a fio, quase como uma cobra venenosa. Sua mente transa quase uma dezena de pensamentos ao mesmo tempo, confuso como os jovens podem ser depois de derramar sangue, de sentir pele e ossos se abrindo ao golpe de sua espada.
"Tanto horror... mas vencemos!" - pensa Kallabeth enquanto deixava a mente vaguear por um universo de lembranças recentes e anseios. Até que algo o draga de volta com a força de uma cachoeira que impõe ao rio qual caminho seguir.
Os olhos do Rei o encaram com frieza. Ele conhece aquele olhar, não é o olhar do seu pai. Os dois pares de olhos se sustentam por um breve momento.
"Preciso saber se ele está pronto! Por favor garoto, esteja pronto..." - o Rei pensa enquanto diz:
- Nosso generais já estão aqui?
- Sir Ulv´Mir padeceu em combate senhor. - responde o príncipe - os outros dois devem estar chegando, se já não estiverem no castelo... ordenei que o corpo fosse trazido, limpo e vestido com sua armadura. Junto com as tropas.
"Excelente garoto!" - pensa o Rei. Ele olha para uma pequena mesa lateral ao trono. Uma pequenina xícara, delicadamente ornamentada repousa. Sua mão a alcança com gentileza e ele beberica um gole sem retirar os olhos do Príncipe.
- Vamos convocar a família de Sir Ulv´Mir, a viuva e os dois filhos. Eu darei a notícia a eles, a viuva receberá o soldo permanente do General. Em respeito aos serviços prestados por seu magnifico esposo. E um dos filhos poderá seguir a patente do pai quando a hora chegar...
"O mais novo é promissor, o mais velho é arrogante e indisciplinado. Mas ele não se importa com isso agora..." - pensa Kallabeth.
Continua o Rei:
-... Sir Ulv´Mir será cremado na pira real. A cidadela será fechada por 2 dias...
-... e somente depois desses 2 dias, as tropas poderão entrar. Fazendo um desfile pela rua principal, limpos, armados, alimentados e completamente bêbados. - completa o príncipe Kallebeth enquanto interrompe o Rei.
"Muito bom filho..." - pensa o Rei enquanto encara seu filho.
- Exatamente. Uma festa para romper o luto. - lhe diz.
- E um herói para justificar a causa... - diz Kallebeth sorrindo enquanto se levanta.
"Até aqui, perfeito. Mas e o que mais você tem ai garoto?" - pensa o Rei.
Continua o príncipe agora de pé:
-... minha majestade receberá nossos dois generais, de armadura polida, descendo de seus cavalos na escada na entrada do Palácio...
- Sim - diz o Rei - com honras, música e pétalas de flores coloridas sendo jogadas ao vento sobre nós. E você? - lhe interpela com uma sombrancelha erguida.
"Vamos lá! Me impressione Kallabeth, coroe nossa vitória diante do Reino! " - pensa o Rei.
O príncipe se empertiga, deixando a coluna reta, movendo suavemente os ombros para trás. E mesmo ainda sujo de sangue seco nas mãos e na face. Levanta levemente seu queixo magro. E esboça um suave sorriso com um dos lados da sua boca. Suave o suficiente para existir, mas nada ousado. E então diz:
- Após os aplausos, após o Rei beijar a face dos generais, após as tropas entrarem dançando, cantando, beijando as meninas da rua, por último a tudo isso me apresento eu. Armado, vestido com a capa branca, montando um brutalmente gigantesco manga larga da infantaria, limpo e ornamentado. Para descer diante de vossa majestade, saudar a população, subir as escadas e me ajoelhar aos teus pés...
"Sim..." pensa o Rei "... o nascimento de um herói vivo! O filho que merece a coroa sobre sua cabeça!"
- Você será recebido como um herói! - diz o Rei.
Forma-se um silêncio pétreo entre os dois.
- Mas não serei coroado... - diz a voz do príncipe em um tom consideravelmente mais baixo.
"Fico feliz que seja você a dizer isso, filho..." - pensa o Rei enquanto diz:
- Ainda não... - deixa a voz morrer enquanto o encara.
"Mas esse é um passo importante..." - pensa o príncipe enquanto diz:
- Eu entendo PAI! - e lhe encara com um olhar duro.
O Rei se move no trono enquanto se levanta e diz:
- Venha até aqui - lhe esticando uma das mãos.
Kallabeth prontamente avança sobre os degraus e toma a mão do seu pai que lhe puxa para si. Enquanto enrola seus braços ao redor do tronco do príncipe. Lhe segura com força pela nuca e diz ao seu ouvido:
- Mas ser coroado herói dessa vitória é o passo mais importante que você já deu em direção a esse trono...
- Eu entendo pai! - lhe diz o príncipe.
O Rei se solta do filho dizendo:
- Agora vá, você tem muito o que fazer. E não esqueça de me enviar a viuva de Ulv´Mir ainda hoje.
O príncipe concorda com a cabeça.
E enquanto fecha a porta da sala do trono, pensa:
"- A vida de Ulv´Mir é uma excelente barganha pela coroa..." - e sorri um sorriso ácido.
Após a saída do príncipe, o corpo do Rei desmorona sobre o trono.
Há silêncio no grande salão escuro. Até que a boca real diz:
- Não me deixe esquecer disso: na próxima estação depois da neve, o príncipe estará pronto para assumir a coroa.
E uma voz vinda da escuridão do salão responde monocordicamente:
- Como desejar Majestade!.
- Aproxime-se amigo, você já ficou tempo demais no seu esconderijo.
