quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A VELHA LOBA

Nas terras ao Norte, não importa em que tipo de solo seus pés pisem, todos moradores conhecem a história da velha Loba. Para alguns, a história é antiga como o tempo. Mas não espere encontra-la em estátuas, ou tomos das bibliotecas e universidades. A velha Loba é uma história contada pelos avós junto a fogueira. E mesmo que para alguns, sejam somente histórias, ela nunca desaparece por completo...

Dizem que antes das cidades terem muros e dos rei usarem coroas, o homem vivia mais perto da natureza. Curávamos nossas feridas com folhas e ervas, cuidávamos das nossas crianças com frutas e flores. E acima de tudo e todos, respeitávamos a natureza. Caçávamos sim, mas nunca filhotes. Colhíamos e plantávamos nos campos. Mas haviam muitos lugares que não ultrapassávamos. O elo entre os homens e a terra era vivo e forte. Sadio e equilibrado. 
De tempos em tempos, saiam das florestas densas para os bosques abertos, homens e mulheres que falavam com os animais. Que se camuflavam como se fossem invisíveis aos olhos desatentos. Que conheciam palavras antigas para curar e fazer a natureza ajudar na colheita, na doença e na vida de todos. Essas pessoas quase sempre viam acompanhadas de muitos animais, e quando partiam anunciavam que esse seria o tempo de uma dessas criaturas. Houveram assim, muitos registros de anos do falcão, da lontra, do pequenino tordo negro, do bisão e dos lobos... Infelizmente, o homem se esquece. E mesmo que de tempos em tempos a natureza reafirmasse o acordo, com o passar das gerações, cada vez menos de nós recebia o povo da floresta de forma apropriada. O tempo dos animais não durava um ano humano. Ele durava o quanto durasse. E só seria alterado quando uma dessas pessoas se apresentasse e por fim, declarasse seu novo nome. Por séculos, recebemos o povo das florestas com música, comida, bebida. Dançando com nossas melhores roupas, com flores nos cabelos das meninas e até os mais velhos dobravam os joelhos em respeito a eles. A sua chegada, era sempre requisitado água limpa. O povo da floresta a tomava e muitas vezes se banhava com ela, sem pudor. Após, pedia-se que os doentes lhes fossem trazidos. E um por um eram examinados e consultados. Aos curáveis, curas rápidas e naturais eram ofertadas. Aos incuráveis, davam-se longas conversas ao pé do ouvido. Muitos dos que não tinha cura, sorriam diante da entidade. Agradeciam. Se ajoelhavam e os abraçavam. Após esse período, o povo da floresta conversaria com todos que tivessem perguntas. Dos menores até os mais velhos. Sem distinção. Eles dormiam pouco, sempre ao redor das vilas. Comiam frutas e as vezes carnes, sempre perguntando como foi a caçada. Quem abateu a presa. E demonstrando respeito pelo alimento. Era um tempo de ouro. Muitas vidas foram salvas, por cura, conhecimento e acolhimento.

Mas o tempo passou.

E houve um novo capítulo dessa história, onde poucos e cada vez menos se importavam.
Não vou lhes contar sobre quantas vezes as criaturas da floresta esperaram junto as clareiras. Sozinhas. Sem nenhuma fogueira ou abraço, como recepção, até partirem... Não vou lhes dizer de como as criaturas da floresta ficaram cada vez mais agressivas. De como os corvos e falcões atacavam as crianças ou de como as matilhas de lobos rompiam a escuridão e desapareciam carregando um ou dois dos nossos, sem qualquer aviso. Ervas venenosas começaram a crescer entre nossas folhas e as árvores davam frutos cada vez menores ou simplesmente nenhum...
Houveram aqueles entre nós que tentaram avisar. Que em conciliuns (reuniões oficiais) foram ridicularizados. Chamados de velhos e inúteis. Grupos de homens se armaram com metal e raiva, entrando fundo nas florestas. Pouquíssimos retornavam. Um desses grupos, teve somente um sobrevivente. Um jovem homem que não tinha 20 verões de vida. Ele voltou nu, pedindo para falar com os anciões. E um aviso ele transmitiu. Daquela data, em exatamente 4 estações, haveria um reencontro. E se fosse o desejo do homem, pacificar-se com a natureza, essa possibilidade existia. Porém, essa seria a última chance. Após isso, nunca mais.
Esse moço foi encontrado enforcado em uma árvore, fundo na floresta, pouco tempo depois. Em seu rosto havia um risada demoníaca. Algo não humano, algo selvagem...

