quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

(REPOST DA PARTE I - continuação abaixo): O Rei e o Reino.

 Há um homem cansado, sentado na salão. Seu cansaço repousa sobre o trono real. E logo acima da sua cabeça velha, de fios brancos, lutas e dias tantos, existe uma coroa. Antes dourada, hoje manchada, mas ainda cravejada de pedras, rubis e diamantes. Suas mãos enrrugadas, magras e fracas, já foram grandes mãos de um guerreiro. Admirado, temido, faminto por vitórias e nunca vencido. O salão estaria vazio se não fosse por ele. Sua respiração produz núvens brancas de vapor invernal. Sobre seus ombros, um manto veradeiramente real. Vermelho cor sangue. Com taxas de metal e brancas bordas esvoaçantes, sem igual. Lá está ele, sentado ao trono sobre o último degrau. Como quem dissesse ao próprio reino:
"- Vejam todos, estou no ponto mais alto do Reino. Acima de qualquer montanha ou de qualquer desejo. Aqui, vos digo amigos e inimigos: temei-me. Pois ao som da minha voz, frias lâminas afiadas deslizarão pelos seus pescoços. E como o sol rompendo o turvo véu da madrugada, o sangue brotaria pelo horizonte vermelho, sem desculpas ou demoras! Brutal, como a força da natureza. E rápido como a cauda da raposa que desaparece no bosque distante dos olhos do caçador. Temei-me. Pois sou implacável!".
Mas nada diz ele. Nenhuma palavra é parida por aquela boca soterrada na funda barba de décadas e mais décadas de vida. Não caro leitor. Aquele homem cansado, imponentemente sentado, no ponto mais alto do castelo coroado, poderoso como um Deus alado, está calado. E seus olhos avermelhados, estão petrificados sobre o nada que sua mente busca desvendar. O vazio desesperador e pálido, de um mundo complicado. Intrigado. Como quem faz um cálculo estelar colossal sem mover um músculo. Ensaiando o movimento de peça por peça do tabuleiro de xadrez com a mente. Imaginando os reflexos, os movimentos perplexos, a missão, o objetivo e o nexo! Tudo ao mesmo tempo. De cenho franzido. Respirando ofegante pela boca seca. Até que na porta se ouve uma batida. Um único som.
TUUMMMM - ele faz.
E ecoa o carvalho pelo salão, como um tambor de guerra. 
Não reage nosso Rei. Nem a púpila se move. Permanece. E então vagarosamente apoia as costas no trono. E deixa a cabeça cair levemente para trás. Não move os braços, ou as pernas. Ele pende como um sino da igreja. E finalmente, sem desespero ou aviso pronuncia as palavras:
"- Entre." - e quem ouve sabe que é uma ordem.
A porta se abre de imediato.
O som das dobradiças rangendo rasgam o ar.
E o silêncio do salão é substituido por um momento.
Estranho. 
Pelo justo vão da porta, passa um pequeno corpo. Magro. E desliza pelo salão como uma cobra rasteja à relva. Até se ajoelhar diante do trono, com o capuz cor verde musgo escuro. E ficar em silêncio.
O Rei espera.
A criatura mal se move.
E então se ouve:
"- Acabou?"
"- Sim majestade! Acabou! A coroa tem a vitória. O Senhor, venceu..."
"- Não Kallabeth, com a sua idade você já deveria saber...

...não existem vencedores na guerra. Existem sobreviventes. As vezes, nem isso meu filho..."

PARTE II: O Rei e o Príncipe. (continuação abaixo)

O silêncio se ergue após da boca do Rei se fechar.
O príncipe Kallabeth o encara com olhos jovens. Suado. Cansado da batalha. Com medo e um turbilhão de raiva e paixão entrelaçados como uma longa e espessa trança no cabelo de uma moça na flor da idade. Fio perfilado a fio, quase como uma cobra venenosa. Sua mente transa quase uma dezena de pensamentos ao mesmo tempo, confuso como os jovens podem ser depois de derramar sangue, de sentir pele e ossos se abrindo ao golpe de sua espada. 
"Tanto horror... mas vencemos!" - pensa Kallabeth enquanto deixava a mente vaguear por um universo de lembranças recentes e anseios. Até que algo o draga de volta com a força de uma cachoeira que impõe ao rio qual caminho seguir.
Os olhos do Rei o encaram com frieza. Ele conhece aquele olhar, não é o olhar do seu pai. Os dois pares de olhos se sustentam por um breve momento.
"Preciso saber se ele está pronto! Por favor garoto, esteja pronto..." - o Rei pensa enquanto diz:
- Nosso generais já estão aqui?
- Sir Ulv´Mir padeceu em combate senhor. - responde o príncipe - os outros dois devem estar chegando, se já não estiverem no castelo... ordenei que o corpo fosse trazido, limpo e vestido com sua armadura. Junto com as tropas.
"Excelente garoto!" -  pensa o Rei. Ele olha para uma pequena mesa lateral ao trono. Uma pequenina xícara, delicadamente ornamentada repousa. Sua mão a alcança com gentileza e ele beberica um gole sem retirar os olhos do Príncipe. 
- Vamos convocar a família de Sir Ulv´Mir, a viuva e os dois filhos. Eu darei a notícia a eles, a viuva receberá o soldo permanente do General. Em respeito aos serviços prestados por seu magnifico esposo. E um dos filhos poderá seguir a patente do pai quando a hora chegar...
"O mais novo é promissor, o mais velho é arrogante e indisciplinado. Mas ele não se importa com isso agora..." -  pensa Kallabeth.
Continua o Rei:
-... Sir Ulv´Mir será cremado na pira real. A cidadela será fechada por 2 dias...
-... e somente depois desses 2 dias, as tropas poderão entrar. Fazendo um desfile pela rua principal, limpos, armados, alimentados e completamente bêbados. - completa o príncipe Kallebeth enquanto interrompe o Rei.
"Muito bom filho..." - pensa o Rei enquanto encara seu filho.
- Exatamente. Uma festa para romper o luto. - lhe diz.
- E um herói para justificar a causa... - diz Kallebeth sorrindo enquanto se levanta.
"Até aqui, perfeito. Mas e o que mais você tem ai garoto?" - pensa o Rei.
Continua o príncipe agora de pé:
-... minha majestade receberá nossos dois generais, de armadura polida, descendo de seus cavalos na escada na entrada do Palácio...
- Sim - diz o Rei - com honras, música e pétalas de flores coloridas sendo jogadas ao vento sobre nós. E você? - lhe interpela com uma sombrancelha erguida.
"Vamos lá! Me impressione Kallabeth, coroe nossa vitória diante do Reino! " - pensa o Rei.

O príncipe se empertiga, deixando a coluna reta, movendo suavemente os ombros para trás. E mesmo ainda sujo de sangue seco nas mãos e na face. Levanta levemente seu queixo magro. E esboça um suave sorriso com um dos lados da sua boca. Suave o suficiente para existir, mas nada ousado. E então diz:
 - Após os aplausos, após o Rei beijar a face dos generais, após as tropas entrarem dançando, cantando, beijando as meninas da rua, por último a tudo isso me apresento eu. Armado, vestido com a capa branca, montando um brutalmente gigantesco manga larga da infantaria, limpo e ornamentado. Para descer diante de vossa majestade, saudar a população, subir as escadas e me ajoelhar aos teus pés... 
"Sim..." pensa o Rei "... o nascimento de um herói vivo! O filho que merece a coroa sobre sua cabeça!"
- Você será recebido como um herói! - diz o Rei.
Forma-se um silêncio pétreo entre os dois.
- Mas não serei coroado... - diz a voz do príncipe em um tom consideravelmente mais baixo.
"Fico feliz que seja você a dizer isso, filho..." - pensa o Rei enquanto diz:
- Ainda não... - deixa a voz morrer enquanto o encara.
"Mas esse é um passo importante..." - pensa o príncipe enquanto diz:
- Eu entendo PAI! - e lhe encara com um olhar duro.
O Rei se move no trono enquanto se levanta e diz:
- Venha até aqui - lhe esticando uma das mãos.
Kallabeth prontamente avança sobre os degraus e toma a mão do seu pai que lhe puxa para si. Enquanto enrola seus braços ao redor do tronco do príncipe. Lhe segura com força pela nuca e diz ao seu ouvido:
- Mas ser coroado herói dessa vitória é o passo mais importante que você já deu em direção a esse trono...
- Eu entendo pai! - lhe diz o príncipe.
O Rei se solta do filho dizendo:
- Agora vá, você tem muito o que fazer. E não esqueça de me enviar a viuva de Ulv´Mir ainda hoje.
O príncipe concorda com a cabeça.
E enquanto fecha a porta da sala do trono, pensa:
"- A vida de Ulv´Mir é uma excelente barganha pela coroa..."  - e sorri um sorriso ácido.

Após a saída do príncipe, o corpo do Rei desmorona sobre o trono.
Há silêncio no grande salão escuro. Até que a boca real diz:
- Não me deixe esquecer disso: na próxima estação depois da neve, o príncipe estará pronto para assumir a coroa.
E uma voz vinda da escuridão do salão responde monocordicamente:
- Como desejar Majestade!.
- Aproxime-se amigo, você já ficou tempo demais no seu esconderijo.
E um homem alto, com ombros largos, usando capa e capuz escuros como a noite sai de trás de uma coluna escondida.
- O que me diz? Ele está pronto? - pergunta o Rei.
O homem retira o capuz, enquanto caminha vagarosamente em direção ao trono e responde:
- Ele enviou Sir Ulv´Mir para um flanco de batalha da qual nenhum dos homens saíram vivos. Todos foram esquartejados pelas lâminas adversárias. Cavalos, homens, capitães e até o General... - respira fundo enquanto se senta no degrau mais alto, bem próximo do trono.- "... no começo achei que fosse um erro que custaria toda batalha!
O Rei o encara com um olhar sombrio.
- Depois percebi que a falange do velho Ulv´ era composta por soldados mais velhos e rapazotes ainda verdes. E que pelo tamanho, o inimigo precisaria despender muitos homens e força para segura-los. Se o inimigo não fizesse isso, seria rompido ao meio e perderia. E se fizesse, o centro e o lado oposto iriam devora-los. Kallabeth garantiu a vitória, sobre todas as outras coisas. Caso Sir. Ulv´Mir vencesse, nós venceríamos. Caso Sir. Ulv´Mir falhasse, como falhou, a coroa teria um herói morto, um príncipe herói vivo e a mesma vitória... - e se cala.
O Rei leva sua mão ao próprio queixo e diz:
- Garantir a vitória é a primeira regra.- se cala por um instante até continuar - E ser coroado herói enquanto cumpre a primeira regra, pode ser um bom passo...
O homem sentado ao pé do trono respira fundo novamente e diz:
- Foi o que nós fizemos Kallarth...- e lhe lança um olhar ameno - ... seu filho está fazendo exatamente o que nós dois fizemos a 25 anos atrás... e sorri.
O Rei continua lhe encarando. Menos como Rei e mais como homem enquanto diz:
- Meu pai estava louco, Bär... Ele ordenou que eu trouxesse a cabeça da minha mãe em um baú com moedas de prata... - diz olhando para o vazio a sua frente.
E Bär lhe responde:
- E nós fizemos o que precisava ser feito para que um homem louco deixasse a coroa para você, e que sua mãe pudesse morrer de velhice, confortável e segura no palácio de verão...
O Rei permanece encarando o vazio enquanto o homem se levanta e recoloca o capuz. Desce os degraus do trono e suavemente se vira para trás dizendo:
- Não demore muito para dar a coroa à Kallebeth, meu amigo... Ele estará pronto em muito breve!
Sem lhe olhar o Rei acena com a cabeça, concordando...
"Um último teste e saberemos!"- acena enquanto pensa.

PARTE III: O Príncipe e o Reino. (continuação abaixo).