E um homem alto, com ombros largos, usando capa e capuz escuros como a noite sai de trás de uma coluna escondida.
- O que me diz? Ele está pronto? - pergunta o Rei.
O homem retira o capuz, enquanto caminha vagarosamente em direção ao trono e responde:
- Ele enviou Sir Ulv´Mir para um flanco de batalha da qual nenhum dos homens saíram vivos. Todos foram esquartejados pelas lâminas adversárias. Cavalos, homens, capitães e até o General... - respira fundo enquanto se senta no degrau mais alto, bem próximo do trono.- "... no começo achei que fosse um erro que custaria toda batalha!
O Rei o encara com um olhar sombrio.
- Depois percebi que a falange do velho Ulv´ era composta por soldados mais velhos e rapazotes ainda verdes. E que pelo tamanho, o inimigo precisaria despender muitos homens e força para segura-los. Se o inimigo não fizesse isso, seria rompido ao meio e perderia. E se fizesse, o centro e o lado oposto iriam devora-los. Kallabeth garantiu a vitória, sobre todas as outras coisas. Caso Sir. Ulv´Mir vencesse, nós venceríamos. Caso Sir. Ulv´Mir falhasse, como falhou, a coroa teria um herói morto, um príncipe herói vivo e a mesma vitória... - e se cala.
O Rei leva sua mão ao próprio queixo e diz:
- Garantir a vitória é a primeira regra.- se cala por um instante até continuar - E ser coroado herói enquanto cumpre a primeira regra, pode ser um bom passo...
O homem sentado ao pé do trono respira fundo novamente e diz:
- Foi o que nós fizemos Kallarth...- e lhe lança um olhar ameno - ... seu filho está fazendo exatamente o que nós dois fizemos a 25 anos atrás... e sorri.
O Rei continua lhe encarando. Menos como Rei e mais como homem enquanto diz:
- Meu pai estava louco, Bär... Ele ordenou que eu trouxesse a cabeça da minha mãe em um baú com moedas de prata... - diz olhando para o vazio a sua frente.
E Bär lhe responde:
- E nós fizemos o que precisava ser feito para que um homem louco deixasse a coroa para você, e que sua mãe pudesse morrer de velhice, confortável e segura no palácio de verão...
O Rei permanece encarando o vazio enquanto o homem se levanta e recoloca o capuz. Desce os degraus do trono e suavemente se vira para trás dizendo:
- Não demore muito para dar a coroa à Kallebeth, meu amigo... Ele estará pronto em muito breve!
Sem lhe olhar o Rei acena com a cabeça, concordando...
"Um último teste e saberemos!"- acena enquanto pensa.
PARTE III: O Príncipe e o Reino. (continuação abaixo).
Madrugada. De uma noite sem estrelas. No alto de um pequeno monte, havia uma labareda acesa. Ela lambia os gravetos e bailava sobre a brasa. Ao seu redor, alguns homens, de perto ou de longe, pareciam repousar.
- Sabe como os soldados chamam essa parte da noite? - disse o principe Kallebeth enquanto mexia a panela de ferro preto que soltava uma coluna de vapor ao céu.
"- De hora do lobo..." - pensou Zarrin.
- Me diga majestade - lhe respondeu Zarrin encarando a escuridão.
- Eles chamam de hora do lobo! - disse o príncipe buscando lhe olhar nos olhos.
- Porquê será majestade?? - "Porque era quando as matilhas atacavam as vilas, nos séculos antes de nós..." - perguntou e pensou Zarrin.
- Isso eu não sei! - respondeu o príncipe.
Haviam dias que estavam naquelas campinas. Deixaram a capital do Império a semanas. Haviam saido a noite, em pouco mais de 15 homens. Todos montados e sob o comando do príncipe.
"- Encontre esse bando e resolva essa questão. Uma coroa que não cuida das regiões mais afastadas do reino, não é digna de respeito, Kallabeth. E sem respeito, não há coroa alguma que lhe de poder..." - Lhe dissera seu pai.
As notícias chegaram dias após o fim da grande batalha. Com praticamente todos soldados reais retornando à capital, o império vivia uma onda de violência e terror. Sem leis além da lâmina das espadas. O Rei prontamente despachou soldados para os quatro cantos do mapa. E é claro que faltavam homens. Foi então que Kallabeth foi convocado e levou sua guarnição pessoal a região chamada Campinas da Aurora. Um grande trecho agrícola ao leste, de onde vinha a maior parte dos grãos e batatas que alimentavam todo império. Tudo aqui é subordinado ao Barão Lore´L. Um homem de idade madura, que recebeu o título a poucos anos. Após a morte de seu tio por doença. O Barão possui homens o suficientes para fazer a coisa toda funcionar em períodos de paz. Mas dada a situação, as caravanas foram saqueadas, seus homens mortos. Ele correu para dentro dos portões, fechou tudo e enviou batedores ao Império.
"CAOS NA AURORA, LADRÕES E ASSASSINOS DOMINAM AS CAMPINAS! ESTAMOS PRESOS NO CASTELO. NECESSITAMOS DE AJUDA IMEDIATA!"
Dizia a mensagem do único batedor que chegou vivo.
- Quantos de vocês foram enviados? - perguntou o Rei ao ler a mensagem.
- Seis majestade! - respondeu o homen ofegante, ajoelhado a sua frente.
E as mãos do Rei amassaram o papel com raiva. Ele sabia o que isso significava. Somente este havia chego ao seu destino.