Os dias flutuaram como folhas que boiam sobre um rio. Descendo em direção ao mar, sem parar. E quando a data se aproximou, muitos de nós se negaram a participar. Mas um grande grupo se formou. Pessoas vindas de várias vilas e até cidades distantes. Todos conhecedores das histórias. E foi lá que ela apareceu...

 


Velha, como diz o nome. Pequena, com um metro e meio de altura, ou menos. Cabelos brancos como a neve. Profundos olhos azuis cintilantes tal qual água de uma caverna escondida. Movia-se de uma forma sobrenatural, não humana. Com longos dedos das mãos e pés. Coberta por tecido fino e delicado. E com um sorriso escancarado nos lábios.
Primeiro sua cabeça surgiu de dentro de um vasto arbusto. Como se fosse um coelho em um corpo de velha. Levou poucos instantes para sumir e reaparecer metros a sua própria direita, farejando com o nariz como um javali procura por trufas. Dali, ela se ergueu em pé. Mexeu nos cabelos com as mãos estabanadas, claramente sem intimidade com a ação... Então ouviu-se um longo e firme uivo lupino vindo das trevas da mata. Ela olhou sobre o próprio ombro, mas sem mover seus pés. Seu tronco girou rápido, sem dificuldades. E quando voltou para a pequena multidão que assistia tudo em silêncio, ela sorria com dentes pontiagudos, inumanos. Depois, novamente se ergueu sobre as pernas e deu alguns passos em direção as pessoas. Mas ela andava de forma alegórica, movimentando excessivamente as ancas e os ombros. Como se estivesse fingindo ser uma humana. Movendo o pescoço para os lados a cada passo. Até que depois de alguns metros, ela caiu no chão grunhindo. As pessoas se entreolhavam, confusas.
Foi um dos conselheiros do Rei que disse:
"- Ela está caçoando... !?" - sem ninguém entender se isso era uma afirmação ou uma pergunta.
Os grunhidos se transformaram em risada. E a risada se transformou em uma tosse, mais rouca do que deveria ser. Para tossir, a velha se pôs sobre os 4 membros e com os joelhos no chão, ficou parecida com um gato expelindo bolas de pêlo... Até que foi parando. E como se tivesse lembrado do que estava fazendo. Diante daquelas pessoas. Estacou. Olhando para todos com as pupílas erguidas até a própria testa, como faz um cachorro acoado. Antes do bote.
E ali rosnou, bem baixinho primeiro.
"- RRrrrrRRRRRRããããrrrrrrRRRRR" - ela fez com o fundo da garganta. E as mães pegaram seus filhos no colo. Então tossiu mais e parou de novo.
Então, pela primeira vez falou:
"- Nos darão carne..." -  ela resmugou. E poucos a ouviram.
Então repetiu mais alto:
"- Nos darão carne!" - disse se levantando.
E um dos nobres presentes a respondeu:
"- Claro, claro... Que tipo de carne querem? Basta dizer e trare..."
"- Carne viva!" - e sorriu um sorriso cheio de dentes.
As pessoas suspiraram de medo. Uma mãe correu de volta para a vila segurando seu bebê que gritava. A velha a olhou com um suave relance de sua cabeça.
"- Carne viva? Uma va-vaca?" - retrucou o nobre dando um passo para trás.
Ela lhe olhou e um longo uivo foi ouvido.
"- Nos darão carne, daqui a 5 noites. Mas não nos darão seus animais. Nos receberemos sua carne, crianças, mulheres, velhos, homens, o que for. 2 cabeças de carne. Aqui nessa clareira. Cinco noites..."
"- E se nos recusarmos?" - disse um soldado com a espada em punho.
E vários rosnados diferentes vieram da escuridão da mata.
"- Aí nós pegaremos toda carne que quisermos, em 5 noites. Escolham duas cabeças, vivas. Aqui. Ou cedam o que nós quisermos. - e sorriu como se preferisse a segunda opção - Cinco noites." e recuou para trás se movendo sobre os 4 membros. Encarando a multidão.
Até parar na beirada da mata, ficar de pé e dizer:
"- Houve um tempo em que nós eramos amados, cediamos a vocês nossos filhotes, nossas crias, nossas mães e pais. Vocês entravam na mata, tomavam nossa carne e partiam para se nutrir do nosso sangue... Mas vocês pararam de nos amar. Pararam de nos receber. Pararam de nos honrar. Agora, esse é o preço para que voltemos. Sua carne, viva. Aqui. Cinco noites."
E sumiu...