Madrugada. De uma noite sem estrelas. No alto de um pequeno monte, havia uma labareda acesa. Ela lambia os gravetos e bailava sobre a brasa. Ao seu redor, alguns homens, de perto ou de longe, pareciam repousar. 
- Sabe como os soldados chamam essa parte da noite? - disse o principe Kallebeth enquanto mexia a panela de ferro preto que soltava uma coluna de vapor ao céu.
"- De hora do lobo..." -  pensou Zarrin.
- Me diga majestade - lhe respondeu Zarrin encarando a escuridão.
- Eles chamam de hora do lobo! - disse o príncipe buscando lhe olhar nos olhos.
- Porquê será majestade?? - "Porque era quando as matilhas atacavam as vilas, nos séculos antes de nós..." - perguntou e pensou Zarrin.
- Isso eu não sei! - respondeu o príncipe.
Haviam dias que estavam naquelas campinas. Deixaram a capital do Império a semanas. Haviam saido a noite, em pouco mais de 15 homens. Todos montados e sob o comando do príncipe.

"- Encontre esse bando e resolva essa questão. Uma coroa que não cuida das regiões mais afastadas do reino, não é digna de respeito, Kallabeth. E sem respeito, não há coroa alguma que lhe de poder..." - Lhe dissera seu pai.
As notícias chegaram dias após o fim da grande batalha. Com praticamente todos soldados reais retornando à capital, o império vivia uma onda de violência e terror. Sem leis além da lâmina das espadas. O Rei prontamente despachou soldados para os quatro cantos do mapa. E é claro que faltavam homens. Foi então que Kallabeth foi convocado e levou sua guarnição pessoal a região chamada Campinas da Aurora. Um grande trecho agrícola ao leste, de onde vinha a maior parte dos grãos e batatas que alimentavam todo império. Tudo aqui é subordinado ao Barão Lore´L. Um homem de idade madura, que recebeu o título a poucos anos. Após a morte de seu tio por doença. O Barão possui homens o suficientes para fazer a coisa toda funcionar em períodos de paz. Mas dada a situação, as caravanas foram saqueadas, seus homens mortos. Ele correu para dentro dos portões, fechou tudo e enviou batedores ao Império.
"CAOS NA AURORA, LADRÕES E ASSASSINOS DOMINAM AS CAMPINAS! ESTAMOS PRESOS NO CASTELO. NECESSITAMOS DE AJUDA IMEDIATA!"
Dizia a mensagem do único batedor que chegou vivo.
- Quantos de vocês foram enviados? - perguntou o Rei ao ler a mensagem.
- Seis majestade! - respondeu o homen ofegante, ajoelhado a sua frente.
E as mãos do Rei amassaram o papel com raiva. Ele sabia o que isso significava. Somente este havia chego ao seu destino.

- Zarrin, algo lhe perturba... - diz o príncipe rasgando o silêncio da noite fria.
- Esse silêncio majestade. Essa noite está mais silenciosa do que deveria... -  disse o homem usando corselete de couro com taxas de metal. Enquanto examinava o breu noturno, sentado junto a fogueira.
O príncipe moveu seus olhos pelo horizonte. Tudo parecia calmo e negro. Nada além disso. Uma noite como outra qualquer... Mas Zarrin era além de um grande amigo, filho de Grozza´R Bär. O principal conselheiro do Rei e do Império. Um homem gigantesco, um guerreiro singular e um mestre em diplomacia e na arte da guerra. Zarrin e Kallabeth haviam crescido juntos. E eram como irmãos em tempos de paz. 

- Aquela coruja está voando para cá? - disse um dos homens sentados.
Os outros olharam para a direção em que ele apontavam.
- Chega de cerveja para você Kalben... - disse outro enquanto alguns riam da brincadeira.
Mas Kalben se levantou dizendo:
- Olha lá, aquela coruja... ela tá vindo pra cá!!
O pássaro estava alguns tantos metros do chão e realmente voava na direção dos homens, muito rápido... Mas alguns instantes antes de pousar, pôs suas asas para trás e a cabeça para baixo, enquanto parecia girar o corpo em um movimento de contorção não natural. Suas penas se ouriçaram e ela tremeu com se estivesse tendo um ataque. E de repente, uma mão humana surgiu de dentro do seu corpo. Seguida de um braço e uma perna, e uma cabeça que trouxe um pescoço e em menos de um piscar de olhos a coruja desaparecia e dava lugar a um homem de meia idade. Com uma longa barba emaranhada cobrindo a maior parte do rosto, roupas de tons marrom e negro. Seus cabelos eram negros e completamente desarranjados. Tinha uma estatura pequena, uma leve corcunda. Ele ficou no chão com um joelho dobrado e uma das palmas tocando a relva.

Os homens se levantaram de imediato enquanto ele caia, o aço foi retirado da bainha e os soldados avançaram com rapidez e violência, prontos para a morte como foram treinados. Mas uma voz gritou acima de todos, os fazendo parar imediatamente:
- ESPEEEEEEEEREM! - disse Zarrin
E o próprio príncipe Kallabeth estacou diante da sua voz.
- Majestade, cautéla! Ele não precisa ser um perigo. Principalmente se estiver só...
O príncipe ofegava, inundado pela ira e pelo perigo que sua jovem mente perceberam. Seus olhos eram como brasas e seus músculos estavam prontos para dar o comando de morte daquela coisa. 
- Calma agora Kallabeth! Lembre-se de tudo que aprendeu até aqui... - disse Zarrin movendo os olhos para o homem coruja.
O homem se levantou erguendo as mãos, tossia como um idoso. Até parar e limpar a barba como antebraço, como um bebâdo faz depois de um longo e nada saudável trago...
- Isso não é bom. Nada bom. Nada, nada, nada bom... - ele disse levantando os olhos em direção aos homens armados a sua frente - Eu diria boa noite!
- Quem... O que é você??? - bradou um dos soldados com raiva na voz.
- O nome é Krot! Mas não vou ficar chateado se vocês me chamarem de Coruja.
Estou aqui para falar com o jovem príncipe. Ela me mandou. - respondeu o velho.
- Ela!? Que "ela"??? - disse outro soldado.
- Abaixem seu aço amigos - disse Zarrin caminhando a frente de todos - vamos ouvir este, antes de mata-lo - Talvez nem precisemos... - e sorriu.
O velho lhe encarou por alguns instantes antes de dizer:
- Não morrer, é uma boa parte do meu plano. Não vim aqui para derramar nenhum sangue, nem de vocês e principalmente não o meu.
Um longo silêncio se formou.
Daqueles silêncios que incomodam quem o escuta. 
- Venha até mim - disse o príncipe Kallabeth - lhe ouvirei.

PARTE IV: O Reino e a loba. (continuação abaixo).

O sol raiava. Kallabeth e Zarrin haviam corrido através do amanhecer e pela maior parte deste dia. Seus cavalos que agora ofegavam, quase no limite. Eles perseguiram Krot, voando baixo como uma coruja. Cruzando plantações de milho e batatas, de trigo e parreiras de uvas. Passaram por estradas e terrenos fechados. Sem respeitar os acessos, cruzaram riachos e pequenos bosques. Haviam corrido no limite de seus animais e suas próprias pernas lhes lembravam de que a tarefa de um mensageiro montado nunca é tênue. Por vezes, a coruja desaparecia no breu da noite e eles seguiam seus chirriados. Para depois reencontra-la pousada sob um galho na saída de um parreiral. E sem nenhuma cortesia, chirriar alto e alçar voo novamente. Como quem reclamasse da lentidão dos cavalos e dos cavaleiros.
Correram o mais rápido que puderam, até perde-la de vista novamente. Então ao longe, avistaram suas asas batendo, voando em círculos sobre um denso bosque, quase no limite entre as Campinas da Aurora e a cordilheira conhecida como Os Ossos, que erguiam seus paredões ao fim das árvores. Moveram-se rapidamente na direção da coruja que ao ve-los, entrou no bosque por cima das árvores.
"- Veja como aquele bosque tem árvores grandes..." - disse Kallabeth.
"- Sim, são grandes porque são antigas. As mais antigas que já vi na vida..." - respondeu Zarrin.

Os dois cavalos foram refreados no limite das árvores. Kallabeth saltou e acalmou seu animal lhe fazendo carinho no pescoço.
"- Oooooooh, oooooh calma agora." - dizia enquanto Zarrin também descia e observava a espessura dos troncos. A alguns metros no seus interior a selva se fechava em uma sombra escura e densa.
"- Será que devemos entrar?" - questionou Zarrin, quase que como a si próprio.
"- Eu não desejo entrar aí..." - lhe respondeu o príncipe.

Foi quando o velho Krot saiu caminhando da escuridão. Mancava levemente de uma perna. E o som dos galhos quebrando sobre seus pés fez os cavalos relhincharem alto.
"- Boa corrida meninos, boa corrida..." - lhes disse sorrindo um sorriso branco no meio uma barba desorganizada - "... um pouco lentos, mas bastante obstinados. Eu diria hehehe..." e tossiu.
O príncipe e seu amigo o encararam com desconfiança.
"- Agora, vocês precisam ouvir o velho Krot. Sim, sim. Ouçam bem, porque tudo precisa ser feito de um só jeito. Ela não gosta de surpresas." - e fechou o sorriso em um rosto de pedra dizendo - "E é bom vocês respeitarem o jeito que ela gosta das coisas... Sentem-se comigo." - disse se sentando na relva.

Krot havia dito no acampamento de Kallabeth, que a velha Loba queria lhe ver. Alguns soldados riram, a menção da velha Loba era como uma história folclórica para crianças pequenas. A história de uma Loba gigantesca, do tamanho de uma carroça, forte como cinco touros. Que caminhava pelo Reino ajudando os bons e punindo os maldosos. A velha Loba se transformava em humana, ou coisa parecida de tempos em tempos. Uma franzina idosa, de cabelos grisalhos e pele fina como neve. Frágil como um graveto seco. A história sempre foi contada pelas avós e mães. Para meninos desobedientes e ousados. Mas ao mesmo tempo, com respeito era ouvida. E sem troça era recebida. A velha Loba, afinal, poderia mesmo ser real...

Kallabeth e Zarrin ouviram tudo que Krot tinha a dizer. E a oferta foi feita:
"- Ela deseja falar com o príncipe. Seus corvos e outras criaturas avisaram da sua chegada a dias. Em troca, a velha Loba lhe garantirá a solução que buscam nessa campina, sua segurança no trajeto de ida e volta do encontro e um presente que somente o príncipe poderá receber. Essas foram as palavras que me comandaram, majestade. O que diz o Senhor?" - disse Krot lhe encaram os olhos.

Sentados na frente do antigo bosque o velho Krot diz:
"- Esse bosque é onde ela escolheu para invernar da última vez que acordou. Em uma caverna na clareira bem ao centro. Vocês foram convidados à entrar. Mas podem caminhar somente sobre a água do riacho que corta o bosque por aquele lado - e apontou - vocês não podem pisar foram do riacho, entendem?"
E os dois jovens concordaram com estranhamento.
"- A velha Loba vai aguardar vocês no cair da noite de hoje. E é quando vocês precisam entrar. Não antes. Durmam, haverá frutas e água fresca a sua espera. Quando a tarde cair, entrem desarmados e caminhem até encontrarem a caverna na lareira. Ela estará lá."

Krot se levantou, seguido pelos jovens. Foi até os cavalos e com um movimento rápido de uma adaga curta, rompeu os cintos que seguravam as celas e cabrestos. Os animais pareceram gostar.
"- Comam e bebam meus irmãos - disse fazendo carinho sobre as faces dos animais - descansem e se revigorem. Eu vos agradeço por tudo que fizeram desde o nascimento." 
"- Os cavalos estão dobrando as patas???" - perguntou Zarrin.
Diante do silêncio de Kallabeth enquanto os dois assistiam o que parecia ser um agradecimento mútuo, de Krot e dos dois cavalos.

Antes de partir, Krot se virou a Kallabeth e dobram o joelho sob a relva disse:
"- A muitos séculos atrás, minha linhagem serviu ao último Rei que respeitou o acordo. Ela era o pai do seu bisavô. Sir Katrion Akasthar..." - e se levantou enquanto dizia - "... espero que você jovem Kallabeth Akasthar, possa um dia ser novamente minha majestade." - e sorriu um sorriso perdido no meio dos pelos da barba. Depois disso desapareceu nas sombras da mata.

Circundando o bosque, um pequeno riacho vinha da campina e entrava pelas árvores. Havia uma pequenina queda de água, com pedras redondas cheias de limo verde escuro. O cheiro e o som da mata faziam do lugar um ponto pacífico e agradável. Haviam flores brancas e alguns peixes na água. Na beira do riacho, sob a grama, várias frutas haviam sido dispostas. Morangos, peras amarelas, mangas e laranjas doces. Kallabeth e Zarrin comeram e beberam a água transparente do riacho. E depois dormiram profundamente a sombra dos enormes galhos.