- Zarrin, algo lhe perturba... - diz o príncipe rasgando o silêncio da noite fria.
- Esse silêncio majestade. Essa noite está mais silenciosa do que deveria... - disse o homem usando corselete de couro com taxas de metal. Enquanto examinava o breu noturno, sentado junto a fogueira.
O príncipe moveu seus olhos pelo horizonte. Tudo parecia calmo e negro. Nada além disso. Uma noite como outra qualquer... Mas Zarrin era além de um grande amigo, filho de Grozza´R Bär. O principal conselheiro do Rei e do Império. Um homem gigantesco, um guerreiro singular e um mestre em diplomacia e na arte da guerra. Zarrin e Kallabeth haviam crescido juntos. E eram como irmãos em tempos de paz.
- Aquela coruja está voando para cá? - disse um dos homens sentados.
Os outros olharam para a direção em que ele apontavam.
- Chega de cerveja para você Kalben... - disse outro enquanto alguns riam da brincadeira.
Mas Kalben se levantou dizendo:
- Olha lá, aquela coruja... ela tá vindo pra cá!!
O pássaro estava alguns tantos metros do chão e realmente voava na direção dos homens, muito rápido... Mas alguns instantes antes de pousar, pôs suas asas para trás e a cabeça para baixo, enquanto paria girar o corpo em um movimento de contorção não natural. Suas penas se ouriçaram e ela tremeu com se estivesse tendo um ataque. E de repente, uma mão humana surgiu de dentro do seu corpo. Seguida de um braço e uma perna, e uma cabeça que trouxe um pescoço e em menos de um piscar de olhos a coruja desaparecia e dava lugar a um homem de meia idade. Com uma longa barba emaranhada cobrindo a maior parte do rosto, roupas de tons marrom e negro. Seus cabelos eram negros e completamente desarranjados. Tinha uma estatura pequena, uma leve corcunda. Ele ficou no chão com um joelho dobrado e uma das palmas tocando a relva.
Os homens se levantaram de imediato enquanto ele caia, o aço foi retirado da bainha e os soldados avançaram com rapidez e violência, prontos para a morte como foram treinados. Mas uma voz gritou acima de todos, os fazendo parar imediatamente:
- ESPEEEEEEEEREM! - disse Zarrin
E o próprio príncipe Kallabeth estacou diante da sua voz.
- Majestade, cautéla! Ele não precisa ser um perigo. Principalmente se estiver só...
O príncipe ofegava, inundado pela ira e pelo perigo que sua jovem mente perceberam. Seus olhos eram como brasas e seus músculos estavam prontos para dar o comando de morte daquela coisa.
- Calma agora Kallabeth! Lembre-se de tudo que aprendeu até aqui... - disse Zarrin movendo os olhos para o homem coruja.
O homem se levantou erguendo as mãos, tossia como um idoso. Até parar e limpar a barba como antebraço, como um bebâdo faz depois de um longo e nada saudável trago...
- Isso não é bom. Nada bom. Nada, nada, nada bom... - ele disse levantando os olhos em direção aos homens armados a sua frente - Eu diria boa noite!
- Quem... O que é você??? - bradou um dos soldados com raiva na voz.
- O nome é Krot! Mas não vou ficar chateado se vocês me chamarem de Coruja.
Estou aqui para falar com o jovem príncipe. Ela me mandou. - respondeu o velho.
- Ela!? Que "ela"??? - disse outro soldado.
- Abaixem seu aço amigos - disse Zarrin caminhando a frente de todos - vamos ouvir este, antes de mata-lo - Talvez nem precisemos... - e sorriu.
O velho lhe encarou por alguns instantes antes de dizer:
- Não morrer, é uma boa parte do meu plano. Não vim aqui para derramar nenhum sangue, nem de vocês e principalmente não o meu.
Um longo silêncio se formou.
Daqueles silêncios que incomodam quem o escuta.
- Venha até mim - disse o príncipe Kallabeth - lhe ouvirei.
PARTE IV: O Reino e a loba. (continuação abaixo).
O sol raiava. Kallabeth e Zarrin haviam corrido através do amanhecer e pela maior parte deste dia. Seus cavalos que agora ofegavam, quase no limite. Eles perseguiram Krot, voando baixo como uma coruja. Cruzando plantações de milho e batatas, de trigo e parreiras de uvas. Passaram por estradas e terrenos fechados. Sem respeitar os acessos, cruzaram riachos e pequenos bosques. Haviam corrido no limite de seus animais e suas próprias pernas lhes lembravam de que a tarefa de um mensageiro montado nunca é tênue. Por vezes, a coruja desaparecia no breu da noite e eles seguiam seus chirriados. Para depois reencontra-la pousada sob um galho na saída de um parreiral. E sem nenhuma cortesia, chirriar alto e alçar voo novamente. Como quem reclamasse da lentidão dos cavalos e dos cavaleiros.
Correram o mais rápido que puderam, até perde-la de vista novamente. Então ao longe, avistaram suas asas batendo, voando em círculos sobre um denso bosque, quase no limite entre as Campinas da Aurora e a cordilheira conhecida como Os Ossos, que erguiam seus paredões ao fim das árvores. Moveram-se rapidamente na direção da coruja que ao ve-los, entrou no bosque por cima das árvores.
"- Veja como aquele bosque tem árvores grandes..." - disse Kallabeth.
"- Sim, são grandes porque são antigas. As mais antigas que já vi na vida..." - respondeu Zarrin.
Os dois cavalos foram refreados no limite das árvores. Kallabeth saltou e acalmou seu animal lhe fazendo carinho no pescoço.