sábado, 5 de outubro de 2024

Ode cardiáco.

Existe um lugar distante, longe de tudo.
Em que a vida é sempre infante.
E o tempo não provoca luto.
Um lugar escondido.
Secreto à tudo.

Guardado no peito calado.
Habita,
meu coração
mudo.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O busto parado
na praça
Assiste a vida
que passa

Toma chuva
no tempo
Sente o pó
do vento

Sem pressa,
o busto 
espera
a sua
hora



quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Quatro vezes: sim, pois não!??

O cachorro late na rua.
Verdade nua e crua.
De quem é a culpa?
É só mais um
cachorro!
Na rua,
mato ou
morro.

O vento sopra no inverno.
Frio como o inferno.
Silencioso
movimento
incessante 
Num mar
de instantes.

Passa o tempo, tic tac.
Os relógios não param, tic tac.
Como pessoas trabalham, tic tac.
Em prédios e lojas de pregos,
vendendo caixões
e remédios.
Tic tac.

A tarde é preguiçosa.
A preguiça é perigosa.
O perigo é prosa.
À rima corrida da vida.


quarta-feira, 8 de maio de 2024

Sou(L) folha

Farfalham as folhas
Palavras às linguas
Memórias ainda
Dos dias que virão
Lua sim,
sol não.
Flutuam as almas
Das origens mais calmas
Ao horizonte da vida
Aguardando em corpo
a única saída
Amando e respirando
Como folhas 
que farfalham
Presos aos galhos
Bebendo da raíz 
ao talo
Até que seja outono
Para ver cair o tempo
Para seguir o vento
Para parar
no ponto. Final


terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Palestina, Israel e o que nos resta da humanidade.