PARTE V: A epifania. (continuação abaixo).

"- Kallabeth, acorde! KALLABETH!".
Kallabeth abriu os olhos. Ele não estava mais no riacho na entrada do antigo bosque. Ele se sentia estranho. Um pouco bêbado, lento, ouvindo a própria respiração e o próprio coração pulando no peito.
"- Aonde estou?" - perguntou confuso.
Ao seu redor, tudo parecia feito de fumaça. Mas não fumaça negra ou cinza. Fumaça colorida, distorcida, confusa. Havia um chão sob seus pés, ele era de pedra como o de um castelo. Kallebeth esticou sua mão e tocou o piso, sentindo a areia fina sobre as lajotas.
"- Pó? Alguém precisa limpar esse lugar, está imundo..." - divagou.
"- KALLABETH" - ouviu uma voz gutural o chamando e se virou, era a imagem de um guerreiro. Alguém que ele conheçou, ou que já havia visto o rosto antes. Era gigantesca, com o tamanho de três ou quatro homens. Desumana, mórbida.
"- Eu conheço você..." - balbuciou se levantando.
"- TU NÃO ÉS DIGNO DA COROA KALLABETH!" - aquilo disse lhe apontando o dedo indicador - "TU NÃO SERÁS REI!".
"- O que?" - disse confuso coçando os olhos...
"- Kallabeth, Kallabeth, Kallabeth" - ouviu outra voz próxima a ele. E olhou sobre o ombro direito. Era um rapazote, jovem, nem 15 anos. Falando rápido, agitado. - "Eu fui mais importante do que foste... E eu só carreguei uma mensagem! Veja só, que humilhante ser você hahahahaha" - gargalhou e lhe apontou o dedo.
Sim, me lembro de você, a estátua do jovem Kartonix. O adolescente da minha linhagem que salvou o Império por carregar uma mensagem na antiga Grande Guerra. Você tem a idade do meu avô... mas como? O que?! - pensou confuso.
"- Príncipe, veja só, o que faz aqui?" - ouviu outra voz.
Se virando viu Sir Grozza´R Bär, só que diferente. Mais velho, e maior. Do tamanho de dois homens comuns.
"- Sir, o que está acontecendo?! - pergunou tentando dar um passo em sua direção. Mas suas pernas não lhe atendiam. Era lento e pesado. Aquele passo demorou uma vida inteira para acontecer, difícil e desconfortável -  "Sir Grozza, aonde está meu pai? O que está havendo? Me ajude, lhe peço!" - esticou as mãos dizendo.
Mas o velho Bär gargalhou e apontou o dedo indicador em seu rosto dizendo:
"- Vejam, vejam, o principezinho vai chorar! HAHAHAHAHA" 
E várias risadas ecoaram ao seu redor. Vultos saídos da fumaça colorida que distorcia qualquer compreensão. Confusão. Seu joelho dobrou. Sentiu uma profunda dor nas costas. Uma facada? Girou o pescoço o mais rápido que pode.
Seu pai.
"- Pai, o que é isso? Você me apunhalou??? PAI???" - perguntou caindo. Tudo era lento e moroso.
"- Kallabeth - lhe disse o Rei - ouça a Loba. Ouça sua voz..." - sua voz parecia a voz do seu pai em uma caverna. Distante, ecoada.
"- Pai, mas que merda? O que é isso? Pai me ajude..." - se debatia o príncipe tentando tirar a lâmina das costas.
"- Ouça minha voz garoto!" - e Kallebeth parou de tentar e lhe olhou da forma mais rápido que conseguiu. Aquele homem era seu pai. Só que mais jovem. Vestia a armadura prateada. Uma capa vermelho sangue. Tinha os cabelos e barba bem cortados. Um sorriso jovem e amigável no rosto.
"- Pai, o que está havendo?" - perguntou o príncipe sentindo agonia e dor.
"- Não há tempo para explicar isso. Mas me ouça, guarde minhas palavras sim?" - lhe disse o pai se abaixando em sua direção e tocando seu rosto com as mãos frias.
"- Sim pai... Sim!" - respondeu Kallabeth tentando se conceentrar.
"- Ouça o que a velha Loba tem a lhe dizer. Meu avô, seu bisavô, ele era um homem terrível. Um acordo foi feito. Um acordo antigo como nosso Reino. Nós deveríamos manter nossa palavra. Mas o acordo foi quebrado. E o preço veio. Agora temos uma nova chance... Ouça a Loba meu garoto."
"- Sim pai... Mas aonde estou?" 
"- Não tenha medo meu filho. Não tema. Ouça minha voz..." - lhe disse o pai tampando seus olhos com as palmas das mãos frias.

Kallabeth abriu seus olhos.
"- Pai? PAI? AONDE?" - ele estava deitado na relva. Ao lado do riacho, próximo a floresta. Estava se sentando enquanto falava.
Na sua frente, Kallabeth viu Zarrin dentro da água. Completamente nu.
"- Calma príncipe! Calma!" - lhe disse o amigo esticando a mão em sua direção.
"- Zarrin, porque você está nu?" - perguntou Kallabeth dando um passo em direção da água.
"- Porque eles mandaram..." - respondeu Zarrin.
"- Eles quem? O que está acontecendo?" - perguntou o príncipe vendo seu amigo apontar o dedo para a margem.
Kallabeth sentiu a água molhando suas pernas. Era gelada, mas molhou somente até as coxas. Se virando para a margem viu que no terreno acima deles haviam pelo menos cinco ou seis lobo. Com tonalidades entre brancol, cinza, preto e marrom. Eram grandes como vacas. Desproporcionais em relação a um homem comum. Estavam se movendo lentamente, em conjunto. Circundando a água do riacho. Mostravam suas presas do tamanho de facas, rosnando com os olhos fixos em Kallabeth e Zarrin.
"- Caralho!" - tomou um susto o príncipe - "o que é isso?"
"- Eles estavam aqui quando acordei..." - disse Zarrin - "... veja, o sol está se pondo. Dormimos o dia inteiro! E haverá chuva..." - apontando para o horizonte - "... eu despertei com o seu delírio. Você falava coisas sem sentido. E eu rolei para a água..."
"- CRIANÇAS!" - disse uma voz além da colina e um homem adulto se aproximou deles caminhando sob a relva - "É CHEGADA A SUA HORA DE ENTRAR EM NOSSA MORADA! NOSSA SENHORA LHES AGUARDA!". Ele vestia roupas simples. Tinha cabelos e barbas negros. Parecia ter no máximo cinquenta anos de idade. Os lobos se moveram em sua direção, passando seus dorsos e cabeças pelas pernas do homem. Como um cardume de peixes se aproxima de pão em uma lagoa.
Os dois ficaram lhe olhando, de forma assustada.
"- PRÍNCIPE, DEIXE SUAS VESTIMENTAS NA MARGEM E VÁ NA FRENTE. VOCÊS ESTÃO SEGUROS..." - falou.
Kallebeth se despiu. Ficando nu como em seu nascimento. Os lobos rosnavam grunhindo todo tempo.
O príncipe e Zarrin se apressaram em direção ao bosque, caminhando com as pernas dentro da água gelada... enquanto passavam a fronteira dos altos galhos e grossos troncos, uma chuva fina começou a cair. 
Ouviram então o uivo de um lobo. Muito alto. Assustador e uníssono com o vento.
"UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUÕÕÕõõõ...."
Agora não há mais volta! -  pensou Kallabeth.

PARTE VI: A Loba e o Príncipe. (continuação abaixo).

"- Essas árvores parecem ainda maiores do que as da entrada..." - disse Zarrin.
Também acho - pensou Kallabeth - e está ficando mais escuro também.
A mata ao redor também havia mudado. Os arbustos avançavam uns sobre os outros, até o perder da vista. Por vezes, a luz do sol passava pela fresta deixada entre os galhos e iluminava um ponto do chão. Mas na maioria do tempo, as árvores formavam uma espécie de teto que praticamente impedia a visão do céu.
Desde que entraram, Zarrin e Kallabeth caminharam sem parar. Ao som de sapos, algumas corujas e as vezes algo maior que se movia na vegetação terrestre, a espreita. A sensação de estarem sendo observados era constante. E pouco os dois conversaram além do estritamente necessário.

Em determinado ponto, o riacho ficou mais fundo. E mais fundo. E mais. Até que seus pés pararam de tocar as pedras do leito. Foram então flutuando na correnteza. A água parecia ainda mais gelada ali. Esse rio,  parecia desproporcionalmente grande para o bosque que viam do lado de fora. As margens foram gradativamente se abrindo e em algum momento a correnteza ficou perigosa. Fazendo a água saltar alto, a cada choque nas grande pedras pelo caminho. 
Zarrin e Kallabeth se perderam de vista. Gritaram seus nomes e tentaram se comunicar como puderam. Mas sem exito. As árvores pareciam vergar sobre as águas, formando um túnel de galhos e folhas que tornava tudo escuro e soturno. 

Foi em uma curva qualquer do rio, que as águas se acalmaram sem explicação. E sem qualquer motivo explicável, terminavam em uma grande lagoa de água escura. Quando Zarrin chegou a esse ponto, encontrou Kallabeth lhe esperando com água pela cintura. Próximo a margem pedregosa. A lagoa era circundada por uma clareira. Tudo ficava bem próximo do penhasco que era visível na entrada do bosque. 
"- Príncipe!" - esclamou Zarrin
Que respondeu com um sinal de silêncio.
"- Ali, há um vulto naquela caverna..." - disse baixinho Kallabeth.
Zarrin cerrou os olhos enquanto sussurrava de volta:
"- É a última luz do dia... Será noite em breve... A quanto tempo estás aqui?"
"- Pouco, mas desde que cheguei aquilo não se mexe. Você vê?"
"- Vejo. Acho que é ela..."  - disse Zarrin avançando sobre a margem - " Olá! Saudações! Viemos a pedido de um homem que se apresentou como Krot. Meio homem, meio coruja talvez...?"
E ouviu uma coruja chirriar em uma árvore próxima.
"UOH-UOH" - fez a ave.
Zarrin olhou para as árvores procurando. E quando moveu seu rosto novamente só pode ouvir a voz de Kallabeth
"- ZARRIN..." - ele gritava.
Havia uma senhora a sua frente. A menos de um metro. Cabelos brancos e lisos. Do tamanho de uma menina de quinze anos de idade. Usava um manto de seda branco que lhe cobria todo corpo, menos os pés. Estava limpa, apesar de haver bastante barro no chão. Seus olhos eram azuis claros, singelos. Na sua boca havia um sorriso desenhado pelos lábios finos, sem dentes e o olho esquerdo ficava mais aberto que o direito. Zarrin tomou um susto, dando um passo para trás. Era uma figura peculiar. Levemente corcunda e com a pele marcada por cicatrizes finas e longas.
"- Oh me desculpe..." - disse instintivamente.