"- Oooooooh, oooooh calma agora." - dizia enquanto Zarrin também descia e observava a espessura dos troncos. A alguns metros no seus interior a selva se fechava em uma sombra escura e densa.
"- Será que devemos entrar?" - questionou Zarrin, quase que como a si próprio.
"- Eu não desejo entrar aí..." - lhe respondeu o príncipe.
Foi quando o velho Krot saiu caminhando da escuridão. Mancava levemente de uma perna. E o som dos galhos quebrando sobre seus pés fez os cavalos relhincharem alto.
"- Boa corrida meninos, boa corrida..." - lhes disse sorrindo um sorriso branco no meio uma barba desorganizada - "... um pouco lentos, mas bastante obstinados. Eu diria hehehe..." e tossiu.
O príncipe e seu amigo o encararam com desconfiança.
"- Agora, vocês precisam ouvir o velho Krot. Sim, sim. Ouçam bem, porque tudo precisa ser feito de um só jeito. Ela não gosta de surpresas." - e fechou o sorriso em um rosto de pedra dizendo - "E é bom vocês respeitarem o jeito que ela gosta das coisas... Sentem-se comigo." - disse se sentando na relva.
Krot havia dito no acampamento de Kallabeth, que a velha Loba queria lhe ver. Alguns soldados riram, a menção da velha Loba era como uma história folclórica para crianças pequenas. A história de uma Loba gigantesca, do tamanho de uma carroça, forte como cinco touros. Que caminhava pelo Reino ajudando os bons e punindo os maldosos. A velha Loba se transformava em humana, ou coisa parecida de tempos em tempos. Uma franzina idosa, de cabelos grisalhos e pele fina como neve. Frágil como um graveto seco. A história sempre foi contada pelas avós e mães. Para meninos desobedientes e ousados. Mas ao mesmo tempo, com respeito era ouvida. E sem troça era recebida. A velha Loba, afinal, poderia mesmo ser real...
Kallabeth e Zarrin ouviram tudo que Krot tinha a dizer. E a oferta foi feita:
"- Ela deseja falar com o príncipe. Seus corvos e outras criaturas avisaram da sua chegada a dias. Em troca, a velha Loba lhe garantirá a solução que buscam nessa campina, sua segurança no trajeto de ida e volta do encontro e um presente que somente o príncipe poderá receber. Essas foram as palavras que me comandaram, majestade. O que diz o Senhor?" - disse Krot lhe encaram os olhos.
Sentados na frente do antigo bosque o velho Krot diz:
"- Esse bosque é onde ela escolheu para invernar da última vez que acordou. Em uma caverna na clareira bem ao centro. Vocês foram convidados à entrar. Mas podem caminhar somente sobre a água do riacho que corta o bosque por aquele lado - e apontou - vocês não podem pisar foram do riacho, entendem?"
E os dois jovens concordaram com estranhamento.
"- A velha Loba vai aguardar vocês no cair da noite de hoje. E é quando vocês precisam entrar. Não antes. Durmam, haverá frutas e água fresca a sua espera. Quando a tarde cair, entrem desarmados e caminhem até encontrarem a caverna na lareira. Ela estará lá."
Krot se levantou, seguido pelos jovens. Foi até os cavalos e com um movimento rápido de uma adaga curta, rompeu os cintos que seguravam as celas e cabrestos. Os animais pareceram gostar.
"- Comam e bebam meus irmãos - disse fazendo carinho sobre as faces dos animais - descansem e se revigorem. Eu vos agradeço por tudo que fizeram desde o nascimento."
"- Os cavalos estão dobrando as patas???" - perguntou Zarrin.
Diante do silêncio de Kallabeth enquanto os dois assistiam o que parecia ser um agradecimento mútuo, de Krot e dos dois cavalos.
Antes de partir, Krot se virou a Kallabeth e dobram o joelho sob a relva disse:
"- A muitos séculos atrás, minha linhagem serviu ao último Rei que respeitou o acordo. Ela era o pai do seu bisavô. Sir Katrion Akasthar..." - e se levantou enquanto dizia - "... espero que você jovem Kallabeth Akasthar, possa um dia ser novamente minha majestade." - e sorriu um sorriso perdido no meio dos pelos da barba. Depois disso desapareceu nas sombras da mata.
Circundando o bosque, um pequeno riacho vinha da campina e entrava pelas árvores. Havia uma pequenina queda de água, com pedras redondas cheias de limo verde escuro. O cheiro e o som da mata faziam do lugar um ponto pacífico e agradável. Haviam flores brancas e alguns peixes na água. Na beira do riacho, sob a grama, várias frutas haviam sido dispostas. Morangos, peras amarelas, mangas e laranjas doces. Kallabeth e Zarrin comeram e beberam a água transparente do riacho. E depois dormiram profundamente a sombra dos enormes galhos.
PARTE V: A epifania. (continuação abaixo).
"- Kallabeth, acorde! KALLABETH!".
Kallabeth abriu os olhos. Ele não estava mais no riacho na entrada do antigo bosque. Ele se sentia estranho. Um pouco bêbado, lento, ouvindo a própria respiração e o próprio coração pulando no peito.
"- Aonde estou?" - perguntou confuso.
Ao seu redor, tudo parecia feito de fumaça. Mas não fumaça negra ou cinza. Fumaça colorida, distorcida, confusa. Havia um chão sob seus pés, ele era de pedra como o de um castelo. Kallebeth esticou sua mão e tocou o piso, sentindo a areia fina sobre as lajotas.