Senta que lá vem história!
Ou também se não quer sentar, pode ficar de pé... Isso, você escolhe.
Vou começar com uma pergunta: quem veio primeiro? A Palestina ou Israel?
Mas será que "quem veio primeiro" é a pergunta que importa? Podemos falar disso depois.
A região que foi denominada pela sociedade "moderna" como ESTADO PALESTINO, foi criada em 1947. Israel foi criada 1 ano depois, 1948. Porém, o povo Palestino habitava aqueles campos e colinas literalmente a milênios. Ainda assim, o Judaísmo é a religião monoteísta mais antiga do mundo, com cerca de 4.000 anos de idade.
Ou seja, complicou né? Mas espera que vai complicar mais, antes de haver alguma solução.
Não acho que "quem veio antes" ou  "quem chegou aqui antes" sirva de métrica para dar algum tipo de resultado a essas questões. Deixando claro.
E também acho importante, contextualizar, que enquanto escrevo essas palavras a data é JANEIRO de 2024. E o mundo todo assiste, ou eu acho que deveria, horrorizado as sequências de investidas militares sobre a região. No dia 07 de outubro de 2023 o grupo Hamas atacou Israel. Sequestrando, estuprando e matando quase 2.000 pessoas. Hamas que em árabe significa literalmente "CORAGEM" ou "BRAVURA" é uma organização política e militar da Palestina. Mas perceba, que o Hamas NÃO É O POVO PALESTINO. Assim como o PCC não é TODO brasileiro. Ou o COMANDO VERMELHO (CV) não é todo carioca. Dito isso, é importante dizer que o Hamas age como uma espécie de partido político, detendo a administração de GAZA em um formato de estado autocrático. Não existe oposição. E se alguém se opor, desaparece completamente. Preciso ainda adicionar o fato de que a pouca imprensa local livre, é coagida integralmente por essa violência. A ponto de que jornalistas e comunicadores palestinos que ousam deixar o solo mãe em busca de liberdade para escrever e contar o que acontece lá, tem seus familiares e amigos sequestrados como garantia de silêncio. No melhor estilo "CATIVOS" de Game of Thrones (se vc viu, se não viu, LEIA OS LIVROS).
Pois bem, agora vem o outro lado da moeda:
Israel foi criada como a conhecemos em 1948, como citado anteriormente. E a partilha do território veio para substituir o mandato britânico (what the fuck?) colonialista. Já fica meio azedo só a nas primeiras linhas né? Pois é, mas piora... Esse período também marca a eclosão do movimento Sionista (que nasceu em 1897 - percebe o tempo fermentando), que defende a autodeterminação do povo Judeu e a criação de um estado Judeu onde ficava (perceba o passado) a terra de Israel. Então lá trás entre 1947 e 1948 cabe a recém nascida ONU, mas embasada pelos estados unidos da america e a União Soviética, determinar a fronteira entre Israel (como estado Judeu SIONISTA) e a Palestina. O problema começa a tomar as atuais proporções quando nesse período a divisão acontece através da expulsão de famílias palestinas de suas propriedades. Algumas delas inclusive com terras que estavam a séculos sendo utilizadas para produção de alimentos e criação de animais. Então, os judeus SIONISTAS agora armados com o que sobrou dos equipamentos britânicos e apoiados por algumas das mais poderosas nações do globo, expulsam do território palestino mais de 750 MIL pessoas, destruindo mais de 500 vilas palestinas. Isso é a eclosão de um ovo chamado IRGUN, que pasme, era um grupo terrorista JUDEU. Um braço violento do SIONISMO, que foi responsável pela morte de MILHARES de pessoas (incluíndo VÁRIAS CRIANÇAS) em suas décadas de atividade.

Ufa. Preciso dar uma segurada. É muito informação.

Mas basicamente, após a atrocidade cometida pelo Hamas em 07 de outubro de 2023, o governo de Benjamin Netanyahu declara um ataque franco ao território Palestino. Sobre a égide de se PROTEGER do terrorismo vindo do Hamas. E o mundo assiste colégios, hospitais públicos, prédios de condomínios residenciais além de bairros inteiros serem pulverizados da face do planeta terra. Estamos aqui falando de crianças, bebês, mulheres, idosos, pessoas que empreendiam, estudavam, namoravam, viam filmes, mexiam nos celulares, comiam com a família nos finais de semana, riam, choravam, tomavam banho, brincavam com suas crianças, alimentavam cachorros, gatos, peixes, se cobriam quando tinham frio, bebiam água quando tinham sede, usavam tenis, bonés, tinham computadores para trabalhar e jogar video game. Gente comum. Como aquelas que o Hamas atacou igualmente.

Preciso dizer também que Benhamin Netanyahu mudou a lei para que seus processos de suborno, fraudes em licitações e quebra de confiança pública fossem atrasados e desidratados. Então, quando ele vê o trampolim do ataque do Hamas, ele pula com força sobre a tábua. Deixando para trás a opinião pública de seus opositores e materializando a expansão do seu território (como já feito antes em 1967 contra a Cisjordânia e a própria faixa de Gaza).

Tudo isso, para se proteger do terrorismo. Será?!?