"- Olá jovem mestre..." - respondeu ela com uma voz fina como uma nota alta de um violino e fria como uma lufada de vento invernal que não pede licença para invadir uma casa.
"- Olá?!..." - respondeu Zarrin de forma bastante retraida.
A senhora moveu a cabeça para o lado, tirando Zarrin do seu caminho e mirando seus olhos azuis na água, onde Kallabeth saia da lagoa. Fazendo sapos pularem coaxando sob seus pés. Então disse com uma voz muito calma:
"- Isso não é algo que vemos todo dia... Sangue real, nu como no nascimento, vindo até nosso covil com um simples convite. Tsc, tsc, tsc. Isso não é algo que vemos todo dia... Não, não..." - e sorriu novamente enquanto fazia uma leve flexão da coluna.
Kallabeth ficou visivelmente desconfortável, mas deixou a coluna reta enquanto dizia:
"- Saudações nobre Senhora! Viemos a convite de Krot, o "homem-coruja", se é assim que o chamam... Pretendemos ter uma conversa com aquela que ele diz ser a "Velha Loba". Seria a senhora?"
"- Sim seria... hehehe, tsc, tsc, fala muito bem para uma criança tão jovem. Foi bem ensinado, foi sim. Isso é importante, muito importante, caminhar e falar bem. Gosto do que vejo aqui..." - respondeu a velha fazendo um meio círculo ao redor da Kallabeth.
"- Essa clareira está cheia de espectadores! Há corujas demais nas árvores, sapos demais na lagoa, sombras demais na floresta... Lobos, cães de guerra, cavalos!? São gigantescos..." - pensou Kallabeth, observando o espaço enquanto a mulher o rodeava.
"- Aaah não são cavalos... Não são!" - respondeu ela, mesmo sem ele ter dito uma palavra.
E quando ela disse as palavras, os olhos de Kallabeth voaram na direção dos olhos dela. Que o encarava sem sorriso. Com calma. Prostrada a alguns metros do corpo do príncipe.
"- Ela sabe o que penso!" - pensou automáticamente.
E a viu sorrir um sorriso com dentes pontiagudos. Desumanos.
"- O que queres conosco?" - Kallabeth disse dando um passo para trás.
"- Com vocês, bem pouco, quase nada!" - ela lhe respondeu - "... mas contigo!? Posso querer muito! Quase tudo!" 
Kallabeth ficou em silêncio. Aquilo parecia uma ameaça velada. Mas o jovem príncipe havido sido muito bem treinado, ela tinha razão. Passara mais de um ano da vida morando junto a um homem que chamavam de Sillas, o artesão. Ele foi o feiticeiro do seu avô. Era velho e ajudado por meninos e meninas que deveriam ser treinados nas artes mágicas e da mente. O príncipe foi um desses garotos com a idade entre treze para quatorze anos. Muitas vezes, haviam travado batalhas e jogos mentais, que Kallabeth confundia com sonhos. E que sempre eram iniciadas e encerradas por Sillas. Apesar de não ter nenhuma capacidade mágica, Kallabeth se lembrava de alguns movimentos mentais úteis. 
Então descansou sua mente. Se deixando levar pelos sons das aves e da água. Não aceitou nenhum pensamento vocalizado, barrando sua fonte na essência da ideia. Fazia tempo, era como meditar profundamente. Sem fechar os olhos. Sem perder a percepção.
Ouviu a voz da velha dizendo dentro da sua cabeça, bem baixinho:
"- A mente de pedra... Bom, muito bom!" - e sua voz desapareceu.
Não reagiu. Se manteve a encarando com um rosto sólido.
"- Sempre os achei criaturas fascinantes. Verdade seja dita, não vou insistir..." - a voz disse dentro da sua mente, em um tom diferente, como se estivesse se esforçando dessa vez... E a velha continuou com a boca: "-... mesmo podendo dobra-lo ao meio como uma águia rasgaria um canário com seu bico!"
"- Talvez possa!" - disse Kallabeth - "... e foi para isso que nos trouxe aqui? Para nos dar ameaças e mostrar que sua palavra nada vale?!" - lhe interpelou o príncipe irritado.
Os pássaros gritaram nas árvores. Houve um único uivo alto como um trovão que causou silêncio na floresta:
"- UUUUUUUUUUUUUUUUõõõõuuuuuuuu..."- vinha da mata próxima.
A cabeça da velha se moveu em direção ao uivo.
Um lobo gigantesco, com a cabeça preta e o corpo em tons de preto e cinza pulou por entre as árvores. Tinha olhos de sangue, vermelhos com brasas e a boca do tamanho de uma roda de carroça. Seus músculos frontais se retesaram, era o maior animal que já viram. Maior até do que os lobos na entrada do bosque. Ele estava a metros de distância, mas enquanto se sacudiu foi possível ouvir o som das orelhas e da cauda batendo. Soltando folhas e galhos para os lados. Como se estivesse deitado na relva. E logo depois se pôs em marcha na direção dos três.
"- Minha palavra, príncipe, é tudo que temos a muito, muuuuuito tempo..." - disse a velha vendo que Kallabeth e Zarrin estavam apavorados diante da besta negra - "... pare!" - ela disse levantando a pequena palma da mão esquerda em direção ao animal que avançava. E ele estacou imediatamente, sob a ordem. 
O lobo parou, mas ficou caminhando para um lado e para o outro. Dois, três, quatro passos para cada lado. Rosnando e respirando bufadas de ar. Como se estivesse respeitando uma linha invisível desenhada pela ordem da velha. Suas presas eram do tamanho de facas de jantar. Animalescas. Ela baixou a mão virando de costas para os dois e indo em direção a caverna.
"- Venham crianças, chega de brincar. Temos muito o que falar..." 

PARTE VI: O Príncipe e a Loba. (continuação abaixo).

A entrada do lugar era escura, com folhas e cipós que se balançaram quando eles passaram. 
O chão da caverna era de cascalho solto. E ele gemia a cada passo que davam. As paredes de pedra eram úmidas e cheias de limo verde e amarelado. A Loba caminhava com desenvoltura pouco natural para a idade do corpo que tinha. Kallabeth vinha depois dela e logo atrás, Zarrin. Alguns metros depois da entrada, o túnel fazia uma descida. O cascalho ali era substituído por uma pedra lisa e sólida. Que serpenteava o chão iluminado por tochas nas paredes.
Kallabeth sentiu um leve toque em seu ombro direito e se virou rápido, alerta! Era a mão de Zarrin, que em silêncio lhe apontou ao suporte das tochas. Eram todos iguais. Pequeninos homens de metal negro, que seguravam o cabo das tochas com seus braços e pernas, como que agarrados a uma tábua salva vidas. Com suas cabeças inclinadas para cima e suas boca abertas. Sem olhos, sem cabelo, sem sexo, somente corpos humanos moldados no metal, segurando a luz da passagem.
Quando os dois retornaram sua atenção para o corredor ela os observava, parada. Bem diante de uma curva do caminho.
Houve um silêncio.
"- Belos suportes..." - balbuciou Zarrin - "trabalho finamente.."
"- Sim!" - ela o interrompeu - "São muito antigos, mas não tão antigos quanto as paredes... O que é novo aqui, são vocês!" - e se aproximou alguns passos dizendo mais baixo - "... eu não ficaria para trás nesses corredores. Não, não, não... tsc, tsc, tsc... Os que aqui habitam não se importam em esperar por todo o tempo de uma árvore familiar de vocês. Do seu primeiro representante até os dois rapazotes maduros que vejo. Existe muita raiva nesse lugar. Muita, muita dor..." - e se virou novamente para o corredor, dizendo - "... já eu, sou muito, muito velha e não posso esperar tanto. Me sigam..."

O corredor descia mais. E virava uma escadaria. Com degraus amplos, do tamanho de homens deitados. E nessa passagem, haviam túneis laterais. Todos escuros, sem nenhuma forma de iluminação.
"- Se errarem o caminho, nem eu saberei aonde procura-los...ããhehehehe.." - e riu, foi tudo que a voz fina da Loba disse.
Kallabeth e Zarrin não saberia ao certo dizer quanto tempo se passou. Uma fumaça branca, tomou conta do piso. E enquanto caminhavam, ela subia e subia. Até que suas cabeças mal conseguiam ficar de fora. A Loba virou uma silhueta. As tochas focos opacos de luz. Os dois continuaram caminhando e caminhando. E o corredor ficou mais e mais sinuoso. Até que a Loba não podia mais ser vista. Seguiram as luzes e quando perceberam, pisavam em água. Zarrin se abaixou e pegou uma pedra com limo...
"- Um rio!?" - disse.
"- Vamos Zarrin, vamos continuar...." - respondeu Kallabeth.
Os dois seguiram. Por tempo demais.
Em algum momento, parecia haver mais pedras do que água e então pisavam em grama. Grama verde e baixa. A fumaça branca, espessa como vapor de uma caldeira bailava diante dos seus olhos, bloqueando qualquer visão. As paredes pareciam desaparecer. Não haviam mais tochas. E era mais claro. Tateavam no desconhecido os dois amigos, quando ouviram.
"- Quem vem lá?" - era uma voz alta. Parecia ser dita dentro de uma catedral, pois ecoou por todos os lados.
"- Viemos a convite da Loba... estamos perdi..." 
"- Quem... vem lá?" - a voz interrompeu Zarrin.
"- Me chamo Kallabeth Akasthar. Sou o único filho vivo de Kallarth Akasthar, Rei dos homens e das terras ao oeste do Osso. Ao leste do grande mar. Ao norte das terras ermas e o sul dos Reinos Menores...." 
"- Você é bem vindo Kallabeth, mas seu vassalo não pode entrar no Círculo. Aproxime-se, saia da névoa. Estávamos esperando por você."

Alguns passos a frente e a névoa desvaneceu como uma cortina que é aberta.
O chão era gramado, o céu era de uma noite estrelada. E havia um penhasco muito alto. No horizonte a frente, era possível ver o grande mar distante. Em suas costas, as paredes de pedra se erguiam até desaparecer nas nuvens. Ao norte as campinas se perdiam em uma espécie de savana com bosques sem fim. Ao sul haviam pequeninas cidades, iluminadas por minúsculas luzes acesas. Bem ao centro estava o castelo de onde Kallabeth e Zarrin haviam saído a tanto tempo. Havia uma lua branca e redonda entre as núvens do céu. As estradas que conectavam tudo isso, eram finas como fios de uma teia de aranha. Esticadas sobre o terreno, fazendo curvas longas e subindo e descendo colinas.
"- Magnífico..." - balbúciou Kallabeth ao contemplar toda paisagem.
Na beirada do penhasco, havia a Loba, vestida com sua túnica clara. Lhes encarando com frieza no olhar. Ao seu lado havia um três blocos de pedra do tamanho de carroças grandes. As pedras tinham inscrições entalhadas. Visivelmente diferentes em cada face dos blocos. Sobre o primeiro bloco havia uma coruja gigantesca, do tamanho de um homem alto. Sobre o segundo bloco havia um reptil com escamas verde luminosas. Enrolado como uma cobra na relva, mas do tamanho de um touro. podia-se ver suas patas dobradas com grandes garras. E um par de chifres sob a cabeça com uma boca cheia de dentes pontiagudos. Tinha dois olhos puxados nas laterais, com pupilas lilás e azuis. O terceiro bloco estava vazio. Sob o chão, a alguns metros da névoa, um degrau de pedra fazia o contorno até a beira do abismo. Formando um círculo com as três pedras dentro. 

O bico da coruja se abriu vagarosamente. Suas asas bateram fortemente, mas suas patas não deixaram a grande pedra em que estava repousada. Sua cabeça pendeu para a nuca e ali ficou, os olhos do animal se fixaram no céu, piscando e se movendo normalmente. A medida que o bico se escancarava algo começou a surgir como que dá garganta do grande pássaro. Parecia uma bola de pelos, mas os fios foram sendo puxados pelas laterais, até que dois olhos humanos, um nariz e uma boca surgiram. Parecia ser uma cabeça de uma mulher, jovem que chegava ao seu vigésimo verão. A dimensão da cabeça ocupava toda garganta da coruja, com o queixo sob sua língua e a testa travada no que seria o céu da sua boca.
A Loba e o reptil encaravam os visitantes durante todo processo. Kallabeth manteve-se estático. Mas sua expressão revelou uma grande agonia. Zarrin, recuou alguns passos dizendo:
"- Pelos deuses..."

"- Seja bem vindo Kallabeth, filho de Kallarth, do sangue de Katrion o troca pele!" - disse o rosto na boca da coruja. Sua voz soava estranhamente pacífica e reconfortante - "eu sou Ozia, e estou aqui para lhe ajudar a tomar uma decisão! Meu conhecimento, é a dádiva que lhe ofereço nesta noite... E isso é tudo que terá de mim!".

Enquanto Ozia falava, o reptil esticou sua cabeça para frente. Suas patas se contraíram em uma espécie de espasmo doentio, enquanto sua mandíbula se abria completamente. Do fundo da sua garganta um rosto de olhos fechados brotava. Empurrado no sentido das grandes presas do animal. Sua língua bifurcada foi posta para fora. E o rosto repousou, como na coruja, com o queixo sobre a garganta e a testa sob a parte mais superior da boca.

Era um homem. Um pouco mais velho, mas não tinha cinquenta verões de vida.
"- Coloque seus dois pés dentro do círculo sagrado, ou vire-se de costas e abandone esse santuário!" - disse com uma voz retumbante.