"- Pó? Alguém precisa limpar esse lugar, está imundo..." - divagou.
"- KALLABETH" - ouviu uma voz gutural o chamando e se virou, era a imagem de um guerreiro. Alguém que ele conheçou, ou que já havia visto o rosto antes. Era gigantesca, com o tamanho de três ou quatro homens. Desumana, mórbida.
"- Eu conheço você..." - balbuciou se levantando.
"- TU NÃO ÉS DIGNO DA COROA KALLABETH!" - aquilo disse lhe apontando o dedo indicador - "TU NÃO SERÁS REI!".
"- O que?" - disse confuso coçando os olhos...
"- Kallabeth, Kallabeth, Kallabeth" - ouviu outra voz próxima a ele. E olhou sobre o ombro direito. Era um rapazote, jovem, nem 15 anos. Falando rápido, agitado. - "Eu fui mais importante do que foste... E eu só carreguei uma mensagem! Veja só, que humilhante ser você hahahahaha" - gargalhou e lhe apontou o dedo.
Sim, me lembro de você, a estátua do jovem Kartonix. O adolescente da minha linhagem que salvou o Império por carregar uma mensagem na antiga Grande Guerra. Você tem a idade do meu avô... mas como? O que?! - pensou confuso.
"- Príncipe, veja só, o que faz aqui?" - ouviu outra voz.
Se virando viu Sir Grozza´R Bär, só que diferente. Mais velho, e maior. Do tamanho de dois homens comuns.
"- Sir, o que está acontecendo?! - pergunou tentando dar um passo em sua direção. Mas suas pernas não lhe atendiam. Era lento e pesado. Aquele passo demorou uma vida inteira para acontecer, difícil e desconfortável - "Sir Grozza, aonde está meu pai? O que está havendo? Me ajude, lhe peço!" - esticou as mãos dizendo.
Mas o velho Bär gargalhou e apontou o dedo indicador em seu rosto dizendo:
"- Vejam, vejam, o principezinho vai chorar! HAHAHAHAHA"
E várias risadas ecoaram ao seu redor. Vultos saídos da fumaça colorida que distorcia qualquer compreensão. Confusão. Seu joelho dobrou. Sentiu uma profunda dor nas costas. Uma facada? Girou o pescoço o mais rápido que pode.
Seu pai.
"- Pai, o que é isso? Você me apunhalou??? PAI???" - perguntou caindo. Tudo era lento e moroso.
"- Kallabeth - lhe disse o Rei - ouça a Loba. Ouça sua voz..." - sua voz parecia a voz do seu pai em uma caverna. Distante, ecoada.
"- Pai, mas que merda? O que é isso? Pai me ajude..." - se debatia o príncipe tentando tirar a lâmina das costas.
"- Ouça minha voz garoto!" - e Kallebeth parou de tentar e lhe olhou da forma mais rápido que conseguiu. Aquele homem era seu pai. Só que mais jovem. Vestia a armadura prateada. Uma capa vermelho sangue. Tinha os cabelos e barba bem cortados. Um sorriso jovem e amigável no rosto.
"- Pai, o que está havendo?" - perguntou o príncipe sentindo agonia e dor.
"- Não há tempo para explicar isso. Mas me ouça, guarde minhas palavras sim?" - lhe disse o pai se abaixando em sua direção e tocando seu rosto com as mãos frias.
"- Sim pai... Sim!" - respondeu Kallabeth tentando se conceentrar.
"- Ouça o que a velha Loba tem a lhe dizer. Meu avô, seu bisavô, ele era um homem terrível. Um acordo foi feito. Um acordo antigo como nosso Reino. Nós deveríamos manter nossa palavra. Mas o acordo foi quebrado. E o preço veio. Agora temos uma nova chance... Ouça a Loba meu garoto."
"- Sim pai... Mas aonde estou?"
"- Não tenha medo meu filho. Não tema. Ouça minha voz..." - lhe disse o pai tampando seus olhos com as palmas das mãos frias.
Kallabeth abriu seus olhos.
"- Pai? PAI? AONDE?" - ele estava deitado na relva. Ao lado do riacho, próximo a floresta. Estava se sentando enquanto falava.
Na sua frente, Kallabeth viu Zarrin dentro da água. Completamente nu.
"- Calma príncipe! Calma!" - lhe disse o amigo esticando a mão em sua direção.
"- Zarrin, porque você está nu?" - perguntou Kallabeth dando um passo em direção da água.
"- Porque eles mandaram..." - respondeu Zarrin.
"- Eles quem? O que está acontecendo?" - perguntou o príncipe vendo seu amigo apontar o dedo para a margem.
Kallabeth sentiu a água molhando suas pernas. Era gelada, mas molhou somente até as coxas. Se virando para a margem viu que no terreno acima deles haviam pelo menos cinco ou seis lobo. Com tonalidades entre brancol, cinza, preto e marrom. Eram grandes como vacas. Desproporcionais em relação a um homem comum. Estavam se movendo lentamente, em conjunto. Circundando a água do riacho. Mostravam suas presas do tamanho de facas, rosnando com os olhos fixos em Kallabeth e Zarrin.
"- Caralho!" - tomou um susto o príncipe - "o que é isso?"
"- Eles estavam aqui quando acordei..." - disse Zarrin - "... veja, o sol está se pondo. Dormimos o dia inteiro! E haverá chuva..." - apontando para o horizonte - "... eu despertei com o seu delírio. Você falava coisas sem sentido. E eu rolei para a água..."