O que o Hamas fez no dia 07 de outubro de 2023 é absurdo, foram quase 2.000 pessoas entre mortos e sequestrados.
Os meses que sucederam essa data, trouxeram a tona uma das faces mais desprezíveis da humanidade: mais de 29.000 mortos sobre o solo Palestino. Incluíndo MUITAS crianças e idosos. Os números oficiais são nebulosos, porque como dito anteriormente o governo Palestino do Hamas controla seus meios de comunicação. Porém, mesmo orgãos independentes como o HUMANS RIGHT WATCH declaram que o que acontece nesse momento na Palestina tem mais do apartheid do que qualquer um de nós pode suportar...

O cessar fogo é urgente.
Isso é tudo que posso concluir.
Qualquer guerra, é destruição da humanidade.
Palestina - Dezembro/2023.
                                  


quinta-feira, 25 de maio de 2023

Silêncio.

Silêncio.
O dia rasgava o negro céu da noite. No horizonte, cores como amarelo, roxo, azul escuro e laranja avermelhado avançavam diante do recuo da escuridão. Na antesala dos aposentos reais, uma mesa de 6 lugares estava com 5 cadeiras ocupadas. O Rei, sem coroa, acordado a pouco tempo sentava junto de seus conselheiros mais íntimos. Poucos vestidos apropriadamente, acusando pressa e pouco tempo de preparação. Subitamente a porta é aberta, sem batidas. E um homem com aproximadamente 2 metros de altura, ombros largos, barba dourada cortada e pouco cabelo sobre a cabeça entra alguns poucos passos e abaixa a cabeça até tocar com o próprio queixo no peitoral da suntuosa armadura que vestia.
"- Majestade!" - diz ele com a cabeça baixa.
"- General Alefh... ficamos felizes com a sua presença." - diz o Rei com uma voz monocórdica. Sem retirar os olhos daquele homem.
"- Retornei nesse instante majestade. Vim sob a ordem que recebi, quando parti...".
"- E então?" - pergunta o Rei dobrando o tronco sobre a mesa enquanto enche uma pequena xícara a sua frente com uma bebida quente.
"- Não diria que vencemos Majestade, nossas tropas foram dizimadas. Sobraram pouquíssimos homens vivos, menos de 100 talvez... Mas o inimigo teve menos, seus soldados fugiram em direção aos bosques do Sul. O campo de batalha é nosso, enquanto falamos aqui, soldados retiram o que vale ser retirado dos mortos..."
"- Como não diria que vencemos General?" - interrompe um homem magro vestido todo em preto, sentado ao lado direito do Rei.
O General para diante da fala. Respira por um breve momento enquanto desliza os olhos de volta aos olhos do Rei e diz:
"-... esses espólios de batalha serão recebidos no final da tarde de hoj..."
"- Porque não diria que vencemos General?" - pergunta o Rei lhe interrompendo.
Silêncio.
O homem magro vestido de negro sentado ao lado do Rei esboça um sorriso no canto da boca.
Silêncio enquanto o General Alefh olho nos olhos do Rei e vagarosamente abaixa a cabeça...
"- Majestade..." - ele diz - "... posso lhe falar com franqueza?"
"- Oraaa, vamos homem!!! O que aconteceu?" - diz o Rei irritado, dando um leve soco com o punho fechado sobre a mesa de madeira.
Silêncio.
"- Nossos homens... os homens que morreram nesta batalha... Em breve eles estarão lutando pela flâmula do inimigo. Os homens que deixei lá, não ficaram somente para retirar os espólios da batalha... Eles estão ateando fogo aos cadáveres. O exército deles majestade... não eram homens, digo, já foram homens um dia, mas agora não sei se ainda se chamam assim..." - movendo as mãos de forma desconcertada - "...já foram homens, mas agora são outra coisa... São mortos que lutam. E lutam bem majestade..."