A Loba havia começado a se mover em direção a grande pedra que estava vazia. Mas parou encarando Kallabeth.
Será que nos deixarão partir em paz?! - pensou o príncipe no mesmo instante.
"- Você é livre para partir, mas nunca mais poderá voltar..." -  ouviu em sua mente a voz da Loba. E lhe olhou no mesmo instante. - "Escolha, príncipe!" 
A curiosidade de Kallabeth foi maior que seu medo. Ele deu um passo e depois outro, subindo no círculo de pedra. Ao mesmo tempo em que ele entrava, a velha Loba se contorcia com avidez, e parecia que seu corpo cairia no chão, mas estacou em um ângulo insólito, apoiada por uma única perna no ar... Enquanto um par de grandes orelhas de lobo surgia por entre seus cabelos. Em seguida jogou seu corpo para o ar, pulando e patas substítuiram suas pernas e braços. Até que seu corpo todo em uma torção desconfortável no ar, como uma vestido é torcido por uma lavadeira no rio se transformou em um lobo cinzento do tamanho de um cavalo manga larga. Terminando seu salto sobre a pedra que estava vazia. Pousando com gentileza e plenitude. Ela uivou para a lua:
"- ÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚuuuuuuuuuuuõõõnm..." - e logo depois ouriçou seu pelo, chocalhando-o com força e precisão. 
Kallabeth e Zarrin assistiam à tudo estupefatos.
"- Bem vinda guardiã!" - disseram o reptil e Ozia em uníssono.
A loba sacudiu sua pelagem novamente, mas de uma forma diferente. Como se estivesse "se ajeitando". A cabeça primeiro, suavemente e depois severamente, o dorso e a cauda por último. De olhos fechados durante todo o tempo. Depois sentou-se sobre as patas traseiras e bocejou. Delicadamente. Abrindo a bocarra e a mantendo aberta enquanto um rosto surgiu da sua garganta. Não houveram espasmos, pareceu natural para ela. Os olhos que se abriram de dentro da sua garganta não poderiam ser confundidos. Era a velha. Ela sorriu, moveu seu rosto de um lado para o outro com delicadeza e disse:
"- Kallabeth, recebemos a notícia do seu nascimento com muita alegria. Festejamos sua chegada. E mesmo diante da morte da sua mãe, agradecemos a Lua e ao Sol pela sua vinda. Você era esperado!" - e a Loba baixou a cabeça enquanto a cabeça dentro da sua boca fechava os olhos em sinal de reverência.
A coruja Ozia, continuou:
"- Nós representamos uma força muito antiga. Talvez uma das primeiras forças não divinas desse planeta. Nossa busca é pelo equilíbrio Kallebeth. Esse equilibrio, feito da forma apropriada, permitirá que haja menos sofrimento. E talvez um dia, paz para todos..."
O reptil então disse com sua voz ressonante:
"- Houve um tempo de paz assim. Nós vivemos esse tempo. Sua raça acreditava nos poderes ancestrais e através dessa crença, respeitava o equilibrio..."
Então os três disseram em uma só voz:
"- Isso aconteceu!"
A Loba continuou:
"- Mas vocês se esquecem rápido. E deixaram nosso código de lado. Buscamos lembra-los, buscamos encontra-los na escuridão para onde vocês correram. Não foi possível... Vocês foram fundo demais. Ficaram gananciosos, violentos demais!"
A Loba levantou as patas traseiras e de dentro da boca se ouviu um rosnado gutural... Sua pelagem se ouriçou...
"-RRRRRÃÃÃãããooorrrrrrrrr..." - fez o som.
Kallabeth e Zarrin se arregalaram.
"- Ainda assim!" - interrompeu Ozia batendo as asas como alerta, e a Loba parou de rosnar - "Acreditamos no coração humano. Na bondade da sua raça. E a na sua capacidade de reatar os laços..."
"- Nós acreditamos!" - repetiram os três em uma só voz.
"- Você é jovem. Tem uma vida de possibilidades diante dos seus pés. Nós o vimos nascer e acompanhamos sua jornada. Agora, na sua presença, que planejamos por décadas, oferecemos a você uma chance de conciliação. Uma chance da sua raça reatar o nó com o velho código!" - retumbou a voz do reptil.
A loba ergueu a cabeça e fez um som com a boca da velha, estalando a língua:
"- Tlãc-tlãc! Tlãc-tlãc!" 
Correndo da fumaça branca na base das pedras, vieram sete lobos bestiais. Três deles arrastavam, seres humanos em suas presas. Um deles não o arrastava, mas carregava o homem pelo abdômen com seus dentes cravados das clavículas até a pelvis. Os homens gritavam. 
"- Por favooor, não façam isso!"
"- PELOS DEUSES!"
"'- AAAAAAAAAAAHHHH MEU PAI, ME AJUDE..."
Os lobos pararam a alguns metros de Kallabeth e Zarrin, os homens nitidamente não compreendiam o que se passava ali...
"- Esses são os líderes, do bando que seu Rei lhe mandou deter." - disse a velha - "o do meio (que era o homem suspenso na boca do lobo) é o chefe de todos eles...".
Então ela falou em uma língua diferente, não compreendida por Kallabeth e Zarrin:
"- Galtir´h garatk salamanacataracatasala marik´h MALAR!" - pareceu dizer a velha.
E os lobos viraram suas cabeças e olhos para Kallabeth.
"- O que deseja que seja feito com a vida desses homens?" - perguntou a Loba.
Kallabeth suava. 
O que eu faço? - pensou. E olhou para a velha que o encarava com muita atenção.
"- Eles são mesmo ladrões e assassinos?" - perguntou o príncipe.
"- São!" - disse a velha - "e também violaram fêmeas e filhotes da sua raça, a dias e mais dias ouvimos seu sofrimento..."
Kallabeth deu um passo na direção deles e disse:
"- Eu, por ordem da Coroa, sentencio-os a morte. Mas a boca que declara a morte do outro, deve controlar a mão que causa seu fim..."
"- Sim" - respondeu o reptil.
"- Assim está escrito!" - disse Ozia.
"- Como pretende mata-lo Príncipe, você está desarmado!" - perguntou a Loba.
"- Farei justiça com as minhas próprias mãos... larguem esses homens!" - respondeu Kallabeth caminhando em direção a eles.

PARTE VI: O Príncipe e o Código. (continuação abaixo).

"- Principe Kallabeth!" - disse a voz fantasmagórica do réptil.
E o príncipe parou imediatamente.
"- Repouse sua mão na testa deste homem e espere..." - disse a criatura.
Kallabeth não compreendeu. Mas fez como lhe foi dito.
Se aproximou e tocou a palma da mão direita sobre a testa suada do homem que tinha o abdome e os braços presos dentro da mandíbula do grande lobo.
"Esse é aquele lobo que vi fora da caverna... que saltou enquanto falávamos com a velha..." - percebeu - "...eles tinham isso ensaiado, estamos em um teatro de pantomimas?"
"- Feche seus olhos majestade!" - disse o réptil.
E na escuridão das suas pálpebras o príncipe viu uma imagem pequena, uma cabana feita de madeira e palha, com fumaça saindo pela chaminé. Uma floresta densa ao seu redor. Sequoias, pinheiros e árvores desconhecidas. Sempre que via uma figura em um novo livro, um quadro ou qualquer que fosse a paisagem, ele buscava referências na vegetação. Era seu treinamento. 
"- Sempre busque saber aonde está! As bocas mentem, as árvores não!" -
 lhe fora ensinado - "...vegetação do leste! Sem dúvida!" -  percebeu.
Mas tirou a mão da testa e abriu os olhos.
"- Que magia é essa?" - indagou Kallabeth.
"- Acalme-se, toque na testa desse homem, nenhum mal lhe será infringido..." - respondeu Ozia.
Sua respiração estava ofegante. Hesitou. Mas seguiu com aquilo.
"- Que lugar é esse?" -  pensou.
Dentro da cabana havia uma mulher deitada em um colchão no chão. Pernas abertas. Sangue. Gritos de dor. Um bebê chorando. Uma velha levantou a criança. A mulher pareceu desmaiar.
"- Meu bebê... meu bebê..." - dizia.
A velha olhou seus pés, barriga, olhos e boca. As mãos. Parecia procurar algo na criança... 
"- Lhe faltam dedos!" - disse.
E um homem surgiu. Grande, com uma barba de muitos anos. Uma grande barriga e grandes braços. Esticou seu braço e pegou a criança uma uma mão. O bebê pareceu se aconchegar. Mas o homem a levantou pela perna esquerda, com a outra mão. A criança gritou desconfortável.
"- Aleijado..." - disse sua boca - "... ainda matou minha mulher para sair da barriga... Se ficar aqui, ele morre!" - e deixou a criança cair no chão como uma pedra.
A velha lhe recolheu. A criança chorava. A velha se aproximou da mulher, ela ofegava.
"- Respire fundo minha criança!" - lhe disse.
A mulher que havia parido não tinha 15 invernos de vida. Jovem demais. Sangrava demais.
"- Respire fundo, calma, eu cuidarei de tudo..." - repetiu a velha.
"- Meu bebê, bebê... eu... meu... quero..." -  e parou.
A menina mãe morreu.
"- Limpe essa merda toda velha, ou você morre junto com esse aleijado!" - disse a voz do homem saindo da cabana.
A velha assentiu. 
A imagem mudou.
Um menino, entre outros meninos. Roupas sujas e rasgadas. Ele passa a mão no cabelo. Lhe faltavam dedos na mão esquerda. Tinha dois, um parecido com o polegar e o outro parecido com o dedo médio, só.
"- Aleijado!" - alguém gritou.
Uma pedra foi atirada em sua direção. Raspou sua cabeça. Sangue. Kallabeth ficou tonto. Sentiu uma dor forte na cabeça. E de repente, via tudo pelos olhos do menino. Sua mão esquerda era aleijada. Sua cabeça estava aberta. Caiu de joelhos.
Chutes, socos, uma sarrafada na barriga, vômito. Dentes quebrados.
"Vou morrer?" - lhe ocorreu.
Abriu os olhos em outro lugar.
Um pátio. Viu uma flâmula balançando sobre uma muralha de pedra. Lama no chão. Filas de homens.
"Conheço esse lugar..." - pensou.
Alguém gritou longe. Uma ordem militar. Isso é um exército. Um homem a sua frente lhe entrega uma espada. Ele estica sua mão para pegar o cabo e vê os dedos lhe faltando. Mas pega a arma mesmo assim.
Uma guerra. Espadas contra espadas.
"Como é difícil manejar a arma com essa mão... não vou conseguir..." - pensa.
Um homem forte avança sobre ele. Um campo de batalha. O sol está nascendo ou se pondo. O som dos cavalos, o urro dos outros homens. Um machado desse sobre ele. Se esquiva rapidamente. Pega uma adaga do cinto e enfia nas costelas do seu atacante. Vê os olhos do homem se abrirem. Gira a lâmina.
"Ossos quebrados, orgãos rasgados..." - ele vai morrer em breve.
Puxa a lâmina para fora, avança sobre outro homem.
"Eu não escolho, sou um espectador dentro do corpo de outra pessoa? Isso é um sonho!"
Mais sangue, um chute nas costas. Lama entra na sua boca, se vira. Alguém ataca quem iria lhe atacar.
"Salvo por pouco..." - se levanta. Raiva. Avança. Enfia a espada nas costas de um homem. Gira a lâmina puxando para fora. Um cavalo vem em sua direção. É atropelado.
Acorda.
Deitado em uma cama fofa. Duas mulheres nuas ao seu redor.
Se levanta. Dor na cabeça. Ressaca forte, a mais forte que já sentiu.
Há outros homens e mulheres deitados no chão ao redor.
Caminha sobre eles. Abre a porta e vê um corredor. Desce uma escada.
Grita:
"- Água!".
Uma menina lhe trás uma jarra. Arranca da sua mão e lhe dá um tapa na cara com a mão aleijada. A menina voa chorando.
"- Sinto raiva, tanta raiva...." 
Quebra a jarra no chão, depois de beber toda água. Caminha mais, abre a porta novamente. Uma cidade.
"- Conheço esse lugar... Já estive aqui..."
Se aproxima de um cavalo preso, há um homem próximo do animal que diz algo.
Um soco no meio do rosto dele. O homem cai sentado com sangue jorrando pelo nariz. Monta o cavalo e cavalga rápido. Corre e corre. E tudo desaparece.
O príncipe sente lágrimas lhe correndo pelo rosto.
"- O que estou sentindo?" - pensa confuso.
Abre os olhos, querendo parar tudo aquilo. Mas ele está em outro lugar. Uma clareira no meio de alguma mata. 
"As árvores..." -
 tenta ver para identificar. Sem sucesso. Não consegue mover a cabeça. Há vários homens a sua frente. Sentados e de joelho.
"Estou falando..."
"- ... vamos ataca-los durante a noite! Pegar o que valer a pena carregar, ouro, armas, bucetas, e tudo mais... Matem quem estiver no caminho. Entrar e sair rápido. Na hora do lobo! Encontrarei todos vocês aqui, nesta fogueira. E aí festejaremos!"
E os homens gritavam. E seus gritos se soldaram aos berros de dor de crianças, mulheres e homens em uma vila. 
Sangue na minha arma. Sangue no meu rosto. Rostos de dor diante de mim. Violência.
Em um piscar de olhos, de volta a clareira. Três grandes fogueiras acesas agora. Cheiro de carne assada na brasa. Mais gritos, mas agora há música. Mulheres sendo estupradas. Corpos ao chão. Poças de sangue. O corpo desse homem faz sexo com uma mulher que se debate a sua frente, resistindo....
"Não" - pensa Kallaberth - "Isso não... PARA!"  - ele tenta gritar. 
Acorda.
Está de pé com a mão na testa do homem que está sendo mantido preso na mandíbula do grande lobo. Kallaberth puxa sua mão enojado. O homem lhe encara os olhos.
O príncipe dá um passo para trás se abaixando, e olha para a mão do homem: há somente dois dedos deformados. 
"Era ele. Eu era ele... Fui eu ou ele?" - divaga.
"- Não meu senhor. Por fav...." - Kallabeth olha para sua própria mão e move os cinco dedos em leque.
"Era ele! Eu não sou isso!"
Então fecha os dedos em um punho e abre novamente encarando-o. O príncipe se apoia no pescoço do homem e empurra todo seu peso para baixo. Tentando sufoca-lo com as próprias mãos... O sangue verte pela boca do lobo, com o peso de Kallabeth as presas inferiores rasgaram a carne. Ao menos superficialmente. O príncipe o solta e da dois passos para trás, saltando novamente sobre o pescoço dele. Gritando em pura ira.
"- Tlãc-tlãc!" - estala a língua da velha e o grande lobo cerra sua mandíbula completamente. Rasgando o corpo do homem que segurava como um pedaço velho de pano... Um pedaço do tronco, do pescoço e da cabeça ficam nas mãos de Kallabeth, que joga tudo no chão. Em seguida os outros lobos abocanham os homens que ali estavam. Um arranca-lhe um braço. Outro rasga sua cabeça para fora do corpo como um talo de maça é arrancado da fruta por uma criança, torcendo e puxando. Os animais continuam mesmo depois dos corpos mortos não se moverem. Intestinos são largados ao chão como cobras claras, poças de sangue despejadas. Pele, pelos, unhas e cabelos. A coisa toda é rápida, mas o extrato da violência fede a fezes, sangue e lágrimas.