"- CRIANÇAS!" - disse uma voz além da colina e um homem adulto se aproximou deles caminhando sob a relva - "É CHEGADA A SUA HORA DE ENTRAR EM NOSSA MORADA! NOSSA SENHORA LHES AGUARDA!". Ele vestia roupas simples. Tinha cabelos e barbas negros. Parecia ter no máximo cinquenta anos de idade. Os lobos se moveram em sua direção, passando seus dorsos e cabeças pelas pernas do homem. Como um cardume de peixes se aproxima de pão em uma lagoa.
Os dois ficaram lhe olhando, de forma assustada.
"- PRÍNCIPE, DEIXE SUAS VESTIMENTAS NA MARGEM E VÁ NA FRENTE. VOCÊS ESTÃO SEGUROS..." - falou.
Kallebeth se despiu. Ficando nu como em seu nascimento. Os lobos rosnavam grunhindo todo tempo.
O príncipe e Zarrin se apressaram em direção ao bosque, caminhando com as pernas dentro da água gelada... enquanto passavam a fronteira dos altos galhos e grossos troncos, uma chuva fina começou a cair.
Ouviram então o uivo de um lobo. Muito alto. Assustador e uníssono com o vento.
"UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUÕÕÕõõõ...."
Agora não há mais volta! - pensou Kallabeth.
PARTE VI: A Loba e o Príncipe. (continuação abaixo).
"- Essas árvores parecem ainda maiores do que as da entrada..." - disse Zarrin.
Também acho - pensou Kallabeth - e está ficando mais escuro também.
A mata ao redor também havia mudado. Os arbustos avançavam uns sobre os outros, até o perder da vista. Por vezes, a luz do sol passava pela fresta deixada entre os galhos e iluminava um ponto do chão. Mas na maioria do tempo, as árvores formavam uma espécie de teto que praticamente impedia a visão do céu.
Desde que entraram, Zarrin e Kallabeth caminharam sem parar. Ao som de sapos, algumas corujas e as vezes algo maior que se movia na vegetação terrestre, a espreita. A sensação de estarem sendo observados era constante. E pouco os dois conversaram além do estritamente necessário.
Em determinado ponto, o riacho ficou mais fundo. E mais fundo. E mais. Até que seus pés pararam de tocar as pedras do leito. Foram então flutuando na correnteza. A água parecia ainda mais gelada ali. Esse rio, parecia desproporcionalmente grande para o bosque que viam do lado de fora. As margens foram gradativamente se abrindo e em algum momento a correnteza ficou perigosa. Fazendo a água saltar alto, a cada choque nas grande pedras pelo caminho.
Zarrin e Kallabeth se perderam de vista. Gritaram seus nomes e tentaram se comunicar como puderam. Mas sem exito. As árvores pareciam vergar sobre as águas, formando um túnel de galhos e folhas que tornava tudo escuro e soturno.
Foi em uma curva qualquer do rio, que as águas se acalmaram sem explicação. E sem qualquer motivo explicável, terminavam em uma grande lagoa de água escura. Quando Zarrin chegou a esse ponto, encontrou Kallabeth lhe esperando com água pela cintura. Próximo a margem pedregosa. A lagoa era circundada por uma clareira. Tudo ficava bem próximo do penhasco que era visível na entrada do bosque.
"- Príncipe!" - esclamou Zarrin
Que respondeu com um sinal de silêncio.
"- Ali, há um vulto naquela caverna..." - disse baixinho Kallabeth.
Zarrin cerrou os olhos enquanto sussurrava de volta:
"- É a última luz do dia... Será noite em breve... A quanto tempo estás aqui?"
"- Pouco, mas desde que cheguei aquilo não se mexe. Você vê?"
"- Vejo. Acho que é ela..." - disse Zarrin avançando sobre a margem - " Olá! Saudações! Viemos a pedido de um homem que se apresentou como Krot. Meio homem, meio coruja talvez...?"
E ouviu uma coruja chirriar em uma árvore próxima.
"UOH-UOH" - fez a ave.
Zarrin olhou para as árvores procurando. E quando moveu seu rosto novamente só pode ouvir a voz de Kallabeth
"- ZARRIN..." - ele gritava.
Havia uma senhora a sua frente. A menos de um metro. Cabelos brancos e lisos. Do tamanho de uma menina de quinze anos de idade. Usava um manto de seda branco que lhe cobria todo corpo, menos os pés. Estava limpa, apesar de haver bastante barro no chão. Seus olhos eram azuis claros, singelos. Na sua boca havia um sorriso desenhado pelos lábios finos, sem dentes e o olho esquerdo ficava mais aberto que o direito. Zarrin tomou um susto, dando um passo para trás. Era uma figura peculiar. Levemente corcunda e com a pele marcada por cicatrizes finas e longas.
"- Oh me desculpe..." - disse instintivamente.
"- Olá jovem mestre..." - respondeu ela com uma voz fina como uma nota alta de um violino e fria como uma lufada de vento invernal que não pede licença para invadir uma casa.
"- Olá?!..." - respondeu Zarrin de forma bastante retraida.
A senhora moveu a cabeça para o lado, tirando Zarrin do seu caminho e mirando seus olhos azuis na água, onde Kallabeth saia da lagoa. Fazendo sapos pularem coaxando sob seus pés. Então disse com uma voz muito calma:
"- Isso não é algo que vemos todo dia... Sangue real, nu como no nascimento, vindo até nosso covil com um simples convite. Tsc, tsc, tsc. Isso não é algo que vemos todo dia... Não, não..." - e sorriu novamente enquanto fazia uma leve flexão da coluna.