Silêncio.
"- Isso são histórias para crianças, general..." - disse o homem magro vestido de negro... - "o Sr. bebeu antes da batalha?"
Levantando a voz o General responde:
"- Eu serei respeitado feiticeiro! Pelo amor de quem me ama, ou pelo corte da minha espada..." - encarando o homem de negro nos olhos.
"- Calma senhores..." - diz um homem com vastos cabelos vermelhos e um grande queixo duplo abaixo dos largos lábios, exibindo um manto bastante ornamentado e se parecendo muito com um grande sapo branco gordo... - "... tenhamos foco nas questões da coroa, o General Alefh com certeza não está aqui brincando com crianças... Tenhamos calma agora...". - em tom apaziguador.
E continua:
"- General, tem alguma forma de nos fazer visualizar o que o senhor viu, além do seu relato? Algum outro soldado, talvez? Que pudesse nos contar o que experimentaram naquela campina...?".
Silêncio enquanto os olhos de todos deslizam uns contra os outros. Como um delicado fio de água fria em um riacho semi congelado no interior de um bosque invernal. Até que todos os olhos repousam sobre o General de pé na sala.
Ele parece esperar por isso. Esperar que todos se olhem, que os rostos se encontrem. Sua própria face parece feita de pedra fria. Com uma linha reta e fina no lugar da boca. Olhando ninguém, vendo o todo. 
Ele não demora a começar a falar, com calma, sem elevar a voz:
"- A primeira vez que pisei na cidadela real, foi como escudeiro do meu falecido tio.  O Cavaleiro do Sol durante o reinado de Zuga´Rth o ordeiro - avô de vossa majestade... 
Eu já tinha idade para me tornar cavaleiro, mas nunca tive a chance... Era o festival de verão, e o Cavaleiro do Sol foi convidado a jantar com a família real depois de vencer todo e qualquer desafiante na lança montada. Durante o jantar, meu tio pediu ao Rei que me batizasse cavaleiro. E o único pedido do Rei foi me ver vencendo um soldado a sua escolha. No próximo dia, no entardecer, fui chamado a sala do trono. Meu tio, o Rei Zuga´Rth e toda alta corte estavam presentes. Diante das escadas de pedra do trono, haviam duas espadas largas de batalha e um soldado real vestia armadura e elmo fechados ao seu lado. Me foi dito diante de toda corte que se eu tinha o desejo de ser batizado cavaleiro, deveria erguer uma das espadas e vencer o soldado por submissão. Eu ergui a espada vestindo roupas simples, sem malha de ferro, ou um corselete de couro que fosse. E o soldado com placas de metal e elmo fechado avançou sobre mim como a tormenta. Descendo a lâmina da espada com força o suficiente para amputar um braço, caso não me esquivasse com rapidez e precisão. Eu saltei senhores, como saltei... Desviei das investidas sabendo que se errasse provavelmente seria ferido para sempre. Me tornaria um coxo manco ou coisa pior... Eu ouvia os suspiros das damas de honra e das esposas dos lordes e duques presentes enquanto a lâmina dele zunia no ar. Mas eu via nos olhos do meu tio o lembrete para um dos ensinamentos mais antigos dos campos de batalha: o homem que ataca se cansa, o que se esquiva não. E eu dancei até o soldado gritar para que eu lutasse "como um homem!". Então eu vi que ele ofegava e suava.