Quando tudo termina, Kallabeth chora caído de joelhos. Zarrin está atônito.
A loba, o réptil e a coruja observam.

"- Você é, o que nós somos, Príncipe!" - diz a voz Ozia.
"Ternura?" - pensa o príncipe virando a cabeça em sua direção. E se lembra da velha... Se movendo rápido a encara. O rosto dele não expressava nenhum sentimento. Estático, lhe olhando profundamente.
"- E o que é isso?" - diz Kallabeth se levantando do chão. - "A magia de vocês me contou uma história. Uma criança aleijada, abandonada, que se transformou em um monstro. Um violador..."
"- Ele era culpado? Majestade!" - diz a voz altissonante do réptil.
"- Não mais culpado do que um homem de sangue nobre, nascido e educado dentro de um castelo. Mas que escolhe viver da dor causada ao outro... Que viola vassalos e empregadas quando e como quiser..." - responde o príncipe em tom ácido.
"- Blyat!" - diz a velha dentro da boca da Loba.
"- Justiça, príncipe..." - diz Ozia - "... BLYAT é o que o código escrito por homens e por nós, chama de JUSTIÇA! É justo que vocês cacem pois sem a carne, seus filhos morrerão. Mas é justo que eventualmente, um lobo consiga proteger sua família do aço que os homens carregam para dentro dos bosques. BLYAT! É como chamamos... Você percebe?"
"- Justiça..." - balbucia Kallabeth.
"- MALAR dâs track´kalapasamanacatasala marik´h BLYAT!" - diz a velha quase que cantando as palavras.
"- O lobo mata, mas nem sempre. Ele pode perder. Ele pode vencer. BLYAT!" - diz o réptil. E Kallabeth compreende que isso é a tradução...
O príncipe se vira para Zarrin, que está ajoelhado na beira do degrau de pedra. Os olhos do amigo lhe encaram. Então ele olha para os três pilares de pedra e pergunta:
"- O que querem de nós?"
"- BLYAT" - respondem as três vozes em uníssono.

PARTE VII: O Código e o Reino. (continuação abaixo).

"- Tragam. Agora." - disse a alta voz do réptil.
Da névoa branca que separava aquele lugar do mundo, saíram quatro pequenas criaturas. Caminhavam sobre duas pernas. Vestiam roupas simples, puídas. Eram do tamanho de crianças, mas com traços adultos nos rostos. Atrás dessas primeiras quatro, vinham mais cinco e depois mais onze e depois eram demais para contar. Circundaram todo lugar. Algumas traziam crianças ainda menores, em seus braços. Cabelos escuros e claros, traços diferentes. Olhos de todas as sortes de cores. Alguns tinham tranças, outros flores e galhos nos cabelos. Seus olhos eram levemente puxados e seus narizes eram achatados como o de felinos. Não eram belos, mas provocaram a curiosidade de Kallabeth e Zarrin.
"- Mas que merda é essa?" - disse Zarrin se assustando quando as pequenas criaturas passaram por ele, como se não estivesse ali. Os mais altos ficavam um pouco acima da linha do seu umbigo.
"- Kataplassamakataplamazuummm..." - disse Ozia.
E do meio deles, um deu alguns passos a frente da pequena multidão que se formara...
"- Yataaassaxamakaiatasaaa das paiá tansalama cara´n ratabaaar..." - respondeu o que parecia ser uma espécie de sacerdote ou líder tribal.
"- Esse é Yasafantasu. Mas todos o chamam de Rato Lunar. Ele é o guardião do código.- Rato Lunar retirou um pergaminho que era um pouco menor que seu tamanho, de uma espécie de pequena carroça puxada por um porco. O animal parecia um cavalo perto dessas criaturas. Dando pequeninos passos, Rato Lunar se aproximou de Kallabeth e ele pode ver os olhos azuis da criatura. Uma pele marcada pelo sol e tatuagens no rosto. Parecia ser muito mais velho do que o homem mais velho que o príncipe já vira alguma vez na vida.
"- Taiapa namata ia..." - lhe disse.
- Qual é seu nome? - ouviu o príncipe em sua mente. A loba...
"- Kallabeth 
Akasthar, filho de Kallarth Akasthar..."
"- AKASTHAR..." - repetiu o pequeno. E Kallabeth percebeu que seu nome parecia mais com o jeito que esse povo falava, do que com a pompa que a corte fala.
"... tanpaai samarataxalamatara rampaia taiê sanda ai taxalamanipamonia taka AKASTHAR!"
- Muito tempo se passou desde a última vez que um AKASTHAR entrou aqui.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

PARTE II - O Rei e o Príncipe.

 

(REPOST DA PARTE I - continuação abaixo): O Rei e o Reino.

 Há um homem cansado, sentado na salão. Seu cansaço repousa sobre o trono real. E logo acima da sua cabeça velha, de fios brancos, lutas e dias tantos, existe uma coroa. Antes dourada, hoje manchada, mas ainda cravejada de pedras, rubis e diamantes. Suas mãos enrrugadas, magras e fracas, já foram grandes mãos de um guerreiro. Admirado, temido, faminto por vitórias e nunca vencido. O salão estaria vazio se não fosse por ele. Sua respiração produz núvens brancas de vapor invernal. Sobre seus ombros, um manto veradeiramente real. Vermelho cor sangue. Com taxas de metal e brancas bordas esvoaçantes, sem igual. Lá está ele, sentado ao trono sobre o último degrau. Como quem dissesse ao próprio reino:
"- Vejam todos, estou no ponto mais alto do Reino. Acima de qualquer montanha ou de qualquer desejo. Aqui, vos digo amigos e inimigos: temei-me. Pois ao som da minha voz, frias lâminas afiadas deslizarão pelos seus pescoços. E como o sol rompendo o turvo véu da madrugada, o sangue brotaria pelo horizonte vermelho, sem desculpas ou demoras! Brutal, como a força da natureza. E rápido como a cauda da raposa que desaparece no bosque distante dos olhos do caçador. Temei-me. Pois sou implacável!".
Mas nada diz ele. Nenhuma palavra é parida por aquela boca soterrada na funda barba de décadas e mais décadas de vida. Não caro leitor. Aquele homem cansado, imponentemente sentado, no ponto mais alto do castelo coroado, poderoso como um Deus alado, está calado. E seus olhos avermelhados, estão petrificados sobre o nada que sua mente busca desvendar. O vazio desesperador e pálido, de um mundo complicado. Intrigado. Como quem faz um cálculo estelar colossal sem mover um músculo. Ensaiando o movimento de peça por peça do tabuleiro de xadrez com a mente. Imaginando os reflexos, os movimentos perplexos, a missão, o objetivo e o nexo! Tudo ao mesmo tempo. De cenho franzido. Respirando ofegante pela boca seca. Até que na porta se ouve uma batida. Um único som.
TUUMMMM - ele faz.
E ecoa o carvalho pelo salão, como um tambor de guerra. 
Não reage nosso Rei. Nem a púpila se move. Permanece. E então vagarosamente apoia as costas no trono. E deixa a cabeça cair levemente para trás. Não move os braços, ou as pernas. Ele pende como um sino da igreja. E finalmente, sem desespero ou aviso pronuncia as palavras:
"- Entre." - e quem ouve sabe que é uma ordem.
A porta se abre de imediato.
O som das dobradiças rangendo rasgam o ar.
E o silêncio do salão é substituido por um momento.
Estranho. 
Pelo justo vão da porta, passa um pequeno corpo. Magro. E desliza pelo salão como uma cobra rasteja à relva. Até se ajoelhar diante do trono, com o capuz cor verde musgo escuro. E ficar em silêncio.
O Rei espera.
A criatura mal se move.
E então se ouve:
"- Acabou?"
"- Sim majestade! Acabou! A coroa tem a vitória. O Senhor, venceu..."
"- Não Kallabeth, com a sua idade você já deveria saber...

...não existem vencedores na guerra. Existem sobreviventes. As vezes, nem isso meu filho..."

PARTE II: O Rei e o Príncipe.