Kallabeth ficou visivelmente desconfortável, mas deixou a coluna reta enquanto dizia:
"- Saudações nobre Senhora! Viemos a convite de Krot, o "homem-coruja", se é assim que o chamam... Pretendemos ter uma conversa com aquela que ele diz ser a "Velha Loba". Seria a senhora?"
"- Sim seria... hehehe, tsc, tsc, fala muito bem para uma criança tão jovem. Foi bem ensinado, foi sim. Isso é importante, muito importante, caminhar e falar bem. Gosto do que vejo aqui..." - respondeu a velha fazendo um meio círculo ao redor da Kallabeth.
"- Essa clareira está cheia de espectadores! Há corujas demais nas árvores, sapos demais na lagoa, sombras demais na floresta... Lobos, cães de guerra, cavalos!? São gigantescos..." - pensou Kallabeth, observando o espaço enquanto a mulher o rodeava.
"- Aaah não são cavalos... Não são!" - respondeu ela, mesmo sem ele ter dito uma palavra.
E quando ela disse as palavras, os olhos de Kallabeth voaram na direção dos olhos dela. Que o encarava sem sorriso. Com calma. Prostrada a alguns metros do corpo do príncipe.
"- Ela sabe o que penso!" - pensou automáticamente.
E a viu sorrir um sorriso com dentes pontiagudos. Desumanos.
"- O que queres conosco?" - Kallabeth disse dando um passo para trás.
"- Com vocês, bem pouco, quase nada!" - ela lhe respondeu - "... mas contigo!? Posso querer muito! Quase tudo!"
Kallabeth ficou em silêncio. Aquilo parecia uma ameaça velada. Mas o jovem príncipe havido sido muito bem treinado, ela tinha razão. Passara mais de um ano da vida morando junto a um homem que chamavam de Sillas, o artesão. Ele foi o feiticeiro do seu avô. Era velho e ajudado por meninos e meninas que deveriam ser treinados nas artes mágicas e da mente. O príncipe foi um desses garotos com a idade entre treze para quatorze anos. Muitas vezes, haviam travado batalhas e jogos mentais, que Kallabeth confundia com sonhos. E que sempre eram iniciadas e encerradas por Sillas. Apesar de não ter nenhuma capacidade mágica, Kallabeth se lembrava de alguns movimentos mentais úteis.
Então descansou sua mente. Se deixando levar pelos sons das aves e da água. Não aceitou nenhum pensamento vocalizado, barrando sua fonte na essência da ideia. Fazia tempo, era como meditar profundamente. Sem fechar os olhos. Sem perder a percepção.
Ouviu a voz da velha dizendo dentro da sua cabeça, bem baixinho:
"- A mente de pedra... Bom, muito bom!" - e sua voz desapareceu.
Não reagiu. Se manteve a encarando com um rosto sólido.
"- Sempre os achei criaturas fascinantes. Verdade seja dita, não vou insistir..." - a voz disse dentro da sua mente, em um tom diferente, como se estivesse se esforçando dessa vez... E a velha continuou com a boca: "-... mesmo podendo dobra-lo ao meio como uma águia rasgaria um canário com seu bico!"
"- Talvez possa!" - disse Kallabeth - "... e foi para isso que nos trouxe aqui? Para nos dar ameaças e mostrar que sua palavra nada vale?!" - lhe interpelou o príncipe irritado.
Os pássaros gritaram nas árvores. Houve um único uivo alto como um trovão que causou silêncio na floresta:
"- UUUUUUUUUUUUUUUUõõõõuuuuuuuu..."- vinha da mata próxima.
A cabeça da velha se moveu em direção ao uivo.
Um lobo gigantesco, com a cabeça preta e o corpo em tons de preto e cinza pulou por entre as árvores. Tinha olhos de sangue, vermelhos com brasas e a boca do tamanho de uma roda de carroça. Seus músculos frontais se retesaram, era o maior animal que já viram. Maior até do que os lobos na entrada do bosque. Ele estava a metros de distância, mas enquanto se sacudiu foi possível ouvir o som das orelhas e da cauda batendo. Soltando folhas e galhos para os lados. Como se estivesse deitado na relva. E logo depois se pôs em marcha na direção dos três.
"- Minha palavra, príncipe, é tudo que temos a muito, muuuuuito tempo..." - disse a velha vendo que Kallabeth e Zarrin estavam apavorados diante da besta negra - "... pare!" - ela disse levantando a pequena palma da mão esquerda em direção ao animal que avançava. E ele estacou imediatamente, sob a ordem.
O lobo parou, mas ficou caminhando para um lado e para o outro. Dois, três, quatro passos para cada lado. Rosnando e respirando bufadas de ar. Como se estivesse respeitando uma linha invisível desenhada pela ordem da velha. Suas presas eram do tamanho de facas de jantar. Animalescas. Ela baixou a mão virando de costas para os dois e indo em direção a caverna.
"- Venham crianças, chega de brincar. Temos muito o que falar..."
PARTE VI: O Príncipe e a Loba. (continuação abaixo).}
A entrada do lugar era escura, com folhas e cipós que se balançaram quando eles passaram. O chão da caverna era de cascalho solto. E ele gemia a cada passo que davam. As paredes de pedra eram úmidas e cheias de limo verde e amarelado. A Loba caminhava com desenvoltura pouco natural para a idade do corpo que tinha. Kallabeth vinha depois dela e logo atrás Zarrin. Alguns metros depois da entrada, o túnel fazia uma descida. O cascalho ali fora substituído por uma pedra lisa e sólida. Que serpenteava o chão iluminado por tochas nas paredes.