E eu senti que tinha uma chance de ouro. Mas também entendi que aquele soldado não era um homem de armas comum. Ele era um filho de um lorde ou um jovem cavaleiro recém batizado... Porque minha atitude teria irritado qualquer um, mas somente alguém de alto nascimento teria reclamado. E como ele reclamava! Eu senti que ele estava instável, que sentia vergonha de não em atingir. Que de alguma forma aquilo havia sido ensaiado, que alguém achava que o fim da peça de teatro seria outro... Então dei mais tempo a ele. Deixei que ele ficasse mais ofegante e irritado. Ele começou a espassar mais e mais cada investida. Sempre falhando... Mantive meu coração em pedra fria, meus olhos atentos e meu ego amordaçado. Se eu dançasse corretamente a música, seria batizado cavaleiro ali mesmo. Essa era a oferta que me fizeram."
Todos na mesa o encaravam com os olhos arregalados, então Alefh deu tempo ao tempo e respirou fundo, como os bons contadores de história o fazem nas fogueiras dos acampamentos. E continuou:
"- Quando eu o senti mais exausto, avancei. Desci minha espada contra a dele por uma, duas, cinco vezes. Com a força de todo meu corpo jovem, segurando o cabo com as duas mãos. Ele escorregou, sua perna cedeu e eu me adiantei. O acertei mais uma vez e dessa, ele teve que apoiar uma das mãos ao chão com o joelho dobrado. Chutei sua mão apoiada e seu corpo caiu como um saco de batatas vestindo uma armadura pesada. Sua espada não se levantou, mas ele se movia debilmente, se arrastando em direção ao trono. Rastejando. Então todos ouvimos a voz por trás daquele elmo dizer:
"- Papai... papai me ajude... Me ajude papai!" 
E o Rei Zuga'Rth fechou os olhos e cerrou os punhos...
"- Me ajude papai, ele vai me matar..." - choramingou o príncipe.
Meu tio esboçou um sorriso e acenou levemente com a cabeça para que eu parasse. Mas eu já havia decidido parar antes disso. Simplesmente larguei a espada no chão e dei um passo para trás... me ajoelhando.
Eu ouvi os soldados se aproximando do principe enquanto eu estava ajoelhado, seu elmo foi retirado. E ele estava vermelho como um carvão em brasa, descabelado, com seus traços finos e os olhos verdes enxarcados de lágrimas de medo. Sua boca era uma lua invertida e ele chorava como uma criança que teve o brinquedo tomado pela cuidadora. Eu o encarei, não como um escudeiro encara um príncipe. Mas como um guerreiro encara outro em um campo de batalha. Além de todas patentes, títulos, coroas, castelos e moedas de ouro. Naquele instante, o príncipe Frammir, era só um cavaleiro. Derrotado... Nada mais.
Eu fui batizado caveleiro pelo próprio Rei Zuga'Rth. Sem nem sair daquele salão.
Ele me mandou permanecer ajoelhado. Se levantou, tirou o manto e coroa real como manda o costume. Sacou Bellivar a espada mais justa da história. A repousou sobre minha testa com a lâmina tocando minha pele que sangrou pelo próprio peso do fio... E enquanto o sangue descia minha face ele disse:
"- Seja justo. Diga a verdade. Defenda seu Rei e seu Reino. Defenda a coroa e seus aliados. Mantenha seu coração e seus olhos abertos. E nunca fuja do seu juramento. Você jura pela sua vida?".
E eu jurei!
E me ergui como um cavaleiro da coroa.
E desde o momento em que eu me levantei, assim o sou. Cavaleiro da coroa, General das tropas nomeado pelo Rei Fammir, jurado e governado pelo desejo do meu Rei e do seu Reino.
Silêncio profundo. O Rei encarava Alefh com uma expressão sombria nos olhos.

Alefh continuou olhando os olhos do Rei.
"- Quando minha palavra não bastar, meu Rei, basta dizer que eu mesmo arrancarei minha língua diante dos teus olhos...".

O Rei virou a cabeça ao homem de negro dizendo:
"- Barabring sabe que o General diz a verdade. E ele escolheu mal as palavras, não é mesmo feiticeito?"
O homem de negro encarava as próprias mãos magras sobre a mesa e respondeu prontamente:
"- Si... sim Majestade. Peço perdão..."

Aquele dia passou.
E o silêncio do próximo sol nascente, trouxe consigo o fino, longo e insistante som de uma trombeta de aviso. Tocada pelos vigias no muro da cidadela real.
No quarto do Rei, a porta foi aberta sem pedidos de licença. E quano ele dispertou disse irritado:
"- Alefh? MAS O QUE SIGNIFICA ISSO?"
E ouviu o General dizendo:
"- Rápido majestade, eles chegaram..."

Enquanto do lado de fora da cidadela, uma orda imensa do que já foram homens e outras coisas rastejava e se empurrava gemendo, mortos apodrecendo, mas ainda assim vivos. Querendo mais morte!