O silêncio se ergue após da boca do Rei se fechar.
O príncipe Kallabeth o encara com olhos jovens. Suado. Cansado da batalha. Com medo e um turbilhão de raiva e paixão entrelaçados como uma longa e espessa trança no cabelo de uma moça na flor da idade. Fio perfilado a fio, quase como uma cobra venenosa. Sua mente transa quase uma dezena de pensamentos ao mesmo tempo, confuso como os jovens podem ser depois de derramar sangue, de sentir pele e ossos se abrindo ao golpe de sua espada. 
"Tanto horror... mas vencemos!" - pensa Kallabeth enquanto deixava a mente vaguear por um universo de lembranças recentes e anseios. Até que algo o draga de volta com a força de uma cachoeira que impõe ao rio qual caminho seguir.
Os olhos do Rei o encaram com frieza. Ele conhece aquele olhar, não é o olhar do seu pai. Os dois pares de olhos se sustentam por um breve momento.
"Preciso saber se ele está pronto! Por favor garoto, esteja pronto..." - o Rei pensa enquanto diz:
- Nosso generais já estão aqui?
- Sir Ulv´Mir padeceu em combate senhor. - responde o príncipe - os outros dois devem estar chegando, se já não estiverem no castelo... ordenei que o corpo fosse trazido, limpo e vestido com sua armadura. Junto com as tropas.
"Excelente garoto!" -  pensa o Rei. Ele olha para uma pequena mesa lateral ao trono. Uma pequenina xícara, delicadamente ornamentada repousa. Sua mão a alcança com gentileza e ele beberica um gole sem retirar os olhos do Príncipe. 
- Vamos convocar a família de Sir Ulv´Mir, a viuva e os dois filhos. Eu darei a notícia a eles, a viuva receberá o soldo permanente do General. Em respeito aos serviços prestados por seu magnifico esposo. E um dos filhos poderá seguir a patente do pai quando a hora chegar...
"O mais novo é promissor, o mais velho é arrogante e indisciplinado. Mas ele não se importa com isso agora..." -  pensa Kallabeth.
Continua o Rei:
-... Sir Ulv´Mir será cremado na pira real. A cidadela será fechada por 2 dias...
-... e somente depois desses 2 dias, as tropas poderão entrar. Fazendo um desfile pela rua principal, limpos, armados, alimentados e completamente bêbados. - completa o príncipe Kallebeth enquanto interrompe o Rei.
"Muito bom filho..." - pensa o Rei enquanto encara seu filho.
- Exatamente. Uma festa para romper o luto. - lhe diz.
- E um herói para justificar a causa... - diz Kallebeth sorrindo enquanto se levanta.
"Até aqui, perfeito. Mas e o que mais você tem ai garoto?" - pensa o Rei.
Continua o príncipe agora de pé:
-... minha majestade receberá nossos dois generais, de armadura polida, descendo de seus cavalos na escada na entrada do Palácio...
- Sim - diz o Rei - com honras, música e pétalas de flores coloridas sendo jogadas ao vento sobre nós. E você? - lhe interpela com uma sombrancelha erguida.
"Vamos lá! Me impressione Kallabeth, coroe nossa vitória diante do Reino! " - pensa o Rei.

O príncipe se empertiga, deixando a coluna reta, movendo suavemente os ombros para trás. E mesmo ainda sujo de sangue seco nas mãos e na face. Levanta levemente seu queixo magro. E esboça um suave sorriso com um dos lados da sua boca. Suave o suficiente para existir, mas nada ousado. E então diz:
 - Após os aplausos, após o Rei beijar a face dos generais, após as tropas entrarem dançando, cantando, beijando as meninas da rua, por último a tudo isso me apresento eu. Armado, vestido com a capa branca, montando um brutalmente gigantesco manga larga da infantaria, limpo e ornamentado. Para descer diante de vossa majestade, saudar a população, subir as escadas e me ajoelhar aos teus pés... 
"Sim..." pensa o Rei "... o nascimento de um herói vivo! O filho que merece a coroa sobre sua cabeça!"
- Você será recebido como um herói! - diz o Rei.
Forma-se um silêncio pétreo entre os dois.
- Mas não serei coroado... - diz a voz do príncipe em um tom consideravelmente mais baixo.
"Fico feliz que seja você a dizer isso, filho..." - pensa o Rei enquanto diz:
- Ainda não... - deixa a voz morrer enquanto o encara.
"Mas esse é um passo importante..." - pensa o príncipe enquanto diz:
- Eu entendo PAI! - e lhe encara com um olhar duro.
O Rei se move no trono enquanto se levanta e diz:
- Venha até aqui - lhe esticando uma das mãos.
Kallabeth prontamente avança sobre os degraus e toma a mão do seu pai que lhe puxa para si. Enquanto enrola seus braços ao redor do tronco do príncipe. Lhe segura com força pela nuca e diz ao seu ouvido:
- Mas ser coroado herói dessa vitória é o passo mais importante que você já deu em direção a esse trono...
- Eu entendo pai! - lhe diz o príncipe.
O Rei se solta do filho dizendo:
- Agora vá, você tem muito o que fazer. E não esqueça de me enviar a viuva de Ulv´Mir ainda hoje.
O príncipe concorda com a cabeça.
E enquanto fecha a porta da sala do trono, pensa:
"- A vida de Ulv´Mir é uma excelente barganha pela coroa..."  - e sorri um sorriso ácido.

Após a saída do príncipe, o corpo do Rei desmorona sobre o trono.
Há silêncio no grande salão escuro. Até que a boca real diz:
- Não me deixe esquecer disso: na próxima estação depois da neve, o príncipe estará pronto para assumir a coroa.
E uma voz vinda da escuridão do salão responde monocordicamente:
- Como desejar Majestade!.
- Aproxime-se amigo, você já ficou tempo demais no seu esconderijo.
E um homem alto, com ombros largos, usando capa e capuz escuros como a noite sai de trás de uma coluna escondida.
- O que me diz? Ele está pronto? - pergunta o Rei.
O homem retira o capuz, enquanto caminha vagarosamente em direção ao trono e responde:
- Ele enviou Sir Ulv´Mir para um flanco de batalha da qual nenhum dos homens saíram vivos. Todos foram esquartejados pelas lâminas adversárias. Cavalos, homens, capitães e até o General... - respira fundo enquanto se senta no degrau mais alto, bem próximo do trono.- "... no começo achei que fosse um erro que custaria toda batalha!
O Rei o encara com um olhar sombrio.
- Depois percebi que a falange do velho Ulv´ era composta por soldados mais velhos e rapazotes ainda verdes. E que pelo tamanho, o inimigo precisaria despender muitos homens e força para segura-los. Se o inimigo não fizesse isso, seria rompido ao meio e perderia. E se fizesse, o centro e o lado oposto iriam devora-los. Kallabeth garantiu a vitória, sobre todas as outras coisas. Caso Sir. Ulv´Mir vencesse, nós venceríamos. Caso Sir. Ulv´Mir falhasse, como falhou, a coroa teria um herói morto, um príncipe herói vivo e a mesma vitória... - e se cala.
O Rei leva sua mão ao próprio queixo e diz:
- Garantir a vitória é a primeira regra.- se cala por um instante até continuar - E ser coroado herói enquanto cumpre a primeira regra, pode ser um bom passo...
O homem sentado ao pé do trono respira fundo novamente e diz:
- Foi o que nós fizemos Kallarth...- e lhe lança um olhar ameno - ... seu filho está fazendo exatamente o que nós dois fizemos a 25 anos atrás... e sorri.
O Rei continua lhe encarando. Menos como Rei e mais como homem enquanto diz:
- Meu pai estava louco, nobre amigo... Ele ordenou que eu trouxesse a cabeça da minha mãe em um baú com moedas de prata... - diz olhando para o vazio a sua frente.
O homem responde:
- E nós fizemos o que precisava ser feito para que um homem louco deixasse a coroa para você, e que sua mãe pudesse morrer de velhice, confortável e segura no palácio de verão...
O Rei permanece encarando o vazio enquanto o homem se levanta e recoloca o capuz. Desce os degraus do trono e suavemente se vira para trás dizendo:
- Não demore muito para dar a coroa à Kallebeth, meu amigo... Ele estará pronto em muito breve!
Sem lhe olhar o Rei acena com a cabeça, concordando...
"Um último teste e saberemos!"- acena enquanto pensa.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Imagina se o tempo fosse infinito...

Escrevo isso para o meu filho.
Ele se chama Fernando e tem (no momento em que escrevo isso, 3 anos 8 meses e 3 dias de vida). Eu ouço NOVO AMOR (clique aqui) enquanto despejo essas palavras aqui.

O tempo não é infinito meu amor. Mas te ver crescendo é um previlégio que nunca esperei ter na vida. De fato, após te conhecer, nada foi igual. Você mudou a mim, a sua mãe, nossas famílias se reorganizaram com a tua chegada. Houve espaço criado para ti. Espaço que tu criou, chegando e sendo amado por tantas pessoas. A vida é rápida, hoje tenho 42 anos, mas me lembro claramente de quanto tinha 10. Tu tens 3, quase 4... O tempo é inexorável. Suas marcas são inevitáveis. Você meu filho, meu pequeno grande amor, é uma marca do tempo. Assim como eu, tua mãe e todas as pessoas desse planeta foram antes de nós. Nossa vida é preciosa e existe muito BEM, nesse planeta que escolhemos habitar. As vezes, pode ser difícil perceber isso. As vezes, podemos ter nossa visão turvada por sentimentos complexos. Tudo isso é normal. Se acalme, respire fundo. Várias vezes. E busque não agir durante a cólera. Uma das lições mais importantes que teu avô, Fernando Beduschi, me transmitiu é de que aquele que não controla a própria língua, não controlará NADA neste planeta. Tenha calma, o vento que trouxe a tempestade será o mesmo vento que a levará embora. E se não houver abrigo para você da chuva, aproveite para tomar um banho. Sorria. O sol voltará logo. Acredite!

Não há problema sem solução nesse grão de areia que flutua no espaço. O único aspecto humano completamente imutável é a morte. Todo resto pode ser refeito, repensado, reconsiderado em uma nova tentativa.

Eu penso em ti e na tua mãe enquanto escrevo isso. No amor que sinto por vocês dois. Um amor completamente diferente. Mas também preciso te dizer, que minhas falhas como homem, como pai e como marido, me acompanham ao pressionar cada tecla. 

Espero ter tempo para te ver crescer. Para te ver tomar tuas próprias decisões. Para celebrar tuas vitórias e estar ao teu lado diante das tuas falhas. Tudo é passageiro. É importante aprender a não fazer morada nem nas vitórias e nem nas derrotas. Tua morada precisa ser o céu estrelado, as cachoeiras intocadas, o riso dos teus amigos e amigas, os teus amores, teu esforço e teus sonhos. Não viva aonde teu coração não bater forte, se recuse a aceitar o que te comandam e não concordas. Lute por ti. Garanta que quando fores mais velho, tenhas a leveza de quem se esforçou para concretizar aquilo que tua alma pulsa! Não tenha medo filho...

O tempo passará diante do teu medo ou da tua coragem. Nada impedirá a areia das ampulhetas de cair. Aproveite! Tenha coragem diante do teu terror.

Com quase 4 anos, tu és um menino MUITO inteligente. Sensível, tu és carinhoso. Danças e brincas todos os dias. Tu provoca sorrisos por onde passas. Hoje, corres para perto de nós quando algo é muito diferente para a tua percepção. Sempre te protegemos e gostaríamos de sempre poder te proteger, até teus 100 anos de idade. Mas não podemos. 

Tenho muito orgulho de ti. Tu é meu tesouro na terra.
Te amo com uma força que desconhecia dentro da minha alma.
É como se tu fosse a materialização de todo significado que já encontrei para estar aqui.

E eu estou pronto para estar do teu lado, enquanto for possível. Diante das tuas decisões.
Mas saiba meu amor: as tuas decisões, serão tuas. De ninguém mais.

Se o tempo fosse infinito, talvez o amor que eu sinto não fosse tão forte.
Não sei.
Mas só de pensar em te perder, meu olhos se enchem de doloridas lágrimas cristalinas.
Se o tempo fosse infinito, talvez eu tivesse menos urgência em minhas palavras.
Não sei.
Mas de pensar nas tuas batalhas, eu me encho de uma vontade gigantesca de te ajudar a erguer teu escudo.

O tempo não é infinito.
Teu escudo é teu e eu só posso te dizer o que penso sobre como se defender.
Espero que um dia, tu tenhas a sorte que tenho, de sentir o que sinto por você.

Com amor que conheço,
teu pai!

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A META DO ALGORÍTIMO, NÃO É HUMANA...

Você já falou sobre determinado assunto, e depois encontrou esse tópico anunciado nos programas que chamamos de "midia social". Eu sei que sim. E perceba, não estou escrevendo sobre DIGITAR e depois ser abordado. Eu disse: FALOU! É, estranho né!? Até perigoso, porque não?
Eu reparei algo a alguns meses, meu carro sabe para onde estou indo. Não, eu não estou ficando maluco... Dependendo do horário e do dia da semana, meu carro tem a intrigante capacidade de me sugerir rotas para meu destino, sem eu apertar ou digitar nenhuma tecla.
E não, não é um carro do topo da linha. Mas foi comprado zero km em 2022. Então ele vem de uma geração que acha isso normal. E ele é bom em sugerir meus próprios destinos.
"X TEMPO ATÉ SEU TRABALHO"
Eu realmente estava indo trabalhar.
"X TEMPO ATÉ A SUA CASA"
Eu to indo pra casa...
"X TEMPO ATÉ O COLÉGIO DO SEU FILHO"
Eu vou buscar meu filho.
"X TEMPO ATÉ O RESTAURANTE Z"
Chega! Como ele sabe que a gente tá indo pra lá!?