Kallabeth sentiu um leve toque em seu ombro direito e se virou rápido, alerta! Era a mão de Zarrin, que em silêncio lhe apontou ao suporte das tochas. Eram todos iguais. Pequeninos homens de metal negro, que seguravam o cabo das tochas com seus braços e pernas, como que agarrados a uma tábua salva vidas. Com suas cabeças inclinadas para cima e suas boca abertas. Sem olhos, sem cabelo, sem sexo, somente corpos humanos moldados no metal, segurando a luz da passagem.
Quando os dois retornaram sua atenção para o corredor ela os observava, parada. Bem diante de uma curva do caminho.
Houve um silêncio.
"- Belos suportes..." - balbuciou Zarrin - "trabalho finamente.."
"- Sim!" - ela o interrompeu - "São muito antigos, mas não tão antigos quanto as paredes... O que é novo aqui, são vocês!" - e se aproximou alguns passos dizendo mais baixo - "... eu não ficaria para trás nesses corredores. Não, não, não... tsc, tsc, tsc... Os que aqui habitam não se importam em esperar por todo o tempo de uma árvore familiar de vocês. Do seu primeiro representante até os dois rapazotes maduros que vejo. Existe muita raiva nesse lugar. Muita, muita dor..." - e se virou novamente para o corredor, dizendo - "... já eu, sou muito, muito velha e não posso esperar tanto. Me sigam..."
O corredor descia mais. E virava uma escadaria. Com degraus amplos, do tamanho de homens deitados. E nessa passagem, haviam túneis laterais. Todos escuros, sem nenhuma forma de iluminação.
"- Se errarem o caminho, nem eu saberei aonde procura-los...ããhehehehe.." - e riu, foi tudo que a voz fina da Loba disse.
Kallabeth e Zarrin não saberia ao certo dizer quanto tempo se passou. Uma fumaça branca, tomou conta do piso. E enquanto caminhavam, ela subia e subia. Até que suas cabeças mal conseguiam ficar de fora. A Loba virou uma silhueta. As tochas focos opacos de luz. Os dois continuaram caminhando e caminhando. E o corredor ficou mais e mais sinuoso. Até que a Loba não podia mais ser vista. Seguiram as luzes e quando perceberam, pisavam em água. Zarrin se abaixou e pegou uma pedra com limo...
"- Um rio!?" - disse.
"- Venha Zarrin, vamos continuar...." - respondeu Kallabeth.
Os dois seguiram. Por tempo demais.
Em algum momento, parecia haver mais pedras do que água e então pisavam em grama. Grama verde e baixa. A fumaça branca, espessa como vapor de uma caldeira bailava diante dos seus olhos, bloqueando qualquer visão. As paredes pareciam desaparecer. Não haviam mais tochas. E era mais claro. Tateavam os dois amigos, quando ouviram.
"- Quem vem lá?" - era uma voz alta. Parecia ser dita dentro de uma catedral, pois ecoou por todos os lados.
"- Viemos a convite da Loba... estamos perdi..."
"- Quem... vem lá?" - a voz interrompeu Zarrin.
"- Me chamo Kallabeth Akasthar. Sou o único filho vivo de Kallarth Akasthar, Rei dos homens e das terras ao oeste do Osso. Ao leste do grande mar. Ao norte das terras ermas e o sul dos Reinos Menores...."
"- Você é bem vindo Kallabeth, mas seu vassalo não pode entrar no Círculo. Venham, saiam da névoa. Estávamos esperando por você."
Alguns passos a frente e a névoa desapareceu como uma cortina que é aberta.
O chão era gramado, o céu era de uma noite estrelada. E havia um penhasco muito alto. No horizonte a frente, era possível ver o grande mar distante. Em suas costas, as paredes de pedra se erguiam até desaparecer nas nuvens. Ao norte as campinas se perdiam em uma espécie de savana com bosques sem fim. Ao sul haviam pequeninas cidades, iluminadas por minúsculas luzes de fogueiras. Bem ao centro estava o castelo de Kallabeth e Zarrin haviam saído a tanto tempo. Havia uma lua branca e redonda entre as núvens do céu. As estradas que conectavam tudo isso, eram finas como fios de uma teia de aranha. Esticadas sobre o terreno, fazendo curvas longas e subindo e descendo colinas.
"- Que lindo..." - balbúciou Kallabeth ao contemplar a visão.
Na beirada do penhasco, havia a Loba, vestida com sua túnica clara. Lhes encarando com frieza no olhar. Ao seu lado havia um três blocos de pedra do tamanho de carroças grandes. As pedras tinham inscrições entalhadas. Visivelmente diferentes em cada face dos blocos. Sobre um bloco o primeiro bloco havia uma coruja gigantesca, do tamanho de um homem alto. Sobre o segundo bloco havia um reptil com escamas verde luminosas. Enrolado como uma cobra na relva, mas do tamanho de um touro. podia-se ver suas patas dobradas com grandes garras. E um par de chifres sob a cabeça com uma boca cheia de dentes pontiagudos. Tinha dois olhos puxados nas laterais, com pupilas lilás e azuis. O terceiro bloco estava vazio. Sob o chão, a alguns metros da névoa, um degrau de pedra fazia o contorno até a beira do abismo. Formando um círculo com as três pedras dentro.