É, já foi o tempo que uma curtida no instagram ou uma pesquisa no Google, eram o limite entre gerar dados para anunciantes ou não ser tocado pela pesada mão do tráfego pago. Mas admito, a questão tem respostas diferentes dependendo de quem pergunta e para quem. A internet já popularizou participações de membros de equipes técnicas do Google, Android e Apple em Podcasts dizendo que SIM, eles tem acesso a informações faladas próximas a dispositivos conectados. E que aparelhos de telefonia celular, smart watches, tablets e afins, são marcadores perfeitos para cruzar geolocalização, hábitos de compra on line E OFF LINE, além de poderem servir para analisar conjuntos vocais verbalizados (leia-se FALAS HUMANAS) e reações de conjuntos oculares (leia-se IRIS E PALPEBRÁS). Gerando montanhas de dados de comportamento, opiniões, hábitos de consumo, hábitos sociais, nossos medos, o que nos emociona e quais opinões temos sobre "o todo" (leia-se planeta terra e seus habitantes reais ou imaginários).

Muitos de nós achavam que a câmera frontal em HD, ou em 4K era um recurso cool! Uma feature que valia a pena ter! Uma inovação natural diante da evolução tecnológica global.
Mas poucos já perceberam que quando nossos olhos estão descendo o feed do TIK TOK ou do INSTAGRAM, a leitura que é feita vai muito além do tempo de permanência x interações (curtidas, envios de DIRECT ou comentários) com o conteúdo. 

Os algoritmos nos conhecem muito melhor que nossas mães ou que nós mesmos. E uma das muitas razões, é que eles não dormem nunca. Eles sabem quando dormimos. Eles não descansam. E sabem quando descansamos. Eles não tem fome, sede, medo ou euforia. Mas sabem quando temos. A que horas comemos. Porque não nos exercitámos. Porque não entramos em determinada RUA ou BAIRRO. E o que nosso ego quer ver quando entramos em seus domínios.

Escrevo isso em um final de tarde, ouvindo esse som: CLIQUE AQUI!
Meu filho dorme no quarto junto a minha esposa enquanto vejo o final de tarde cair por trás do horizonte, do nosso apartamento em Blumenau.
E o que me ocorre é que há tanta poesia no mundo. Mas que provevalmente, a beleza do que vejo e sinto nesse instante é fruto da química humana de perceber a existência. Com esperança e o desejo profundo de que haja vida no futuro.

O ser humano foi capaz das piores atrocidades realizadas nesse grão de poeria que flutua na imensidão especial. Mas também produziu arte, tecnologias, ciências e tanto amor.

Os algoritmos que nos perseguem foram criados por seres humanos.
Mas também, foram auto reprogramados, em muitos níveis.
Diante de nós sempre existiu um futuro. E o futuro sempre poderá ser inovador e brilhante. 

Ou pode ser só um futuro em que a insensatez humana não tem mais espaço.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A VELHA LOBA

Nas terras ao Norte, não importa em que tipo de solo seus pés pisem, todos moradores conhecem a história da velha Loba. Para alguns, a história é antiga como o tempo. Mas não espere encontra-la em estátuas, ou tomos das bibliotecas e universidades. A velha Loba é uma história contada pelos avós junto a fogueira. E mesmo que para alguns, sejam somente histórias, ela nunca desaparece por completo...

Dizem que antes das cidades terem muros e dos rei usarem coroas, o homem vivia mais perto da natureza. Curávamos nossas feridas com folhas e ervas, cuidávamos das nossas crianças com frutas e flores. E acima de tudo e todos, respeitávamos a natureza. Caçávamos sim, mas nunca filhotes. Colhíamos e plantávamos nos campos. Mas haviam muitos lugares que não ultrapassávamos. O elo entre os homens e a terra era vivo e forte. Sadio e equilibrado. 
De tempos em tempos, saiam das florestas densas para os bosques abertos, homens e mulheres que falavam com os animais. Que se camuflavam como se fossem invisíveis aos olhos desatentos. Que conheciam palavras antigas para curar e fazer a natureza ajudar na colheita, na doença e na vida de todos. Essas pessoas quase sempre viam acompanhadas de muitos animais, e quando partiam anunciavam que esse seria o tempo de uma dessas criaturas. Houveram assim, muitos registros de anos do falcão, da lontra, do pequenino tordo negro, do bisão e dos lobos... Infelizmente, o homem se esquece. E mesmo que de tempos em tempos a natureza reafirmasse o acordo, com o passar das gerações, cada vez menos de nós recebia o povo da floresta de forma apropriada. O tempo dos animais não durava um ano humano. Ele durava o quanto durasse. E só seria alterado quando uma dessas pessoas se apresentasse e por fim, declarasse seu novo nome. Por séculos, recebemos o povo das florestas com música, comida, bebida. Dançando com nossas melhores roupas, com flores nos cabelos das meninas e até os mais velhos dobravam os joelhos em respeito a eles. A sua chegada, era sempre requisitado água limpa. O povo da floresta a tomava e muitas vezes se banhava com ela, sem pudor. Após, pedia-se que os doentes lhes fossem trazidos. E um por um eram examinados e consultados. Aos curáveis, curas rápidas e naturais eram ofertadas. Aos incuráveis, davam-se longas conversas ao pé do ouvido. Muitos dos que não tinha cura, sorriam diante da entidade. Agradeciam. Se ajoelhavam e os abraçavam. Após esse período, o povo da floresta conversaria com todos que tivessem perguntas. Dos menores até os mais velhos. Sem distinção. Eles dormiam pouco, sempre ao redor das vilas. Comiam frutas e as vezes carnes, sempre perguntando como foi a caçada. Quem abateu a presa. E demonstrando respeito pelo alimento. Era um tempo de ouro. Muitas vidas foram salvas, por cura, conhecimento e acolhimento.

Mas o tempo passou.

E houve um novo capítulo dessa história, onde poucos e cada vez menos se importavam.
Não vou lhes contar sobre quantas vezes as criaturas da floresta esperaram junto as clareiras. Sozinhas. Sem nenhuma fogueira ou abraço, como recepção, até partirem... Não vou lhes dizer de como as criaturas da floresta ficaram cada vez mais agressivas. De como os corvos e falcões atacavam as crianças ou de como as matilhas de lobos rompiam a escuridão e desapareciam carregando um ou dois dos nossos, sem qualquer aviso. Ervas venenosas começaram a crescer entre nossas folhas e as árvores davam frutos cada vez menores ou simplesmente nenhum...
Houveram aqueles entre nós que tentaram avisar. Que em conciliuns (reuniões oficiais) foram ridicularizados. Chamados de velhos e inúteis. Grupos de homens se armaram com metal e raiva, entrando fundo nas florestas. Pouquíssimos retornavam. Um desses grupos, teve somente um sobrevivente. Um jovem homem que não tinha 20 verões de vida. Ele voltou nu, pedindo para falar com os anciões. E um aviso ele transmitiu. Daquela data, em exatamente 4 estações, haveria um reencontro. E se fosse o desejo do homem, pacificar-se com a natureza, essa possibilidade existia. Porém, essa seria a última chance. Após isso, nunca mais.
Esse moço foi encontrado enforcado em uma árvore, fundo na floresta, pouco tempo depois. Em seu rosto havia um risada demoníaca. Algo não humano, algo selvagem...

Os dias flutuaram como folhas que boiam sobre um rio. Descendo em direção ao mar, sem parar. E quando a data se aproximou, muitos de nós se negaram a participar. Mas um grande grupo se formou. Pessoas vindas de várias vilas e até cidades distantes. Todos conhecedores das histórias. E foi lá que ela apareceu...

 


Velha, como diz o nome. Pequena, com um metro e meio de altura, ou menos. Cabelos brancos como a neve. Profundos olhos azuis cintilantes tal qual água de uma caverna escondida. Movia-se de uma forma sobrenatural, não humana. Com longos dedos das mãos e pés. Coberta por tecido fino e delicado. E com um sorriso escancarado nos lábios.
Primeiro sua cabeça surgiu de dentro de um vasto arbusto. Como se fosse um coelho em um corpo de velha. Levou poucos instantes para sumir e reaparecer metros a sua própria direita, farejando com o nariz como um javali procura por trufas. Dali, ela se ergueu em pé. Mexeu nos cabelos com as mãos estabanadas, claramente sem intimidade com a ação... Então ouviu-se um longo e firme uivo lupino vindo das trevas da mata. Ela olhou sobre o próprio ombro, mas sem mover seus pés. Seu tronco girou rápido, sem dificuldades. E quando voltou para a pequena multidão que assistia tudo em silêncio, ela sorria com dentes pontiagudos, inumanos. Depois, novamente se ergueu sobre as pernas e deu alguns passos em direção as pessoas. Mas ela andava de forma alegórica, movimentando excessivamente as ancas e os ombros. Como se estivesse fingindo ser uma humana. Movendo o pescoço para os lados a cada passo. Até que depois de alguns metros, ela caiu no chão grunhindo. As pessoas se entreolhavam, confusas.
Foi um dos conselheiros do Rei que disse:
"- Ela está caçoando... !?" - sem ninguém entender se isso era uma afirmação ou uma pergunta.
Os grunhidos se transformaram em risada. E a risada se transformou em uma tosse, mais rouca do que deveria ser. Para tossir, a velha se pôs sobre os 4 membros e com os joelhos no chão, ficou parecida com um gato expelindo bolas de pêlo... Até que foi parando. E como se tivesse lembrado do que estava fazendo. Diante daquelas pessoas. Estacou. Olhando para todos com as pupílas erguidas até a própria testa, como faz um cachorro acoado. Antes do bote.
E ali rosnou, bem baixinho primeiro.
"- RRrrrrRRRRRRããããrrrrrrRRRRR" - ela fez com o fundo da garganta. E as mães pegaram seus filhos no colo. Então tossiu mais e parou de novo.
Então, pela primeira vez falou:
"- Nos darão carne..." -  ela resmugou. E poucos a ouviram.
Então repetiu mais alto:
"- Nos darão carne!" - disse se levantando.
E um dos nobres presentes a respondeu:
"- Claro, claro... Que tipo de carne querem? Basta dizer e trare..."
"- Carne viva!" - e sorriu um sorriso cheio de dentes.
As pessoas suspiraram de medo. Uma mãe correu de volta para a vila segurando seu bebê que gritava. A velha a olhou com um suave relance de sua cabeça.
"- Carne viva? Uma va-vaca?" - retrucou o nobre dando um passo para trás.
Ela lhe olhou e um longo uivo foi ouvido.
"- Nos darão carne, daqui a 5 noites. Mas não nos darão seus animais. Nos receberemos sua carne, crianças, mulheres, velhos, homens, o que for. 2 cabeças de carne. Aqui nessa clareira. Cinco noites..."
"- E se nos recusarmos?" - disse um soldado com a espada em punho.
E vários rosnados diferentes vieram da escuridão da mata.
"- Aí nós pegaremos toda carne que quisermos, em 5 noites. Escolham duas cabeças, vivas. Aqui. Ou cedam o que nós quisermos. - e sorriu como se preferisse a segunda opção - Cinco noites." e recuou para trás se movendo sobre os 4 membros. Encarando a multidão.
Até parar na beirada da mata, ficar de pé e dizer:
"- Houve um tempo em que nós eramos amados, cediamos a vocês nossos filhotes, nossas crias, nossas mães e pais. Vocês entravam na mata, tomavam nossa carne e partiam para se nutrir do nosso sangue... Mas vocês pararam de nos amar. Pararam de nos receber. Pararam de nos honrar. Agora, vocês viverão o Ano da Velha Loba..." e sorriu um sorisso frio e cheio de dentes.


sábado, 5 de outubro de 2024

Ode cardiáco.

Existe um lugar distante, longe de tudo.
Em que a vida é sempre infante.
E o tempo não provoca luto.
Um lugar escondido.
Secreto à tudo.

Guardado no 
peito calado.
Habita,
o coração

mudo.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O busto parado
na praça
Assiste a vida
que passa

Toma chuva
no tempo
Sente o pó
do vento

Sem pressa,
o busto 
espera
a sua
hora